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GameStop, movimento especulativo nas redes e desdobramentos na B3: caso é manipulação de mercado?

Novas formas de interação humana representam um grande desafio para autoridades e governos, sendo certo que emanam influências sobre todos os aspectos da vida em sociedade
Por  Marcos Roberto de Moraes Manoel -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

O mercado financeiro mundial assistiu estarrecido, na semana passada, a um movimento especulativo impulsionado por investidores individuais coordenados e organizados por meio de um fórum de discussão on-line, o qual acarretou enormes prejuízos a grandes fundos de investimentos integrantes de portfólios de instituições financeiras gigantes e tradicionais, capitaneados por estrelas de Wall Street.

O objeto do movimento especulativo foram as ações da GameStop, uma empresa norte-americana fundada em 1996, que opera no varejo de jogos eletrônicos de consoles clássicos e populares, cujas ações são listadas na NYSE – New York Stock Exchange.

Considerado um modelo de negócio obsoleto e em franco declínio em razão das lojas virtuais de vendas de games on-line mantidas pelas próprias empresas criadoras dos consoles, além da concorrência com gigantes do varejo on-line como a Amazon, os grandes fundos de investimento de Wall Street apostavam na queda dos papéis da GameStop. Portanto, tinham posições de “venda a descoberto” em relação às ações da GameStop, com a finalidade de realizarem lucro conforme a ocorrência de perda de valor dos papéis no mercado acionário norte-americano.

Ocorre que um grupo de investidores individuais, por meio do fórum Reddit/WallStreetBets na rede mundial de computadores, se organizou e coordenou um movimento de aquisição contínua de ações da GameStop, que gerou o efeito de valorizar os papéis, provocando, no jargão do mercado financeiro, um short squeeze ou até mesmo um gamma squeeze sobre os grandes fundos de investimento que operavam com posições de “venda a descoberto”. Ao notar esta movimentação atípica e inesperada, os fundos se viram compelidos a também comprar as ações da empresa em uma tentativa de minimizar as suas perdas, ato que provocou uma (super) valorização ainda maior dos papéis.

Do final de dezembro de 2020 até o dia 27 de janeiro, as ações da GameStop se valorizaram em assombrosos 1.800%, com a cotação subindo de US$ 19,26 para o astronômico valor de US$ 380 na máxima registrada.

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As questões que se colocam, sob uma perspectiva jurídica, são: (i) a conduta dos investidores individuais configurou um ilícito? (ii) poderia acontecer algo similar no mercado de capitais brasileiro? (iii) se ocorresse, restaria configurado um ilícito e, caso positivo, de que natureza?

Não se pretende, neste artigo, analisar a legislação norte-americana de mercado de capitais, mas é fato que as normas brasileiras sobre a matéria foram inspiradas nas regras norte-americanas, certamente o mercado de capitais mais pujante do mundo à época em que sobreveio a Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976 (“Lei do Mercado de Capitais”), e ainda o mais importante do mundo atualmente. Tanto lá, como cá, a manipulação do mercado é um ilícito administrativo, passível de punição pelo regulador do mercado. E pode configurar, também, em tese, um ilícito penal – no Brasil, nos termos do art. 27-C do referido diploma, o qual tipifica o crime “manipulação do mercado”.

A Lei do Mercado de Capitais brasileira estabelece, em seu art. 4º, V, que constitui um princípio do mercado de valores mobiliários, a ser regulado e fiscalizado pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários negociados no mercado.

Leia também: Qual o risco de termos um caso como o da GameStop na Bolsa brasileira?

Por sua vez, a Instrução CVM nº 8, de 8 de outubro de 1979, veda aos participantes do mercado de capitais a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preço, a realização de operações fraudulentas e o uso de práticas não equitativas.

A instrução normativa define condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, como “aquelas criadas em decorrência de negociações pelas quais seus participantes ou intermediários, por ação ou omissão dolosa provocarem, direta ou indiretamente, alterações no fluxo de ordens de compra ou venda de valores mobiliários”; e manipulação de preços no mercado de valores mobiliários como “a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo, terceiros à sua compra e venda”.

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Em outras palavras, a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários e a manipulação de preços consistem em atos ou omissões intencionais praticadas por participantes do mercado que façam com que o preço das ações se descole dos fundamentos econômicos da empresa e das métricas econômicas extraídas do balanço patrimonial com o intuito de induzir investidores e influenciar movimentações de mercado.

Quando tais operações forem simuladas ou fraudulentas e tiverem o dolo específico de obtenção de vantagem indevida ou lucro, para o autor do ilícito ou para outrem, ou causar dano a terceiros, estará caracterizado também o crime de “manipulação de mercado” previsto no art. 27-C da Lei 6.385/76.

As potenciais sanções administrativas estão dispostas na Instrução CVM nº 609/19, que regulamenta a atividade sancionadora perante a autarquia em face de atos e práticas que possam configurar infrações dentro de sua esfera de atuação. Em linhas gerais, podem ser impostas as seguintes penalidades, isolada ou cumulativamente: advertência; multa não excedente do maior valor entre R$ 50.000.000,00, o dobro do valor da emissão da operação irregular, três vezes o montante da vantagem econômica obtida, ou da perda evitada, ou o dobro do prejuízo causado aos investidores em decorrência do ilícito; inabilitação temporária para o exercício do cargo de administrador ou de conselheiro fiscal por até 20 anos e das atividades de que trata a Lei do Mercado de Capitais; suspensão da autorização ou registro para o exercício das atividades de que trata a Lei do Mercado de Capitais; e a proibição temporária por até 20 anos para a prática de determinadas atividades ou operações no mercado de valores mobiliários.

A sanção penal, ao seu turno, prevê pena de reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até três vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime.

No que tange à conduta praticada pelo grupo de investidores individuais no caso da GameStop, se algo similar ocorresse no mercado brasileiro – ou seja, uma ação coletiva coordenada visando a compra em massa de determinada ação – parece que poderia haver subsunção às aludidas normas que proíbem atos tendentes à manipulação de mercado e do preço de ações.

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Por outro lado, seria possível argumentar que os investidores estavam de fato movidos pelo legítimo desejo de terem o papel em sua carteira de inversões, por acreditarem na companhia e no negócio por ela realizado, sendo normal a troca de informações e impressões entre investidores e que, portanto, as condutas seriam lícitas e naturais dentro da dinâmica do mercado.

Em suma, a prova diabólica seria o elemento subjetivo, o qual teria que ser analisado pelo regulador caso a caso em conjunto com os demais indícios do caso concreto para se poder concluir pela manipulação de mercado, ou não.

Outros obstáculos seriam de ordem prática, quais sejam: como poderia o regulador identificar milhares de pessoas partícipes de uma ação concatenada; como lidar com o anonimato que os investidores podem ostentar em fóruns na internet, através de seus codinomes e avatares – é fato que todos são identificáveis na rede e podem ser responsabilizados por seus atos, mas isto certamente exigiria grande investimento em tecnologia e em pessoas por um regulador que, atualmente, tem um orçamento claudicante. E ainda, se identificados, seria factível que o regulador movesse milhares de processos administrativos sancionadores visando à punição dos infratores; haveria estrutura para tamanha torrente de processos.

O tema aflige investidores, participantes do mercado e a CVM, pois já se tem notícia de movimentações similares no Brasil, a exemplo da IRB Brasil, Cogna e Oi, que têm sido objeto de debates em grupos de short squeeze pelo aplicativo de mensagens Telegram, o qual comporta grandes números de pessoas em um grupo.

A CVM, todavia, lançou um alerta ao mercado no dia 29 de janeiro, avisando que está monitorando redes sociais e limites na B3, e irá processar e punir infrações que venham a ser identificadas. Pronunciando-se no sentido de que orquestrações por tais grupos através de aplicativos, redes sociais e pela internet podem caracterizar atuação irregular, em razão de manipulação, e também, em tese, crime contra o mercado de capitais.

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O fato é que as novas tecnologias e as novas formas de interação humana representam um grande desafio para autoridades e governos, sendo certo que emanam influências sobre todos os aspectos da vida em sociedade. Como, por exemplo: política, eleições, pautas de costumes e julgamentos do Poder Judiciário. Surgindo, agora, esta nova vertente relativa ao mercado financeiro, a qual certamente exigirá do regulador e dos participantes de mercado criatividade, inteligência, monitoramento e investimentos para lidar com o novo front entre “Main Street vs. Wall Street”.

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Marcos Roberto de Moraes Manoel Marcos Roberto de Moraes Manoel, advogado coordenador da área de Direito Empresarial e de Negócios do Nelson Wilians Advogados. Pós-graduado em Direito do Mercado de Capitais e Finanças Corporativas pela FGV – SP. LLM em Direito Societário pelo Insper. Extensão em Filosofia Moral e Política pela Harvard University. Extensão em Direito dos Contratos pela Harvard Law School. Mestrando em Direito pela FGV – SP

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