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E se a Rouanet subsidiasse você, ao invés de artistas?

Os debates sobre Lei Rouanet são ardentes, mas dificilmente os prós e contras sentam para conversar e chegar a um meio-termo. Mudando o sentido da política de incentivo a cultura, subsidiando o consumo ao invés da produção, seria possível abarcar as melhores críticas e defesas da Rouanet.
Por  Pedro Menezes
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

O desagrado dos conservadores com a classe artística é notório e tem um grande símbolo: a Lei Rouanet. À esquerda, não falta quem considere a pauta um retrocesso indiscutível, dado que grande parte do mundo subsidia a produção cultural nacional de alguma forma.

Ambos os lados dessa discussão tem excelentes pontos. Enquanto assistia a conversas sobre a hashtag #RouanetNão, fiquei pensando como as melhores críticas e defesas da Lei Rouanet poderiam chegar a um consenso se a política cultural do Estado mudasse o seu foco, do produtor para o consumidor.

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Em resumo, a Lei Rouanet incentiva doações privadas para produções artísticas. Primeiro, o produtor pede autorização do Estado para arrecadar doações. No passo seguinte, os responsáveis pelo projeto vão atrás de quem tope lhes bancar. O Estado incentiva a doação através de deduções tributárias – ou seja, há dinheiro público financiando as obras, indiretamente. Quem doa paga menos imposto.

Dois pequenos grupos da elite – burocratas e empresários – definem quais produções receberão incentivo estatal. No fim das contas, o espectador do cinema nacional é obrigado a assistir uns 5 minutos de logomarcas antes do filme começar.

Uma política de incentivo à demanda retiraria o empresário do atual modelo, substituindo-o pelo consumidor. Outra característica fundamental seria o fim da pré-determinação no valor dos incentivos. No caso, o critério para liberação de subsídios públicos se daria quando a obra é consumida.

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Ainda pode existir uma seleção prévia sobre quais obras podem ser subsidiadas, seja para evitar subsídios a grandes produtores que não precisam da verba, ou para incluir algum critério quanto ao valor cultural da obra. Analogamente, o Estado também poderia destinar a quantia a quem tem menor capacidade de pagar pelo ingresso.

Partidários do #RouanetNão afirmam que burocratas e empresários decidem a alocação de dinheiro público sem qualquer participação do consumidor. O setor cultural se submeteria a certas bolhas de elite, distantes do modo como o cidadão comum vê o mundo. Uma política de incentivo à demanda abarcaria essa crítica, retirando poder das elites e dando um caráter descentralizado ao processo.

A este ponto, boa parte da esquerda responde apontando o desejo de censura de quem critica a Rouanet. Segundo se diz, conservadores querem acabar com a Lei Rouanet porque não toleram o pensamento crítico promovida pela boa arte. Uma política cultural de incentivo à demanda é praticamente imune a esta crítica, pois envolveria menos controle centralizado sobre o conteúdo incentivado. A decisão sobre quem recebe o incentivo estatal estaria na mão de milhões de cidadãos independentes.

Caso um programa do tipo ofereça subsídios de 5 reais a 200 milhões de ingressos para produções culturais (um para cada beneficiário do Bolsa Família), o gasto seria semelhante ao da Lei Rouanet em 2017, sobrando ainda 200 milhões para administração do projeto. O dinheiro continuaria parando nas mãos dos produtores, mas o repasse seria engatilhado pelo povo. Também é importante notar que essa estimativa toma como referência o orçamento destinado à Rouanet num ano de crise.

Os defensores da lei apontam para a radicalidade do #RouanetNão, pois grande parte dos países tem lei de incentivos à produção cultural. Sob esse ponto de vista, o Brasil retrocederia sem investimento público no setor.

Além disso, até economistas liberais reconhecem que a cultura nacional tem características de bem público, o que justificaria algum incentivo pelo Estado. Se o governo já incentiva a produção de automóveis e a Zona Franca de Manaus, por que não gastar muito menos dinheiro com a produção de memória coletiva e identidade num país tão carente disso? Por mais que cortes tenham sido comuns nos últimos anos, acabar com o orçamento da cultura seria politicamente muito difícil.

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Uma política de demanda possui boas respostas a essas críticas. O governo continuaria incentivando a produção cultural, com dinheiro fluindo do Estado para quem produz cultura. Continua existindo um incentivo.

Para os liberais que são contrários a qualquer investimento público em produção cultural, seja porque imposto é roubo ou por ceticismo com relação ao Estado, a proposta representaria avanços, diminuindo a discricionariedade dos políticos na hora de alocar o subsídio.

Uma última objeção que imagino comum é que a cultura não pode se submeter a lógicas de mercado, pois não é mercadoria. Primeiramente, como já argumentei, o desenho do programa pode não subsidiar o ingresso do jovem rico que assiste “E se eu fosse você? 2”. É possível focar o benefício na família pobre e interioriana que se interessa pela produção nacional, pré-selecionando quais obras entram no incentivo. Basta escrever alguns trechos a mais num projeto de lei, não é difícil. Ainda que continue existindo algum controle do Estado sobre quem está apto a receber a grana, a decisão final estaria com o consumidor, papel hoje ocupado pela empresa-mecenas.

Além disso, o modelo atual é claramente falível na busca do interesse público, assunto tão difícil que jamais será resolvido por poucas decisões burocráticas ou empresariais. É mais provável que o interesse público seja atingido quando ao menos parte da decisão está com o… público.

A atual Rouanet talvez até opere com uma lógica parcialmente de mercado, mas nesse é importante ressaltar que está mais próxima de um oligopólio do que da concorrência selvagem. No modelo vigente, os recursos da sociedade são alocados com influência desproporcional de poucos atores responsáveis pela oferta. Uma política pública verdadeiramente liberal e pró-mercado precisa de descentralização para Hayek nenhum botar defeito.

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Com a mudança, o risco de empreender seria do produtor cultural, com remuneração variável conforme decisões descentralizadas, que surgiriam por ordem espontânea. Sem submissão a decisão de poucos, censura e panelinhas são mais difíceis.

Meu texto certamente não encerra os debates sobre o assunto. Quando falamos sobre política pública, frequentemente o diabo está nos detalhes, no desenho específico da ideia quando vira prática. Críticas podem ser incorporadas à proposta, não precisamos jogar tudo fora por qualquer defeito.

Essencialmente, uma política de incentivo a demanda pode corrigir os erros das atuais políticas de incentivo a cultura. Além da Rouanet, seria possível atingir efeitos semelhantes aos desejados com a lei da meia-entrada e cotas para produção nacional em meios de comunicação, mas driblando as críticas que geralmente acompanham essas ideias.

Ultimamente, o Brasil anda precisando bastante de consensos e boas conversas. Mudar a política cultural da oferta para a demanda pode ser uma oportunidade de ouro nesse sentido. Uma política de incentivo à demanda poderia ser esse meio-termo que dialoga com os prós e contras a Lei Rouanet.

Pedro Menezes Pedro Menezes é fundador e editor do Instituto Mercado Popular, um grupo de pesquisadores focado em políticas públicas e desigualdade social.

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