Reoneração, Perse, Desenrola: o que explica a “pilha” de MPs pendentes no Congresso

Com margem menor de negociação e diante de Legislativo empoderado, governo vê MPs acumularem e teme trancamento da pauta; disputa por Orçamento e sucessão na Câmara e no Senado também pesam

Fábio Matos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao lado dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em sessão do Congresso Nacional (Foto: Alessandro Dantas/Divulgação/Flickr Planalto)

Publicidade

Na retomada das atividades do Congresso Nacional, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem um grande desafio pela frente, em mais um duro teste para sua articulação política: tentar diminuir a pilha de 20 Medidas Provisórias (MPVs) que estão pendentes de votação, muitas das quais próximas de perder a validade, o que pode levar ao trancamento da pauta dos plenários das Casas legislativas.

As MPVs são editadas pelo presidente da República em assuntos considerados relevantes e urgentes para o país, nos termos do que determina a Constituição Federal. Elas produzem efeitos imediatos – valem ao mesmo tempo em que tramitam no Parlamento, salvo quando há indicação contrária (como no caso de matérias de natureza tributária) –, mas dependem de aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para que, efetivamente, se transformem em lei. O prazo de vigência de uma MPV é de 60 dias, prorrogáveis por mais 60. Entretanto, se não tiver sido votada depois do 45º dia de sua publicação, ela tranca a pauta da Casa na qual estiver tramitando.

Assim que chega ao Congresso, a MPV é analisada por uma comissão mista (formada por deputados e senadores), que aprova um parecer sobre o projeto. Caso o texto original seja modificado, a MPV passa a tramitar como projeto de lei de conversão (PLV). Depois de o parecer ser aprovado na comissão mista, o texto é encaminhado para o plenário da Câmara e, na sequência, para o do Senado. Com a aprovação em ambas as Casas legislativas, o texto é enviado à Presidência da República para sanção. O chefe do Executivo pode vetá-lo parcial ou integralmente – todos os vetos devem ser analisados pelo Congresso, que pode derrubá-los. Caso a MPV seja aprovada sem alterações pelos parlamentares, ela é promulgada automaticamente, sem retornar ao Palácio do Planalto. Desde que tomou posse, Lula já editou 51 MPs – muitas “caducaram” (ou seja, perderam a validade sem serem analisadas).

Continua depois da publicidade

Reoneração da folha, Perse, prorrogação do Desenrola e mais

Entre as 20 MPVs pendentes de análise, aquela que deve trazer mais dor de cabeça para o governo é a que reonera a folha de pagamentos de 17 setores da economia (MPV 1.202/2023). Em novembro do ano passado, o Congresso aprovou a prorrogação de benefício para esses segmentos até 2027, mas a lei foi vetada por Lula. Em dezembro, os parlamentares derrubaram o veto, e a nova lei foi promulgada. Pelo texto, empresas contempladas poderão substituir o recolhimento de 20% do imposto sobre os salários por alíquotas que variam entre 1% e 4,5% da receita bruta. Logo após a promulgação da lei, Lula editou a MPV 1.202/2023, que revoga o texto e traz uma nova regra para o benefício. A matéria admite uma alíquota menor de imposto a boa parte dos setores que já eram atendidos, mas limita o benefício ao teto de um salário mínimo por trabalhador. E ainda prevê o fim gradual do incentivo até 2027.

Também foi incluída no texto da MPV a revogação do Programa Emergencial de Retomada dos Setores de Eventos e Turismo (Perse), criado em 2021 para socorrer o setor de turismo e eventos, um dos mais atingidos pelos efeitos econômicos da pandemia de Covid-19. O texto prevê a volta da cobrança da CSLL, do PIS/Pasep e da Cofins para os setores hoje beneficiados já a partir de abril deste ano, cumprindo a noventena exigida pela Constituição. A retomada da incidência do IRPJ, por outro lado, ocorreria somente em 2025, dada a necessidade de atendimento ao princípio da anualidade − ou seja, a regra só pode valer no exercício seguinte ao de sua aprovação. O fim do Perse é outro ponto de atrito entre Executivo e Legislativo.

“O Congresso já se posicionou de forma contundente contra o fim da desoneração. Foi um debate extenso e que encontrou ampla convergência nas duas Casas. Se o governo quiser evitar uma derrota retumbante, precisará negociar uma saída alternativa, que preserve a decisão dos parlamentares”, observa Fábio Zambeli, vice-presidente da consultoria Ágora Assuntos Públicos.

Continua depois da publicidade

Para o cientista político Vítor Oliveira, diretor da consultoria Pulso Público, a MPV da Reoneração “já nasceu morta”. “A negociação está apontando que ela pode sobreviver apenas com resquícios do que era a proposta inicial. Temos um Executivo que está precisando escolher as batalhas – e essa é uma que tem uma diferença muito grande entre o que o Executivo quer e o que o Congresso quer”, aponta.

Além da reoneração da folha, integram o grupo de MPVs pendentes de votação a prorrogação do Desenrola Brasil (programa de renegociação de dívidas que beneficiou mais de 11 milhões de pessoas até janeiro); o auxílio extraordinário para pescadores beneficiários do programa Seguro-Defeso; e a instituição do Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), que concede créditos usados no abatimento de tributos para empresas que investirem em pesquisa e tecnologia na produção de veículos “sustentáveis”. Outras dez propostas abrem créditos extraordinários para diversos órgãos públicos, somando mais de R$ 96 bilhões. A maior parte desse valor (R$ 93,1 bilhões) está destinada para a quitação de precatórios (MP 1.200/2023). Sete dessas dez proposições liberam R$ 1,9 bilhão para o combate a desastres climáticos (veja a tabela completa com as 20 MPs pendentes de análise, ao final desta reportagem).

Congresso empoderado e o “fator Lira”

Segundo os analistas consultados pela reportagem do InfoMoney, o acúmulo de MPVs pendentes nos escaninhos do Congresso retrata o “novo normal” nas negociações entre governo e parlamentares em um contexto de empoderamento cada vez maior do Legislativo em relação ao Executivo. Ao sancionar a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, Lula vetou R$ 5,6 bilhões em emendas parlamentares, o que deflagrou um novo capítulo da crise entre Planalto e Congresso e revoltou o “centrão”, grupo liderado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – com quem Lula tomou um café da manhã, no início de fevereiro, para tentar acalmar os ânimos. Mesmo com o veto, o valor total destinado às emendas para deputados e senadores neste ano ficou em R$ 47,4 bilhões.

Publicidade

“Esse fenômeno da dificuldade do governo validar as MPVs decorre de vários fatores. O primeiro é a autonomia cada vez mais ampla do Congresso sobre a gestão orçamentária federal. O segundo é o fato de a configuração das duas Casas ser predominantemente de centro-direita, o que cria mais embaraços para o posicionamento dos parlamentares sobre medidas adotadas por um governo de esquerda. E o terceiro fator é uma disputa interna por espaço e poder entre Câmara e Senado, que tem travado a montagem de comissões mistas. Portanto, não se trata de um problema de governabilidade trivial. É bastante complexo”, explica Zambeli.

“Se as dificuldades de articulação política e os embates dentro das duas Casas permanecerem no atual status, é de se esperar que ‘o novo normal’ seja um quadro de MPVs tramitando de forma lenta e embaraçosa e os pontos mais urgentes da pauta sendo destravados após intervenção dos ministros do Planalto e da equipe econômica”, projeta o analista. “O principal risco é o travamento de medidas de impacto econômico imediato e de efeito fiscal, criando instabilidade na agenda de controle das contas públicas. Como é aguardado um pacote de iniciativas arrecadatórias para 2024, vejo essa como a principal vulnerabilidade para o Planalto.”

Para Vítor Oliveira, as ferramentas de que o governo dispõe para negociar com o Legislativo “já foram mais poderosas em outros momentos”. “Não é uma situação confortável para o Planalto, o que significa que o governo terá de abrir mão de alguma coisa. Se tudo se mantiver como está, sem aumento de emendas ou redistribuição de ministérios, o governo terá de abrir mão de texto, de ‘pedaços’ das MPVs. Isso significa levar as normas mais para perto daquilo que é a preferência mediana do Congresso”, afirma. “Ao contrário do que acontecia em anos anteriores, o Executivo não consegue mais transformar a coalizão de governo em um rolo compressor. Isso não existe mais no presidencialismo brasileiro. Aquela ideia de que você fecha acordo com os partidos no atacado está cada vez mais superada. O governo vem tendo de negociar ponto a ponto, o que é muito custoso.”

Continua depois da publicidade

Zambeli tem avaliação semelhante. “O problema central é que havia um modelo de construção de maioria parlamentar estruturado em emendas e que dava protagonismo ao comando da Câmara e do Senado, as RP9 [as “emendas de relator”, o chamado “orçamento secreto”], que foram barradas pelo STF [Supremo Tribunal Federal]”, diz. “Esses recursos, quase R$ 20 bilhões, entraram em uma espécie de limbo. Uma parte expressiva dessa fatia está diluída e o governo não vem cumprindo os acordos de repasses. Esse foi o mote do discurso de Arthur Lira na volta do recesso.”

De acordo com os especialistas, outro componente que acaba afetando as negociações políticas entre governo e Congresso é a proximidade das eleições das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, que ocorrem em fevereiro de 2025. Arthur Lira e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que já se reelegeram uma vez, têm apenas mais um ano de mandato à frente das duas Casas legislativas e tentam influenciar na escolha de seus sucessores para não perderem relevância no tabuleiro político.

“Todo o debate sobre o orçamento é a gênese da eleição das Mesas Diretoras. É nesse momento em que se mede a força de cada bloco político. Em um cenário de indefinição sobre nomes para a sucessão de Lira, aumenta a imprevisibilidade sobre votações de medidas que exigem uma maior presença em plenário”, afirma Zambeli, que destaca a pressão do presidente da Câmara pela demissão do ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT-SP). “Os líderes mais importantes do Congresso demandam uma mudança na articulação política com o governo. Isso vem sendo pedido há quase um ano. Arthur Lira já ‘demitiu’ o ministro [Padilha] várias vezes. Os congressistas também não gostam do relacionamento com a Casa Civil [comandada pelo ministro Rui Costa, do PT]. Não existe uma harmonia na relação.”

Publicidade

Vitor Oliveira, por sua vez, acredita que o bombardeio de Lira contra Padilha simboliza, fundamentalmente, o esvaziamento gradual do poder exercido pelo presidente da Câmara. “Lira está enfraquecido. O fato dele estar gritando mais é muito mais um sintoma de enfraquecimento do que de sua força. É o famoso fenômeno do ‘pato manco’, o líder político em fim de mandato”, explica. “Padilha está ali para apanhar mesmo. Ele é um espantalho para receber pancada porque o Lira não vai falar mal do Lula publicamente. O Padilha já passou por essa posição em outros governos, é um político experiente. Parece-me que o governo não quer satisfazer todos os desejos do ‘centrão’ ou do Lira. Não atender a todos os pedidos é uma estratégia neste momento. A cada dia que passa, fica menos arriscado para o governo deixar de pagar contas que foram acertadas lá atrás”, conclui.

Saiba quais são as 20 MPs pendentes de votação no Congresso:

Medida ProvisóriaTemaValidade
MP 1.184/2023Tributação de aplicações em fundos de investimento4 de fevereiro (prazo prorrogado)
MP 1.186/2023Combate a emergências fitossanitárias ou zoossanitárias9 de fevereiro (prazo prorrogado)
MP 1.188/2023Liberação de R$ 360,9 milhões para conter efeitos de ciclone no RS 27 de fevereiro (prazo prorrogado)
MP 1.189/2023Regulamentação de subvenção econômica a empreendedores atingidos por ciclone no RS5 de março (prazo prorrogado)
MP 1.190/2023Liberação de R$ 400 milhões a empreendedores atingidos por ciclone no RS5 de março (prazo prorrogado)
MP 1.191/2023Liberação de R$ 259 milhões a cidades afetadas por desastres climáticos3 de abril (prazo prorrogado)
MP 1.192/2023Auxílio extraordinário para pescadores atingidos por seca na região Norte9 de abril (prazo prorrogado)
MP 1.193/2023Liberação de R$ 195 milhões para moradia de pessoas de baixa renda após ciclone no RS18 de abril (prazo prorrogado)
MP 1.194/2023Liberação de R$ 100 milhões para segurança alimentar de vítimas de seca na região Norte 22 de fevereiro
MP 1.195/2023Liberação de R$ 300 milhões para auxílio a pescadores atingidos por seca na região Norte22 de fevereiro
MP 1.196/2023Liberação de R$ 50 milhões para resgate de brasileiros no Oriente Médio 28 de fevereiro
MP 1.197/2023Liberação de R$ 879,2 milhões para compensar perdas de arrecadação com ICMS1º de março
MP 1.198/2023Criação de bolsa-permanência no ensino médio para estudantes de baixa renda7 de março
MP 1.199/2023Prorrogação do programa Desenrola Brasil até 31 de março de 202421 de março
MP 1.200/2023Liberação de R$ 93,1 bilhões para quitação de precatórios29 de março
MP 1201/2023Remissão de crédito tributário em importação de produtos automotivos do Paraguai31 de março
MP 1.202/2023Reoneração da folha de pagamentos e revogação de benefícios fiscais de 17 setores da economia1º de abril
MP 1.203/2023Reestruturação de planos de cargos e carreiras especializadas 1º de abril
MP 1.204/2023Liberação de R$ 314 milhões para recuperação de infraestrutura destruída pelo fenômeno El Niño1º de abril
MP 1.205/2023Criação do Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover)1º de abril
Fonte: Senado Federal

Fábio Matos

Jornalista formado pela Cásper Líbero, é pós-graduado em marketing político e propaganda eleitoral pela USP. Trabalhou no site da ESPN, pelo qual foi à China para cobrir a Olimpíada de Pequim, em 2008. Além do InfoMoney, teve passagens por Metrópoles, O Antagonista, iG e Terra, cobrindo política e economia. Como assessor de imprensa, atuou na Câmara dos Deputados e no Ministério da Cultura. É autor dos livros “Dias: a Vida do Maior Jogador do São Paulo nos Anos 1960” e “20 Jogos Eternos do São Paulo”.