Carros ‘populares’ com desconto: governo divulga tabela inflada e com inconsistências

MDIC diz que 266 versões de 32 modelos fazem parte do programa de 'descontos patrocinados', mas o número real é bastante inferior: menos da metade disso

Lucas Sampaio Giovanna Sutto

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A tabela do governo federal sobre os carros populares com desconto está “inflada” e tem diversas inconsistências, como um modelo que custa mais de R$ 120 mil (da Chevrolet), versões de veículos que não são mais comercializadas (caso da Fiat e da Honda), uma versão que está esgotada e foi substituída (da Citroën) e até uma que não existe (de novo da Fiat), além de várias repetidas.

O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) diz que 266 versões de 32 modelos de veículos, de 9 montadoras diferentes, fazem parte do programa de “descontos patrocinados”. Mas o número real é bastante inferior: menos da metade disso.

São 115 versões, segundo levantamento do InfoMoney. A reportagem encontrou inconsistências nos dados de várias montadoras: Citroën, Fiat, General Motors (Chevrolet), Honda, Hyundai, Jeep, Nissan e Peugeot (veja todas abaixo). Só não há problemas nas informações de três empresas: Renault, Toyota e Volkswagen.

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A Fiat, por exemplo, é montadora com mais modelos no programa (7) e a que mais conseguiu subsídio até agora (R$ 170 milhões). São 22 versões com desconto, segundo a própria empresa, mas na tabela do governo aparecem 66. A Citroën tem 8 versões de 2 modelos, mas aparece no documento com 28. Já a Peugeot tem 10 versões de 3 modelos na conta da reportagem, 21 segundo a montadora e 38 segundo o governo.

Isso porque há várias entradas de uma mesma versão, de vários carros e de várias montadoras, na tabela do MDIC — o que acaba inflando os números. Na segunda versão do documento, por exemplo, a pasta afirmou que as montadoras haviam incluído 32 novas versões no programa; na prática, foram apenas 7.

Também há diversas inconsistências no arquivo, como:

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O que diz o governo

Questionado pela reportagem, o MDIC culpou as empresas. “A lista publicada pelo MDIC tem por base as informações enviadas pelas próprias montadoras. Se determinados modelos e versões foram incluídos por elas equivocadamente, elas devem comunicar o MDIC para que estes modelos e versões sejam retirados da lista”.

“Sobre as versões coincidentes, elas podem conter diferenças de itens em relação ao período de fabricação dos lotes, em relação aos opcionais ou, ainda, em relação aos anos-modelo de cada carro, o que altera sua classificação nos critérios que regulam o programa”, afirma a pasta. “Sem, no entanto, alterar o nome da versão”.

Segundo o ministério, “foram as montadoras que consideraram tais diferenças como versões diferentes – e esse entendimento se reflete na lista que se tornou pública”. Diz ainda que “eventuais mudanças nas relações de modelos e versões enviadas pelas montadoras constarão das próximas atualizações da lista”.

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O que dizem as montadoras

O InfoMoney questionou as montadoras com as maiores inconsistências no documento e pediu esclarecimentos, assim como uma posição sobre o número de versões que fazem parte do programa. Todas elas responderam:

Hyundai: 11 ou 24 versões?

A montadora foi a única a concordar com o argumento do governo e considerar cada entrada na tabela como uma versão diferente (são portanto 24 versões do HB20 e do HB20S). Se fossem excluídas as entradas repetidas, seriam apenas 11 versões dos 2 modelos. A montadora é também a única que tem subsídios diferentes para uma mesma versão de veículo (entenda mais abaixo).

“A Hyundai confirma que são, até o momento, 24 versões de dois modelos no programa. Em breve, essa lista será ampliada, conforme já solicitado pela Hyundai ao governo”, afirmou a montadora em nota. Segundo a empresa, “o fato de aparecerem nomes iguais para versões diferentes deve-se a uma simplificação da descrição original por parte do site do MDIC”.

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“Cada versão informada pela Hyundai apresenta uma particularidade, principalmente em relação ao ano de fabricação, ano do modelo e equipamentos disponíveis”, explica a companhia. “Uma mesma versão apresenta modificação de conteúdo nacional ou de preço público quando troca de ano de fabricação, modelo ou conteúdo. Como cada desconto do governo será validado pelo número de chassi do veículo, é necessário que todas as variáveis sejam informadas e consideradas”.

GM (Chevrolet): 29 ou 72 versões?

A General Motors, que no Brasil atua com a marca Chevrolet, é a montadora com mais versões na tabela do MDIC: 72 (seis a mais que a Fiat, a segunda colocada com 66). Se forem excluídas as entradas duplicadas, são “apenas” 29 versões de 5 modelos diferentes (menos da metade):

Questionada sobre a questão, a montadora se limitou a dizer que “um mesmo modelo e versão de veículo pode ter diferentes configurações de conteúdo, influenciando também na sua classificação dentro do programa”.

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A GM não explicou porque incluiu a Tracker 1.0 turbo automático no programa, apesar de seu preço ser superior ao teto de R$ 120 mil estabelecido pelo governo federal. A versão “de entrada” do modelo custa a partir de R$ 127.690, segundo o site da própria montadora (veja na imagem abaixo), e seu preço na tabela Fipe de junho é R$ 126.054.

A reportagem já havia questionado o governo (e a montadora) sobre o problema. O MDIC afirma que “o que importa é o preço efetivo de venda, que vai constar na nota fiscal”. “Se o carro for vendido acima do teto de R$ 120 mil, a montadora não poderá aplicar o desconto patrocinado pelo governo”. Disse ainda que “as montadoras devem enviar relatórios de vendas contendo todas as informações sobre as transações, inclusive NFs”.

Chevrolet Tracker com preço inicial de R$ 127.690 no site da própria montadora; site acessado em 16 e 22 de junho de 2023 (Imagem: Reprodução/Chevrolet)

Fiat: 22 ou 66 versões?

A Fiat (e a Citroën, indiretamente) contrariou a versão do MDIC e confirmou à reportagem que tem menos versões do que o divulgado pela pasta. “São 7 modelos e 22 versões”, afirmou a Fiat ao InfoMoney. A montadora diz que há várias entradas de uma mesma versão na tabela “para garantir que todas as variações dentro das versões estivessem contempladas [pelo desconto]”.

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Várias versões de carros da Fiat aparecem na tabela do MDIC com diversas entradas (o Argo 1.3 Trekking e o Pulse 1.0T Audace, por exemplo, aparecem 5 vezes na lista cada um).  A montadora é também a que tem mais inconsistências no documento, mas explicou — ao menos parcialmente — cada problema:

Citroën: 8 ou 28 versões?

A Citroën confirmou que “a política de preços reduzidos com bônus do governo nos modelos Citroën se mantém no que foi divulgado: toda a linha C3, C4 Cactus Feel e Jumper Furgão”. Sobre o Jumper, a montadora diz que o modelo “está incluso na categoria de bônus para veículos semi-leves, respeitando as regras do governo para concessão do benefício” (ele foi inserido no programa para caminhões).

A montadora tem 28 versões de 2 modelos (C3 e C4 Cactus) na tabela do MDIC, mas na verdade são apenas 8 versões. A lista do governo tem, por exemplo, 7 entradas para a versão 1.0 Feel e 6 entradas para a versão 1.6 First Edition (ambas do C3).

Sobre as entradas repetidas, a Citroën diz que as versões aparecem com códigos específicos “para garantir que todas as variações dentro das versões estivessem contempladas”. “Vale reforçar que o código não interfere no valor do desconto”.

A empresa alega ter 2 versões do C4 Cactus contempladas no programa — a 1.6 Live automática e a 1.6 Feel automática —, mas na tabela do governo só aparece a Live. A montadora diz ainda que a versão Live está esgotada e somente a Feel ainda tem unidades em estoque. Questionada sobre o documento ter apenas a versão Like, a Citroën afirmou que a Feel “já teve a inclusão enviada ao governo”:

Peugeot: 10, 21 ou 38 versões?

A Peugeot foi a última a responder aos questionamentos da reportagem e disse que não tem nem 10 versões de 3 modelos no programa (como calcula a reportagem) nem 38 (como aponta a tabela do MDIC), mas sim 21 versões.

Isso ocorre porque a montadora considera a versão ano 2023/modelo 2023 de um carro como diferente da mesma versão ano/modelo 2023/2024 (o que o InfoMoney considerou como uma única versão). Já a lista do governo tem, por exemplo, 5 entradas diferentes para a mesma versão Like do modelo 208:

Pelas contas da Peugeot, o 208 tem na verdade 12 versões (6 ano/modelo 23/23 e 6 24/24), o 2008 tem 6 versões (3 de cada uma) e a Partner Rapid, 3 versões diferentes (22/23, 23/23 e 23/24). Mas os subsídios do governo são os mesmos para uma mesma versão, independentemente do ano de fabricação.

Sobre as várias entradas na tabela do MDIC para um mesmo modelo, só que com códigos específicos, a Peugeot deu a mesma explicação que a Citroën: “os códigos foram inseridos para garantir que todas as variações dentro das versões estivessem contempladas”. E também destacou que “o código não interfere no valor do desconto” (vale lembrar que, para o governo, Peugeot e Citroën são contabilizadas como uma montadora só).

Honda: 1 ou 2 versões?

A Honda aparece com 2 versões de 2 modelos na tabela do MDIC (o City sedã EX e o City hatch EX), mas o segundo não é mais comercializado pela montadora. Questionada, a marca japonesa não explicou porque mandou ao governo uma versão que não existe mais.

“A Honda enviou ao governo a lista contendo o modelo New City sedan EX, comercializado atualmente, e com o modelo New City Hatchback na versão EX, que está habilitada a participar do programa, mas não é comercializada atualmente”, afirmou a montadora.

Jeep e Nissan: 2 ou 3 versões?

A Jeep, com o Renegade, e a Nissan, com o Kicks, têm 3 versões de cada modelo na tabela. Mas em ambos os casos são, na verdade, só 2 versões: Turbo e Sport, no caso do Renegade, e Active e Sense, no caso da Nissan.

O Kicks tem 3 versões na tabela porque a montadora enviou 2 especificações da versão Active (“de entrada”), uma com e outra sem a central multimídia, além da Sense (intermediária). A montadora japonesa também poderia ter incluído versões do Versa no programa, pelo critério do preço, mas o modelo é importado do México (e portanto não preenche o pré-requsito de “densidade produtiva”).

Já a Jeep, que reduziu o preço sugerido do Renegade em até R$ 15 mil para incluí-lo no programa, diz que versão Sport aparece 2 vezes na tabela por causa do ano/modelo de fabricação diferentes (como aconteceu com outras montadoras). A montadora é a que concedeu o maior desconto total no programa: R$ 19 mil na versão turbo.

O governo considera a Jeep como parte do grupo FCA Fiat Chrysler (junto com a Fiat) e a Peugeot e a Citroën como uma só empresa, por isso diz que há 9 montadoras no programa. Se as marcas foram contadas separadamente, são 11 montadoras com direito ao subsídio. Além disso, as quatro fazem parte do mesmo grupo automotivo: a Stellantis. Já a General Motors (GM) do Brasil é a dona da Chevrolet.

Jeep
• Renegade (2 versões): Turbo e Sport

Nissan
• Kicks (2 versões): Active e Sense

Versões iguais, subsídios diferentes

Outra questão da tabela é que existem subsídios diferentes para uma mesma versão de um mesmo modelo. A particularidade ocorre com apenas 3 das 115 versões com desconto:

  1. Chevrolet Onix LT2 1.0 MT;
  2. Chevrolet Onix Plus LT1 1.0 MT; e
  3. HB20 Comfort 1.0T 6MT (AV+ESC+SAB).

Chevrolet: O Onix LT2 tem 2 descontos patrocinados diferentes (R$ 5 e R$ 6 mil), assim como o Onix Plus (R$ 6 mil e R$ 7 mil), mas a GM não explica quais são as alterações específicas que ocasionam esta situação. Diz apenas que “um mesmo modelo e versão de veículo pode ter diferentes configurações de conteúdo, influenciando também na sua classificação dentro do programa”.

Isso ocorre porque, para definir os “descontos patrocinados” dos automóveis, o governo considerou três fatores: preço, eficiência energética e “densidade industrial” (quantidade de peças produzidas no Brasil). Cada critério tem uma pontuação e, quanto maior a soma total desses fatores, maior o desconto no carro.

Como as montadoras podem aumentar a quantidade de peças nacionais em uma mesma versão, de um ano para o outro, ou até mesmo a eficiência energética do motor, a pontuação do carro pode mudar — e alterar o tamanho do subsídio. Foi o que aconteceu com a Hyundai, por exemplo.

Hyundai: O HB20 Comfort 1.0T 6MT tem 3 subsídios diferentes: R$ 2 mil e R$ 4 mil no tipo AV+ESC+SAB e R$ 4 mil no tipo AV+ESC+SAB MY23/24 (ano 2023/modelo 2024). A montadora afirma que “cada versão informada pela Hyundai apresenta uma particularidade, principalmente em relação ao ano de fabricação, ano do modelo e equipamentos disponíveis”.

“Uma mesma versão apresenta modificação de conteúdo nacional ou de preço público quando troca de ano de fabricação, modelo ou conteúdo. Como cada desconto do governo será validado pelo número de chassi do veículo, é necessário que todas as variáveis sejam informadas e consideradas na tabela”, afirma a montadora coreana.

Governo: Procurado, o MDIC afirmou que, “na grande maioria dos casos, essas diferenças não alteram o volume de desconto patrocinado”, mas que vai buscar mais informações com as montadoras sobre essas exceções, para incluir na tabela “as especificidades que definem os valores maiores”.

A pasta também confirmou à reportagem que “há apenas três casos, dos que aparecem na lista, em que versões idênticas têm descontos diferentes: Onix LT2 1.0 MT, Onix Plus LT1 1.0 MT e HB20 Comfort 1.0T 6MT AV+ESC+SAB”.

Renault, Toyota e VW

Apenas três montadoras não têm qualquer problema nas informações enviadas ao governo: Renault, Toyota e Volkswagen. Juntas, elas têm 30 versões de 12 modelos:

Renault
(12 versões de 5 modelos)
• Duster (2 versões): Intense CVT e Intense MT
• Kwid (4): Zen, Intense, Intense Biton e Outsider
• Logan (2): 1.0 Life e 1.0 Zen
• Oroch (1): 1.6 Pro
• Stepway (3): 1.0 Zen, 1.0 Iconic CVT e 1.6 Zen

Toyota
(4 versões de 2 modelos)
• Yaris hatch (2 versões): XL e XS
• Yaris sedã (2): XL e XS

Volkswagen
(14 versões de 5 modelos)
• Gol (2 versões): 1.0 Trendline e Last Edition
• Polo (5): Comfortline, Highline, MPI, Track e TSI
• Virtus (3): Manual, Automático e 200 TSI Comfortline
• Saveiro (3): Robust DC, Robust SC e Trendline SC
• T-Cross (1): Sense

Lucas Sampaio

Jornalista com 12 anos de experiência nos principais grupos de comunicação do Brasil (TV Globo, Folha, Estadão e Grupo Abril), em diversas funções (editor, repórter, produtor e redator) e editorias (economia, internacional, tecnologia, política e cidades). Graduado pela UFSC com intercâmbio na Universidade Nova de Lisboa.