A indicação de Aloizio Mercadante para o BNDES foi uma das primeiras confirmadas para compor a equipe do novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O economista, que liderou três ministérios no governo de Dilma Roussef (Casa Civil, Ciência,Tecnologia e Informação e Educação) defende o incentivo a políticas industriais como forma de retomar o crescimento sustentável da economia brasileira.

Mesmo com o anúncio de que, até novembro de 2023, o BNDES devolverá tudo o que o Tesouro Nacional emprestou, o nome de Aloizio Mercadante à frente de sua gestão não foi bem recebido pelo mercado. Apesar de ainda não haver confirmação sobre as novas diretrizes, um dos principais temores é de que o estilo heterodoxo do economista faça o banco voltar a apresentar elevadas dívidas junto à União, as quais chegaram a bater US$ 650 bilhões nos governos do PT.

Afinal, turbinar os financiamentos a empresas seria a saída para resgatar a economia? Ou, com mais dinheiro circulando, poderíamos aumentar a inflação e o rombo nas contas públicas e piorar o risco Brasil e a confiança dos investidores? 

Para ajudar a responder a essas perguntas, o InfoMoney conversou com André Roncaglia, doutor em Economia do Desenvolvimento pelo IPE-USP e professor de Economia na UNIFESP. Se você quer entender qual o papel do BNDES na economia, o que esperar de sua gestão no próximo governo e outras dúvidas frequentes sobre o seu funcionamento, continue a leitura a seguir.

O que é o BNDES e qual o seu papel na economia?

Fundado em 1952, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) é uma empresa pública federal vinculada ao Ministério da Fazenda. Como um banco de fomento, o seu objetivo é emprestar recursos a longo prazo para financiar projetos de estímulo a diferentes setores da economia, e que abrangem desde o MEI (Microempreendedor Individual) até grandes corporações brasileiras.

Ou seja, quem precisa de capital de giro, máquinas, obras ou recursos para financiar exportações, por exemplo, pode ter o amparo financeiro do banco. Desde que, é claro, atenda aos pré-requisitos definidos por ele.

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Além de operarem com prazos bem mais estendidos do que os dos bancos comerciais, as taxas dos bancos de fomento são inferiores às praticadas pelo mercado. Por isso, eles são fundamentais para viabilizar determinados projetos, principalmente os de longa maturação e com alto risco envolvido. 

André Roncaglia destaca que os bancos de fomento possuem uma toda uma inteligência específica para avançar em setores mais estratégicos para a economia. 

“Os setores estratégicos são aqueles que trazem benefícios difusos. Ou seja, benefícios que não aparecem necessariamente no balanço da empresa, mas de outras formas, como melhoria na qualidade do ambiente por conta de infraestrutura, redução nos custos de energia, entre outros. Pelo volume financeiro envolvido e prazo de maturação, dificilmente o setor privado consegue emplacar sozinho esse tipo de investimento ”, explica.

Quanto à evolução da atuação, o economista observa que os bancos de desenvolvimento começaram a ganhar corpo a partir do período pós-guerra, no qual houve um grande esforço de reconstrução de várias economias. 

“Naquele contexto, a ideia era justamente segmentar a atividade financeira entre as que são típicas de bancos comerciais e de investimentos. E, na área de investimento, existe um braço público, que vai financiar grandes projetos de infraestrutura. Isso explica o fato de o BNDES ter um aspecto prospectivo, pois ele olha áreas que têm pouca ou nenhuma representatividade no mercado nacional”.

Outra importante função de bancos como o BNDES é acompanhar as transformações do mercado, que passam por mudanças de paradigmas tecnológicos e novas tendências de concorrência internacional.

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“Desde os anos 70, o BNDES passa a ter o propósito de ajudar também na diversificação da pauta exportadora. Isso é muito importante para que a gente consiga fugir da grande tentação que é vender apenas commodities – produtos de baixa sofisticação produtiva e tecnológica”, complementa Roncaglia.

Ou seja, o escopo de um banco como o BNDES é completamente diferente de um banco comercial. O primeiro não olha somente a rentabilidade, mas sim o impacto dos projetos financiados sobre a economia. O segundo é um braço do sistema financeiro, que atende a demandas privadas de todas as ordens, muitas vezes sem relação com o desenvolvimento.

Quando o BNDES empresta dinheiro, é o governo que está gastando?

Não, pois BNDES e Tesouro Nacional são coisas diferentes. Embora o banco esteja sob a estrutura do Poder Executivo, ele tem personalidade jurídica própria, e é um centro de custos que precisa se estabilizar por si só. Ou seja, gerar receitas suficientes para cobrir as próprias despesas.

“Na cabeça das pessoas, ainda é muito nublado como funciona o BNDES. Muitos pensam que o banco simplesmente pega dinheiro do governo e empresta para quem quiser, mas não é assim que funciona, pois a entidade possui regras bem definidas”, reforça o economista.

É importante entender que, além do Tesouro, o BNDES pode captar recursos por meio de outras fontes. Entre elas, estão o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e outros bancos de desenvolvimento ao redor do mundo. 

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De acordo com dados do BNDES, no final do primeiro semestre de 2022 a parcela do Tesouro Nacional no funding total era de 14% contra 49% do FAT, a maior fonte. Segundo o banco, a participação do Tesouro vem sendo reduzida, com queda de 75% entre dezembro de 2017 e junho de 2022. 

No entanto, pode ser que a real dúvida em relação aos recursos seja: até onde o governo pode interferir na forma como o banco irá emprestar? Para Roncaglia, isso não afeta em nada a governança e estabilidade do banco.

“O BNDES pode ter diferentes focos, enfatizar determinados setores a partir de uma diretriz geral de governo. Mas dificilmente será uma fonte de instabilidade para a macroeconomia, como aconteceu no passado. Os grandes aportes que o Tesouro fez na época do governo Dilma (veja o próximo tópico) já foram fortemente reduzidos ao longo dos governos Temer e Bolsonaro. Por isso, a não ser que haja uma mudança muito grande na política de aportes (o que não acho que vá acontecer), não existe essa homogeneidade entre governo e BNDES”, pondera o economista.

Por que o mercado tem receio de Mercadante no BNDES?

O medo de que o BNDES abra as torneiras indiscriminadamente encontra justificativa em alguns acontecimentos recentes da economia. Entre eles, podemos destacar os gastos no governo da ex-presidente Dilma e o calote que o banco levou em algumas obras realizadas no exterior. A seguir, entenda cada uma dessas situações.

Gastos no governo Dilma Rousseff

André Roncaglia explica que há dois tipos de gastos: os que efetivamente são desembolsos, ou seja, saem do caixa do governo, e os tributários, que são as renúncias fiscais. Durante o governo Dilma, tivemos exemplos expressivos dos de ambos. A Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas, em 2016, demandaram fortes desembolsos por parte do governo. Isso porque foi preciso investir ativamente na economia, para habilitar o país a receber os dois eventos. Mas, junto disso, tínhamos ainda o gasto tributário, que se acelerou a partir de 2012.

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“Nesse caso, acho perfeitamente adequada a crítica que se faz ao governo Dilma quanto à falta de restrições na aceleração desses gastos”, observa André. Para o economista, a impressão é de que, conforme se corroía a base de apoio da ex-presidente no Congresso, houve uma tentativa de angariar apoio para recuperar a economia – que já vinha desacelerando –  por meio da redução de custos. 

“No início, as desonerações tinham foco em setores específicos, os quais, teoricamente, poderiam gerar mais empregos, renda, melhorar as exportações … mas em determinado momento, parece que isso saiu do controle, e se expandiu de forma talvez indiscriminada. É como se o governo tivesse ficado refém de quem pressionava politicamente pelas vantagens fiscais”, diz.

Tudo isso contribuiu para o conturbado cenário da reeleição de Dilma. E,  quando Joaquim Levy assume o Ministério da Economia do segundo mandato da presidente, tenta consertar tudo de forma muito abrupta.

“Em pouco tempo, Levy corrige o represamento dos preços, corta investimentos, a gasolina sobe, e tudo de uma vez só. Na ocasião, argumentou-se que, se isso tudo fosse feito rapidamente, o investimento privado tomaria o lugar do público e voltaríamos a ter crescimento, mas não foi o que aconteceu”, lembra Roncaglia.

Obras no exterior financiadas pelo BNDES

Até setembro deste ano, o BNDES acumulava US$ 1,03 bilhão em valores não recebidos da Venezuela (US$ 681 milhões), Moçambique (US$ 122 milhões) e Cuba (US$ 226 milhões). O montante refere-se a obras de grandes empreiteiras brasileiras realizadas nesses países, nos quais ainda há US$ 573 milhões a vencer. Essas informações constam no site do próprio banco.

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No mesmo documento, há os volumes desembolsados e recebidos pelo BNDES nos últimos 14 anos. Entre 1998 e 2017, o banco liberou US$ 10,5 bilhões para o financiamento de obras de engenharia em 15 países. Desse total, US$ 12,8 bilhões já retornaram em pagamentos (principal + juros) até setembro de 2022.

Sobre o financiamento de novos serviços de engenharia no exterior, o BNDES informa que a ação deve ser retomada, porém sob novas regras. Atualmente, isso está sob análise de diversas autoridades legais.

Qual o impacto do BNDES sobre o crescimento econômico?

Como vimos, um banco de fomento não busca exclusivamente a rentabilidade, pois seu principal objetivo é financiar projetos que possam impactar positivamente a economia.

Nesse sentido, André Roncaglia aponta um estudo acadêmico organizado por Samuel Pessoa e Ricardo Barbosa que buscou mensurar os efeitos do banco sobre investimentos, criação de empregos, PIB e outras variáveis macroeconômicas.

“Os artigos têm diferentes abordagens, justamente buscando alguma imparcialidade. De forma geral, a conclusão é de que os projetos financiados pelo BNDES alavancam o investimento interno, o perfil das exportações, o nível de empregos, e isso tudo melhora o ritmo da economia”, diz.

Outro ponto levantado pelo economista é sobre os pagamentos que o banco vem realizando ao Tesouro. O último aporte do Tesouro ocorreu em 2014, sendo que, em 2015, o banco começou a devolver os recursos com algumas antecipações de parcelas. Ao todo, já foram US$ 609,4 bilhões de 2009 até abril deste ano.

“Se o BNDES não desse lucro, não seria capaz de fazer o encurtamento de sua carteira de forma tão acelerada. Logicamente, o banco não é perfeito, pois sua atuação pode se deteriorar pelo próprio ambiente econômico. No entanto, sua missão é uma tentativa de ajudar a economia a nutrir setores que, sozinhos, não conseguiriam se manter”, explica.

Se o BNDES aumentar seus desembolsos, isso pode gerar inflação?

De acordo com o economista, não há como a inflação aumentar por aqui, pois o Brasil ainda tem uma grande capacidade ociosa. 

“Se houver um investimento forte, a ponto de preencher a capacidade ociosa, isso até pode acontecer. Mas um grande erro é achar que, quando se joga dinheiro na economia, essa capacidade é retomada rapidamente. Como isso leva tempo, há espaço para se ponderar os incentivos”, explica.

Além disso, é importante lembrar que indicadores como PIB, serviços e outros estão caindo, o que nos distancia ainda mais de uma recuperação da capacidade ociosa.

Qual poderia ser o foco da nova gestão do BNDES?

Para Roncaglia, possivelmente o banco siga a atual linha de investir mais na infraestrutura, associado à pressão que existe pela transição verde. Nesse sentido, poderão ser prioritários os setores de saneamento, energia elétrica, energias renováveis e, principalmente, toda a parte de mobilidade urbana, rodoviária e ferroviária.

“Dadas as primeiras manifestações de Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores do próximo governo, o foco será a integração regional. Isso já sugere que o banco pode atuar fortemente para que haja uma convergência entre os investimentos e empréstimos do banco e a industrialização que foca integração regiona”, analisa.

Isso porque grande parte de nossas exportações para a Argentina vem de pequenas e médias empresas, as quais têm sido o foco dos investimentos do BNDES nos últimos anos. Por isso, na opinião do economista, é bem possível que haja talvez uma intensificação nesse sentido.

“Outro setor que poderia avançar muito é a tecnologia voltada ao aprimoramento das exportações, possivelmente com foco na agroindústria. Além disso, a indústria de semicondutores, microeletrônicos e circuitos integrados também podem estar no radar da próxima gestão”.

O setor químico também tem chances de receber investimentos por parte da nova gestão do BNDES. Para o economista, o Brasil tem boa capacidade instalada e base tecnológica e organizacional para avançar no segmento.

Por fim, destaca a área da saúde como forte candidata a investimentos. “Como o setor é muito diversificado, possivelmente seja um dos que primeiro receberá incentivos para a reindustrialização.

Para Roncaglia, a presença de Mercadante no BNDES faz sentido, considerando o atual cenário econômico global.

“O movimento da economia mundial vai exigir que façamos investimentos mais focados nas demandas atuais, e o mercado financeiro não tem capacidade de financiar sozinho. Um exemplo disso é a economia verde, que envolve a eletrificação de carros e energias alternativas, por exemplo. Por enquanto, tudo o que dá para dizer é que a gestão de Mercadante terá muito mais peso para a reindustrialização e para a tentativa de diversificar nossa pauta de exportações.

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