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Senado quer aprovar às pressas uma lei que censura as redes sociais

Apesar de bem intencionado, projeto instituirá mecanismos de censura na internet brasileira
Por  Pedro Menezes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

As redes sociais são uma selva cada vez mais hostil aos usuários bem intencionados. Desde que comecei a escrever na imprensa sobre política e economia, já recebi inúmeras ameaças de morte ou agressão, assisti à circulação de mentiras sobre minha vida pessoal e, o que é pior, sei que não posso contar com as autoridades para impedir esses atos.

Meu caso é pequeno perto do que acontece por aí. Ao conversar com figuras muito mais influentes na cena pública nacional, percebo que eles passam por coisa bem pior.

Falsidades circulam livremente, ameaças abundam. No caso de políticos, por exemplo, a coisa é bem feia. Sejam bolsonaristas, petistas ou não-alinhados, praticamente todos sofrem cotidianamente com a barbárie que tomou a internet.

Não é por falta de empatia, portanto, que escrevo este texto. Entendo que mentiras, agressões e comportamentos irresponsáveis são um problema crescente no debate público.

Também compreendo que muitos dos parlamentares que discutem a chamada Lei das Fake News (PL 2630/20) possuem boas intenções. Mas elas podem gerar um resultado desastroso.

Que projeto é esse?

O projeto em questão foi proposto por parlamentares do movimento Acredito. A primeira versão foi apresentada pelos deputados federais Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tabata Amaral (PDT-SP) em 1º de abril deste ano.

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No dia 13 de maio, o senador Alessandro Vieira (CIDADANIA-SE), filiado ao mesmo movimento, apresentou um texto muito similar ao Senado.

Davi Alcolumbre quer votar o projeto na próxima terça-feira, dia 2 de junho. Tamanha pressa só foi possível por conta da pandemia em curso, que acelerou a tramitação legislativa.

Entre outras medidas, o PL 2630 pretende responsabilizar as grandes redes sociais pelo conteúdo publicado nelas.

Facebook, Twitter, Instagram e outras redes serão obrigadas a financiar estruturas de verificação da informação, restringir a circulação de publicações classificadas como desinformativas (sem necessariamente tirar do ar), dentre outras medidas.

O projeto também aborda problemas como os fakes (contas inautênticas) e bots/robôs (disseminadores artificiais), restringindo sua atuação nas redes. O artigo 4º do PL define o que é desinformação, conta inautêntica e disseminadores artificiais da seguinte forma:|

“desinformação: conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia;

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conta inautêntica: conta criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação ou assumir identidade de terceira pessoa para enganar o público;

disseminadores artificiais: qualquer programa de computador ou tecnologia empregada para simular, substituir ou facilitar atividades de humanos na disseminação de conteúdo em aplicações de internet;”

Como foi o debate do PL?

Um problema grave do PL é sua tramitação acelerada, permitida pela pandemia que vivemos. Sem passar pelo processo tradicional de tramitação, com uma consulta pública curta, o PL deve ir a plenário cerca de dois meses após sua primeira versão ser apresentada.

Assustadoramente, a proposta que Davi Alcolumbre pretende votar na próxima terça foi apresentada cerca de 20 dias antes da apreciação pelo plenário – e 16 dias antes da publicação deste texto. O Marco Civil da Internet, por exemplo, passou por quase cinco anos de debates antes de ser aprovado.

É democrático que mudanças tão importantes para a sociedade brasileira e cruciais para o exercício da liberdade de expressão no país sejam aprovadas com tanta pressa?

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Na minha opinião, claramente não. Davi Alcolumbre deveria retirar o projeto da pauta da próxima semana. Felizmente, essa opinião não é só minha.

Alguns notórios disseminadores de desinformação, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), já se colocaram contra o PL 2630/2020. Mas engana-se quem pensa que bolsonaristas são os únicos oponentes do projeto.

Boa parte da comunidade de especialistas dedicada ao estudo do direito nas redes sociais também fez severas críticas à medida.

Por exemplo:

– O Instituto de Referência em Internet e Sociedade recomenda que “os projetos não sejam votados, até que uma construção transparente e efetivamente colaborativa seja possível”;

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– A Coalizão Direitos na Rede, que reúne diversas organizações do setor, também se opõe ao texto e considera que o PL oferece “riscos significativos ao exercício da liberdade de expressão na Internet”

– O Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife é outro oponente do projeto, por considerar que o texto viola “princípios fundamentais para uma Internet aberta e livre”, inclusive a liberdade de expressão;

– Mariana Valente (Insper) e Francisco Cruz (USP), diretores do InternetLab, consideram que “acelerar tais iniciativas na queima-roupa da epidemia será vulnerabilizar nossos direitos agora e depois que ela passar”;

– Cristina de Luca, jornalista com ampla experiência no meio digital, não usa meias palavras ao classificar o projeto como “lei ruim”, que põe em risco a liberdade de expressão e “cheio de boas intenções, mas também cheio de erros conceituais”;

Eles não foram os únicos, mas não dou outros exemplos para não cansar o leitor.

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Grande parte da comunidade de especialistas que se dedica ao debate sobre direitos digitais é frontalmente contra o PL. Mas Davi Alcolumbre quer votá-lo logo, sem escutar quem estuda o assunto.

Por que há censura?

O título desse texto nos ajuda a entender por que o PL se trata de uma má ideia: “Senado quer aprovar às pressas uma lei que censura as redes sociais”.

Trata-se da minha opinião, abarcada numa das definições da palavra “censura”: restrição à publicação, exibição, etc.

Segundo o PL, deve ser considerada como desinformação todo “conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia”.

Sou capaz de apostar que, para muitos defensores do projeto, o título que usei é desinformativo, pois não considera o contexto democrático do país e as ressalvas feitas pelo PL.

O uso da palavra “censura” no título pode ser considerado como “manipulado ou forjado”, dado que definições mais restritas do verbo “censurar” podem não ser inteiramente adequadas. E, para quem defende o projeto, minhas críticas causam danos coletivos.

Ainda que diversos especialistas concordem com o risco que o PL 2630 traz à liberdade de expressão, checadores bem intencionados, caso discordem de mim, poderiam classificar este texto como desinformação.

Eis o risco de uma definição tão ampla e vaga, que não atingirá apenas notícias abertamente falsas.

A checagem de fatos não se resume a mentiras absurdas. A distinção entre juízos de fato e juízos de valor não é tão objetiva quanto gostariam os autores do projeto.

Mesmo as agências de checagem mais sérias, que supostamente aderem a um método preciso, cometem erros absurdos com frequência. Numa breve pesquisa, encontrei alguns exemplos da Agência Lupa:

– Em janeiro de 2018, Henrique Meirelles afirmou o seguinte: “Depois de anos de isolamento, o Brasil está promovendo uma série de ações para abertura da economia e atração de investimentos internacionais”. Para a Agência Lupa, a afirmação é “insustentável”;

– No início de 2019, Paulo Guedes disse que “a pirâmide demográfica brasileira está virando, na verdade, um losango”. A Agência Lupa classificou como “falso” porque a pirâmide não se parece perfeitamente com um losango, na opinião deles.

Esses são dois erros pontuais, nos quais a maioria dos economistas concordaria que a Agência Lupa errou. Eles nos mostram, no mínimo, que a classificação de “fake news” não se restringe a notícias como “comer minhoca melhora a imunidade contra o Covid-19” e outras patentemente falsas.

Mesmo que o leitor não concorde comigo quanto aos erros da agência, convenhamos: não há “preto no branco” em nenhum dos casos citados.

Há também casos como o do jornal “New York Post”, que publicou um artigo de opinião questionando as informações que a China tem fornecido sobre a pandemia de Covid-19.

Não havia afirmações, apenas apontamentos sobre falhas no discurso oficial chinês e possíveis fatos O Facebook classificou o artigo como falso, restringindo a circulação dele na rede.

Uma comissão de “verificadores independentes” contratada por grandes redes sociais tende a cometer ainda mais erros do que agências como a Lupa, pois avaliaria uma quantidade muito maior de postagens e teria incentivos para proteger o contratante das punições previstas no PL.

Mesmo no caso dos “bots”, trata-se de uma tecnologia que pode ser utilizada para o bem. Um exemplo: diversos perfis no Twitter se dedicam a investigar hashtags criadas por bots e denunciam, em tempo real, quais conteúdos são disseminados por robôs. Órgãos de saúde também estão utilizando essa tecnologia para tirar dúvidas sobre o Covid-19. Empresas utilizam robôs para atender clientes insatisfeitos.

Vamos impedir todos de usarem essa tecnologia? Talvez a restrição prejudique apenas os honestos, dado que usuários mal intencionados ainda teriam a opção de hospedar seus robôs no exterior.

A barbárie que tomou as redes sociais deve, sim, ser alvo de apreciações legislativas. Facilitar a responsabilização de usuários que publicam notícias falsas, por exemplo, seria uma boa medida. Afinal, já temos leis contra calúnia e difamação. O que nos falta é permitir que essa legislação seja aplicada com celeridade.

O PL 2630 está tramitando a toque de caixa, com uma rapidez incompatível com um debate democrático adequado. As boas intenções do projeto são muito pouco relevantes se comparadas ao perigo de graves restrições da liberdade de expressão.

Não há justificativa para que uma mudança tão importante seja aprovada à revelia dos principais estudiosos do assunto. Ao que parece, estamos diante do clássico caso de remédio pior do que a doença.

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Pedro Menezes Pedro Menezes é fundador e editor do Instituto Mercado Popular, um grupo de pesquisadores focado em políticas públicas e desigualdade social.

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