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Fake news, liberdade de expressão, posições anticientíficas: a Justiça consegue arbitrar a verdade?

Judiciário deve possibilitar que novos desenhos de governança nos ajudem a reformar nossa constituição de conhecimento - sem confundir as disputas do mercado de ideias com o papel garantidor do Estado de Direito
Por  Diogo G. R. Costa
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

Como combater a mentira sem ameaçar a liberdade de expressão e a democracia? Não é novidade que desinformação e notícias falsas, muitas vezes propositais, são um problema grave dos dias de hoje. Há um entendimento de que as empresas de tecnologia da informação não devem ter, sozinhas, a palavra final sobre o que pode ou não pode circular de informação na sociedade. Mas qual deve ser o papel do Estado em fazer essa mediação?

O ministro Dias Toffoli já falou que o poder Judiciário, de maneira geral, e o STF, em particular, devem cumprir o papel de “editores de um país inteiro.” Com o objetivo de identificar e combater informações mentirosas, o tribunal criou um Programa de Combate à Desinformação. O ministro Luis Roberto Barroso excluiu da proteção da liberdade de imprensa “teorias conspiratórias e a difusão da desinformação, incentivando a agressão e posições anticientíficas, que levam à morte”.

Nossos juízes têm razão em dizer que a qualidade das informações circulantes nas redes sociais tem impacto na preservação das instituições democráticas. Mas a ciência não se resume a um conjunto de proposições que podem ser averiguadas como falsas ou verdadeiras. A ciência é um processo. As partes interessadas nesse processo epistêmico devem “buscar maneiras não coercitivas de julgar disputas sobre a realidade”. É o que escreve o analista político Jonathan Rauch no livro “The Constitution of Knowledge”.

Rauch mostra como, para além da constituição política positivada, as democracias modernas também têm outras duas constituições não escritas, mas não menos fundamentais: a constituição econômica e a constituição epistêmica.

A constituição política responde ao problema do Estado de Direito, sobre como harmonizar os interesses próprios de indivíduos e de grupos, sem aniquilar o dinamismo social e sem a necessidade de submissão a uma autoridade supremacista.

A pergunta da constituição epistêmica, apesar de relacionada, é outra: como fazer com que, nas palavras de Rauch, “pessoas com diferenças agudas de opinião sejam induzidas a construir conhecimento, enquanto oferecem estabilidade e dinamismo sem recorrer ao autoritarismo?”

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Rauch não está sozinho em colocar a crise epistêmica no centro dos desafios democráticos, enfrentados pelo mundo todo. Fora do Brasil, alguns livros têm sido publicados sobre questões atuais de epistemologia social. Só neste ano já tivemos “Think Again”, de Adam Grant; “Minds Wide Shut”, de Gary Saul Morson e Morton Schapiro; “The Scout Mindset”, de Julia Galef; e o mais recente, “Rationality”, de Steven Pinker. A crise epistêmica é global.

Historicamente, as constituições de conhecimento ocidentais dependiam de um ecossistema de autoridades intelectuais. O clero moderno girava ao redor da academia e da imprensa, cada país com suas Harvards e seus New York Times. Durante o século 20, essas autoridades intelectuais da sociedade funcionavam como o grande espelho onde a população se enxergava. As pessoas consumiam os mesmos conteúdos, coabitavam um mundo de denominadores comuns.

A revolução digital estilhaçou esse espelho. O que antes era denominador comum se converteu em públicos fragmentados, se enxergando em diferentes pedaços do vidro, hostis uns aos outros, desconfiados de qualquer instituição que queira voltar a exercer o papel de autoridade soberana. Na ausência de autoridades estabelecidas para lidar com essa realidade, em meio à crise da informação, as consequências políticas são reais. Há um vácuo de autoridade epistêmica – um vácuo que, muitos acreditam, deve ser preenchido pela autoridade das instituições do estado brasileiro.

Como peça central dessas instituições, nossa corte suprema não tem, nem deve ter, instituições concorrentes. Seus julgamentos são coercitivos. Seus termos de uso são a própria Constituição Federal. Como instância final de conflitos, ela tem a última palavra na constituição política. Mas, como argumenta Rauch, na constituição do conhecimento ninguém deve ter a última palavra. “O conhecimento é sempre provisório, estando de pé enquanto aguentar a checagem”.

As instâncias de um sistema jurídico funcionam para fechar questões, mas o princípio falibilista significa que as questões do conhecimento, da verdade científica, moral ou filosófica, devem sempre permanecer em aberto. Qualquer pessoa ou autoridade pode estar errada. Diferente de um processo judicial, o processo epistêmico não se dá por encerrado pelo trânsito em julgado. “Nenhuma autoridade ou ativista pode legitimamente encerrar investigações ou debates”, diz Rauch, “tudo o que qualquer um pode fazer é participar da conversa, como todo mundo”.

Encerrar o debate é se remover do sistema liberal de produção de conhecimento. Ninguém tem essa prerrogativa por motivo de raça, religião, orientação ou status. A construção do conhecimento que se aplica ao seu grupo deve ser aplicada aos demais. A autoridade científica, ou a expertise, pode ser conquistada, mas deve seguir um caminho de especialização e reconhecimento aberto a todos. Não existe, para Rauch, tratamento especial para algum “ministério da informação”. “Quando alguém resolve um argumento apelando à sua autoridade pessoal ou tribal, em vez da autoridade conquistada, ocorre uma violação da regra empírica.”

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“The Constitution of Knowledge” relata casos emblemáticos do século 20 em que os ministros da suprema corte americana se posicionaram com relação à constituição do conhecimento. Em 1919, num caso sobre panfletagem contra a guerra, o ministro Oliver Wendell Holmes Jr. disse que “O melhor teste da verdade é o poder do pensamento ser aceito na competição do mercado.” Nos anos 1950, o ministro William O. Douglas utilizou uma expressão que viria a ser popularizada quando qualificou a ordem epistêmica como “um mercado de ideias”.

É esse mercado de ideias que conecta o liberalismo epistêmico aos liberalismos econômico e político. Numa economia de mercado justa, ninguém tem o direito de forçar ninguém a consumir seus produtos. E numa democracia aberta, ninguém tem o direito de forçar ninguém a votar no seu candidato. São sistemas de negociação e persuasão. Empresas e partidos políticos podem usar campanhas publicitárias para informar e até para persuadir o público. Mas não podem substituir a persuasão pela força ou pela autoridade do estado. Na economia de mercado de Adam Smith, e no sistema democrático de James Madison, empreendedores e políticos precisam competir, persuadir, convencer, fazer concessões.

Rauch descreve esse ecossistema que sustenta uma constituição de conhecimento:

“Na busca por apoio, você expõe suas ideias à revisão dos pares e ao debate público, e os críticos trazem perguntas, experimentos e alternativas; ao buscar recrutar outras pessoas para sua visão, você vai refinar suas ideias, adaptá-las, incorporar emendas, enfrentar objeções e experimentar outras ideias. Você será forçado a ajustar seu pensamento e sua estratégia e, como o processo é repetido milhões de vezes por dia em toda a rede baseada na realidade, todo o sistema se torna uma teia dinâmica de persuasão mútua: persuasão crítica, por assim dizer, um processo social de comparar continuamente observações, detectar erros e propor soluções.”

Não chegaremos a esse sistema por imposições das autoridades políticas. Escolher vencedores ou equalizar os termos de serviços de todas as plataformas são armas que não se adequam a combater a tribalização epistêmica ou a criar um ambiente em que haja uma harmonização social do conhecimento objetivo. Como escreveu o cientista político Fernando Schüler, “uma República não se faz com um órgão de Estado fazendo a “curadoria” da sociedade, signifique isso o que significar.” A diversidade de regras pela diversidade de plataformas traz novos ingredientes para um mercado de ideias saudável.

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Rauch entende que não há uma solução compreensiva para a ameaça da desinformação. Essa guerra não será vencida por uma política pública, mas por melhor design de produtos. Compare, por exemplo, a Wikipedia ao Twitter. O próprio Jack Dorsey, fundador do Twitter, já admitiu que os incentivos na busca de likes geram incentivos ruins para seus usuários. Em contraste, a Wikipedia de Jimmy Wales desenhou regras e políticas internas que incentivaram a prestação de contas, a correção de erro e a persuasão. Está longe de ser uma rede perfeita. Algumas páginas (e alguns vieses) têm prejudicado a comunidade nos últimos tempos, mas é uma enciclopédia que conseguiu ser mais condutora da construção mútua de conhecimento do que talvez qualquer outra empreitada humana na história moderna.

O Facebook, como maior ator desse mercado, também está tentando criar novos modelos de governança. Instituiu, em 2019, um conselho de ilustres representantes da diversidade cultural americana com o poder de tomar a última decisão com relação às mais contestáveis postagens e contas na plataforma. A decisão desse colegiado ocorreria sem recurso ao Zuckerberg. São, assim como o nosso STF, guardadas as devidas proporções, a última instância. Mas o Facebook é apenas um competidor no mercado de ideias, com a principal diferença que suas decisões não são vinculantes, nem coercitivas.

Em seu papel constitucional, o Judiciário deve possibilitar que novos desenhos de governança nos ajudem a reformar nossa constituição de conhecimento – sem confundir as disputas do mercado de ideias com o papel garantidor do Estado de Direito.

 

Diogo G. R. Costa É mestre em ciência política e presidente da Escola Nacional de Administração Pública (Enap)

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