Bolsonaro dilmou para os lobistas do leite em pó
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Em agosto de 2018, Jair Bolsonaro enviou ao TSE um plano de governo onde se lia:
“Facilitar o comércio internacional é uma das maneiras mais efetivas de se promover o crescimento econômico de longo prazo. A evidência empírica é robusta: países mais abertos são também mais ricos. O Brasil é um dos países menos abertos ao comércio internacional, a consequência direta disso é nossa dificuldade em competirmos em segmentos de alta tecnologia. Do ponto de vista teórico, a dinamização do comércio internacional funciona como um choque tecnológico positivo no país, aumentando sua produtividade e incrementando seu crescimento econômico de longo prazo. Propomos, assim, a redução de muitas alíquotas de importação e das barreiras não-tarifárias, em paralelo com a constituição de novos acordos bilaterais internacionais.”
Em fevereiro de 2019, 6 meses depois, o discurso mudou radicalmente:
“Comunico aos produtores de leite que o governo, tendo à frente a ministra da Agricultura Tereza Cristina, manteve o nível de competitividade do produto com outros países. Todos ganharam, em especial, os consumidores do Brasil.”
O candidato defendia que menores tarifas fazem bem à competitividade do produto nacional, o eleito diz literalmente o oposto e tudo bem, é isso aí, no Brasil é assim mesmo, a gente é fácil de enganar.
Bolsonaro ainda vai além e afirma que a tarifa beneficia especialmente o consumidor. Nenhum economista seria capaz de defender isso. Pelo menos uns 250 anos de pensamento econômico concordam que o efeito imediato da cobrança seguirá a lei da oferta e da demanda:
- – Aumento do preço que o consumidor paga pelo leite;
– Diminuição da quantidade de leite consumida;
Só a teoria econômica bolsonarista pode ver nisso um ganho de bem-estar do consumidor. Quem esperava Posto Ipiranga leu um presidente que soava como Guido Mantega.
O erro de Bolsonaro é um dos raros consensos na elite acadêmica mundial. Apesar de defendida por alguns economistas no Brasil, o protecionismo não é visto como ideia séria.
O IGM, instituto da Universidade de Chicago, fez um levantamento sobre o tema. Numa pesquisa com dezenas de pesos-pesados da economia mundial, de origem nacional e ideológica diversas, estrelada de prêmios Nobel e John Bates Clark, 95% dos entrevistados concordaram com a seguinte afirmação: “um comércio mais livre aumenta a eficiência produtiva e oferece melhores opções aos consumidores, e esses benefícios são muito maiores que eventuais impactos no desemprego do país”. Os outros 5% se disseram incertos. O candidato do PSL tinha o consenso acadêmico a seu favor.
Do teórico para o específico, a posição de Bolsonaro sobre a tarifa de leite em pó vai de mal a pior.
Dumping, como bem deve saber o leitor, é uma prática necessariamente temporária, visando a dominação do mercado num estágio posterior. A tarifa antidumping contra o leite em pó, que Bolsonaro renovou, existe desde 2001. Inventamos o dumping que se sustenta no longo prazo.
Há 18 anos, o governo cobra tarifas adicionais de empresas europeias e neozelandeses, países produtores de leite em escala global. A alíquota da sobretaxa chega a 14,8% no caso do produto europeu. A este valor se soma a tarifa básica de importação, de 28%.
Ou seja, todo brasileiro que quiser importar leite europeu precisará pagar 42,8% do valor em impostos, além dos custos de frete. Como resultado, Europa e Nova Zelândia praticamente não exportaram leite em pó para o Brasil nos últimos anos. Os produtores nacionais são responsáveis 97,6% do leite em pó consumido no Brasil, segundo informação publicada na revista Exame.
O caso ganha ares de escândalo pelo fato de técnicos do próprio Ministério da Economia terem negado a existência de dumping em parecer. O fim da tarifa, com esta justificativa, foi sancionado já por Paulo Guedes. Como é que Bolsonaro vai justificar a mudança de opinião, caso a polêmica chegue à OMC? Guedes vai desmentir a si mesmo em combate ao globalismo?
Foi um erro multidimensional. Em muitos momentos, a atitude do presidente lembrou os tempos de Dilma Rousseff. Bolsonaro dilmou por um dia.
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Bolsonaro dilmou ao desautorizar de modo intempestivo o seu ministro mais importante. Guedes terá a fidelidade cega de Mantega?
Bolsonaro dilmou ao agir em total contradição com o seu plano de governo. Será a primeira vez?
Bolsonaro foi protecionista, ignorou alertas de técnicos do governo e atendeu a um setor amigo sem qualquer critério republicano. Dilmou com talento de quem nasceu pra isso.
O leitor mais simpático ao governo pode estar pensando: “Bolsonaro é de direita, Dilma é de esquerda, ele não pode dilmar”. Pois pode sim. Dilmar é prática nacional desde antes de Dilma nascer. Geisel, militar de direita, foi um dos grandes dilmistas brasileiros.
O medo pela existência de dilmismo de Bolsonaro é antigo. Como deputado, ele votou alinhado ao PT por anos. Sua campanha teve um ato de craque quando o presidente simplesmente admitiu que não entendia de economia. Diversas pesquisas apontam que a população viu humildade no discurso inusitado. Tudo ficaria nas mãos do posto Ipiranga.
Acreditou-se em 2018 que Guedes seria um antídoto contra resquícios de dilmismo. Nesta semana, Bolsonaro mostrou que pode tomar decisões sem perguntar no Posto Ipiranga. Ele é o dono da caneta. Assim os liberais descobriram que, infelizmente, o lobby dos produtores de leite em pó é mais forte que o liberalismo de quem realmente toma as decisões.