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“Não é, mas seria se fosse”: os riscos da liberdade poética no balanços das empresas

Apresentar mais de um resultado para lucro e Ebitda já é regra e cresce o número de empresas com até quatro versões nas demonstrações financeiras
Por  Matheus Guimarães -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Um dos conceitos que mais marcou meus estudos aprendi numa aula durante o mestrado. Nas palavras do professor de contabilidade na época, “pro-forma” é tudo aquilo que não é, mas seria se fosse.

Seria cômico, não fosse trágico. Na época, trabalhava na área de relações com investidores (RI) e escrever releases de resultados era parte da minha rotina. Não raro via demonstrações financeiras não auditadas com expressões como “pro-forma”, “não recorrente” ou “caixa” (em contraposição a “contábil”), entre outras.

Quando se comunica com o mercado, um bom profissional de RI tenta sempre fornecer informações detalhadas e complementares aos dados contábeis. Em outras palavras, tem alguma “liberdade poética” ao reportar os números – desde que ela ajude analistas e investidores a entender melhor o momento operacional da empresa. O que nem sempre é possível só com o balanço auditado.

Não se trata de uma apologia à contabilidade criativa. Apenas admito que a rigidez das normas contábeis muitas vezes compromete a compreensão do momento operacional da empresa.

Dito isso, não é exagero afirmar que analisar uma empresa a partir das demonstrações contábeis é a segunda pior forma de avaliá-la. Em primeiro lugar estão empatadas todas as demais maneiras de fazê-lo.

Reconheço a importância dos feitos de Luca Pacioli, considerado o pai da contabilidade. Mas não deixo de questionar os vários padrões existentes – BR GAAP, US GAAP, IFRS, contabilidade regulatória, e por aí vai.

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Atuando hoje “do outro lado do balcão”, como analista sell side, frequentemente vejo discussões sobre determinado lançamento contábil ser considerado (ou não) inerente ao negócio de uma empresa – e, portanto, recorrente – ou eventual, devendo ser desconsiderado nas projeções de resultados futuros.

Não é excesso de zelo, nem a defesa de uma contabilidade pura e imaculada. Pelo contrário. Como prega a moderna teoria de finanças, o objetivo da análise é descobrir o valor intrínseco (ou justo) de um ativo, estimando os fluxos de caixa futuros e trazendo-os a valor presente.

Os analistas passam boa parte do tempo tentando entender se a fotografia da situação financeira da empresa em determinado momento é (ou não) o melhor ponto de partida para realizar uma projeção. Ou se algum ajuste seria necessário.

Excesso de liberdade?

Aqui alcançamos a razão de ser desse artigo. Sinto que chegamos a um ponto de exagero na liberdade poética nos relatórios de resultados (earnings releases).

Apresentar mais de um resultado para lucro líquido e Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) já virou a regra. O mais comum é ter pelo menos um recorrente e outro contábil, mas cresce o número de documentos em que até quatro versões de lucro ou Ebitda – contábil, gerencial, recorrente, regulatório, caixa, etc. – estão disponíveis.

Fora os casos em que, para um mesmo período, apura-se lucro de um jeito e prejuízo de outro – “esse dia foi louco”, diriam os jovens.

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Outra prática – perdão pelo trocadilho – recorrente são as reclassificações de exercícios passados. Talvez isso não devesse surpreender, já que, como diria Pedro Malan, “no Brasil, até o passado é incerto”.

As discussões sobre a recorrência de certos eventos e como fazer seus lançamentos contábeis talvez jamais terminem. Parece, no entanto, que as companhias deveriam empregar seus melhores esforços não só para fazer o menor número de ajustes possíveis, como também para demonstrar uma forma inequívoca de conciliar as informações apresentadas.

Minha visão é de que os efeitos de variações cambiais em operações correntes, despesas com planos de pensão e assistência, contingências cíveis ou trabalhistas (Brasil, lembra?), desembolsos adicionais previstos em aquisições (earnouts), gastos com consultorias para aquisições ou reestruturações, entre outros, se relacionam com a operação da empresa – e deveriam, sim, fazer parte do lucro.

Não recorrentes de fato são eventos como venda de unidades de negócios ou perdas ligados a catástrofes climáticas, por exemplo.

Paro por aqui sem a certeza de ter conseguido transmitir um pouco dos desafios enfrentados pelos analistas e investidores – e receoso de soar apenas como um capricho de um analista que gostaria de uma vida mais fácil (ou menos difícil). Mas com a esperança de conseguir conciliar quatro lucros líquidos de forma mais simples no futuro próximo.

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Matheus Guimarães Analista de setor financeiro na XP Inc., é economista pela UFF e mestre em administração pela PUC-Rio. Tem passagens por Estácio Participações, Oi, SulAmérica e BB DTVM.

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