Privatização dos Correios: o que está em jogo e o que mostra a experiência internacional

Questões como o monopólio de serviços postais e atendimento a todos os municípios ainda precisam ser definidas, mas analistas veem movimento como positivo

Alexandre Rocha

(Crédito editorial: SERGIO V S RANGEL / Shutterstock.com)

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SÃO PAULO – O projeto de lei que autoriza a privatização dos Correios (PL 591/2021) foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 5 de agosto e agora será apreciado pelo Senado Federal. Profissionais do mercado financeiro e analistas avaliam que a desestatização pode ser positiva, mas com ressalvas.

A venda dos Correios é uma aposta do governo em seu programa de privatizações, que até agora avançou menos do que o prometido. Tanto que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi pessoalmente ao Congresso Nacional em fevereiro entregar a proposta.

O governo diz não ter capacidade fiscal para investir na estatal e que a empresa não tem condições financeiras para realizar investimentos no ritmo necessário para se modernizar, acompanhar o desenvolvimento tecnológico e garantir a qualidade e amplitude dos serviços.

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A pandemia de Covid-19 acelerou a transformação digital e ampliou significativamente a demanda por comércio eletrônico e outros serviços online. Na ótica do governo, a privatização é o melhor caminho para a modernização dos serviços postais e para evitar dependência da empresa em recursos do Tesouro Nacional.

“A rápida transformação digital do setor no Brasil e no mundo demandam elevados investimentos por parte da ECT [Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos] para que a empresa permaneça competitiva e melhore a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos brasileiros”, afirmam os ministros Fábio Faria (Comunicação) e Paulo Guedes (Economia) na exposição de motivos que acompanha o projeto de lei.

“Todavia, os esforços empreendidos não têm sido suficientes para que a empresa se atualize na velocidade requerida. Por ser uma empresa pública, ela não conta com o dinamismo que o setor demanda atualmente, tampouco a União tem capacidade fiscal para suportar os investimentos por meio de aportes”, argumentam.

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Os investimentos realizados pelos Correios somaram R$ 1,1 bilhão em 2019 e 2020. O montante, contudo, fica abaixo do que consultorias estimam como necessário para os próximos anos. De acordo com a primeira fase dos estudos técnicos elaborados pelo Consórcio Postar (formado pela consultoria Accenture e pelo escritório Machado, Meyer, Sendacz, Opice e Falcão Advogados), a companhia teria que investir em média R$ 2,5 bilhões ao ano para aproveitar plenamente as oportunidades de crescimento existentes no setor.

Com a privatização, o governo embolsa o dinheiro da venda, gerando caixa para o Tesouro Nacional, e passa a responsabilidade pelos investimentos para terceiros, diz o CEO da Corretora Planner, Alan Gandelman. O governo quer realizar o leilão no primeiro semestre de 2022.

Mas ainda não há clareza sobre o valor mínimo a ser cobrado pela empresa em caso de privatização. Esta avaliação é um dos itens da segunda fase dos trabalhos sob a coordenação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que deve ser concluída ainda em agosto.

No ano passado, o ministro Fábio Faria estimou em R$ 15 bilhões a possível arrecadação com a venda. Analistas ouvidos pela reportagem não arriscaram prever um preço. De acordo com o balanço dos Correios de 2020, os ativos da empresa somam R$ 14,1 bilhões. No ano passado, as receitas da companhia chegaram a R$ 17,25 bilhões.

A percepção é que há interesse da iniciativa privada no negócio, e grupos brasileiros e estrangeiros em condições de assumir as operações, como grandes varejistas, empresas de comércio eletrônico e de logística. “Do ponto de vista do mercado, é um ativo interessantíssimo”, afirmou Gandelman.

O presidente do Magazine Luiza, Frederico Trajano, já disse que “todo player olha a privatização dos Correios com muita proximidade e muito interesse”. O Mercado Livre, porém, descartou participar do leilão.

O filão da correspondência paga

A Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) é uma gigante que atua nos mais de 5,5 mil municípios do País. A estatal foi fundada em 1969, mas os serviços postais existem desde o século 17.

Embora entregas e encomendas sejam exploradas por companhias privadas, os Correios ainda têm o monopólio de serviços postais, como cartas, cartões postais, impressos e telegramas.

Mandar cartas pode parecer antiquado, mas contas de luz, água e IPTU, por exemplo, representam um volume enorme de correspondência paga. “É uma baita demanda”, comentou Joelson Sampaio, professor de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Com tamanha capilaridade, os Correios podem ser ativo estratégico para expansão de grupos privados. “O comprador pode dar um salto em relação a outras empresas de entregas, pois passa a ter uma base [instalada] enorme, a dominar um mercado fantástico”, observou o advogado Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Administrativo da FGV e especialista em privatizações e concessões.

A primeira fase dos estudos sobre a privatização elenca pelo menos dez oportunidades para aumentar a criação de valor dos Correios, entre elas a “expansão da oferta de serviços de logística integrada adjacentes à entrega de encomendas”.

Monopólio

O projeto de lei em discussão permite a venda de 100% dos Correios e a concessão dos serviços postais para quem comprar a estatal. A empresa compradora continuará a ter a exclusividade destas atividades pelo prazo de cinco anos.

Para Matheus Bertoldo, sócio do escritório Ável Investimentos, de Porto Alegre, a eventual concentração de negócios nas mãos de uma ou poucas empresas merece cuidado. “Para não haver cartel ou apenas um player definindo preços. É preciso pensar no interesse da população”, declarou.

Na mesma linha, Sampaio observa que o monopólio sob administração privada “pode ser um problema”. “Vai depender da regulação, para manter a qualidade e evitar a cobrança de preços exorbitantes”, disse. O impacto da quebra do monopólio é um dos temas dos estudos contratados pelo BNDES.

O projeto de lei transforma a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em Agência Nacional de Telecomunicações e Serviços Postais, responsável pela regulação da atividade, fiscalização de metas de universalização e qualidade.

Por outro lado, a manutenção temporária do monopólio é vista como necessária frente ao volume do investimento. “É uma condição para a adaptação da empresa. A organização precisa de investimentos para ter uma estrutura que sirva de base para bons negócios. Nesse sentido, é necessário um período para recuperar a empresa”, declarou Sundfeld.

Ele ressalta que o monopólio é limitado, pois não inclui a entrega de mercadorias. “Que é o [segmento] que mais cresce”, observou.

Nos serviços obrigatórios, o operador terá que aplicar preços módicos e cumprir metas de universalização e qualidade.

Na Alemanha, a estatal equivalente aos Correios foi privatizada. A quebra do monopólio dos serviços postais ocorreu em fases, sendo concluída em 2007, sete anos após a abertura de capital da empresa.

Optou-se por uma venda gradual das ações, não pela alienação de 100% de uma vez. O processo todo começou na década de 1990 e durou mais de dez anos.

A Deutsche Post teve também direito a isenção do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) até 2010. Ou seja, a companhia recebeu proteção do governo para garantir o atendimento de todo o território, inclusive a antiga Alemanha Oriental, e que passasse a ter lucro. Nesse período, a empresa adquiriu a norte-americana DHL.

Universalidade

Os Correios são responsáveis pela universalidade dos serviços postais, por garantir que todos os cantos do Brasil sejam atendidos, inclusive os mais remotos e que não dão retorno financeiro.

O projeto de lei em discussão veda o fechamento de agências consideradas essenciais e determina a manutenção de serviços de interesse social, mas há dúvidas sobre o interesse e a capacidade de empresas privadas em manter atividades não rentáveis.

“Não há no setor privado amadurecimento e empresas do porte dos Correios para oferecer determinados serviços no País inteiro”, destacou a professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP), Claudia Souza Passador, que realiza pesquisa sobre logística no Brasil.

Ela cita como exemplo o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), cuja distribuição para escolas está a cargo dos Correios. “É uma logística gigantesca, talvez só a soja chegue perto em volume”, comparou. “Serviços essenciais para a população são finalizados ou implementados pelos Correios”, acrescentou.

Para a professora, a discussão precisa ser ampliada. “É evidente que são necessários estudos mais aprofundados, com estratégias para as políticas públicas que usam os Correios em territórios não atrativos”, observou.

O tema chama a atenção também de quem opera no mercado. “Como ficam os municípios que não dão lucro?”, questionou Bertoldo.

Sundfeld conta que esta mesma preocupação foi levantada na privatização das teles, na década de 1990. O advogado participou da elaboração do marco legal das telecomunicações e diz que o modelo pode ser replicado nos Correios.

No caso das teles, as regras previam metas de universalização para a telefonia fixa − na época, a mais utilizada. “Isso obrigou as empresas a fazer investimentos gigantes nos primeiros anos”, afirmou Sundfeld. “É mais viável para uma empresa privada do que para uma estatal”, acrescentou.

Sampaio ressalta que a obrigatoriedade de prestar serviços não rentáveis, ou encargos, não inviabiliza o negócio. “Um bom desenho tem que manter a empresa viável com estes encargos, porque senão o governo sempre vai precisar aportar dinheiro, mesmo com a privatização”, afirmou.

Nos Estados Unidos, o tema das privatizações dos serviços postais volta e meia vem à tona, mas até hoje não prosperou.

Assim como no Brasil, o USPS (sigla em inglês para Serviço Postal dos Estados Unidos) é obrigado a prestar serviços universais. Uma das barreiras para a privatização é a preocupação com o atendimento de áreas remotas, não rentáveis comercialmente, e com eventual aumento de preços para remessas a estas regiões.

Lucro

A ECT deu lucro nos últimos quatro anos, após quatro de prejuízo, e em 2020 registrou o melhor resultado em dez anos: um lucro de R$ 1,53 bilhão.

Sampaio ressalta que avaliar somente o lucro não basta, é necessário analisar itens como fluxo de caixa, previsão de investimentos e passivos. Estes são alguns dos tópicos dos estudos encomendados pelo BNDES.

Ele acrescenta que o prejuízo acumulado pelos Correios de 2013 a 2016 ainda supera em muito o lucro somado de 2017 a 2020. “Recentemente os Correios têm tido lucro, mas há ainda um estoque de prejuízo superior a R$ 1 bilhão. A avaliação deve ser feita mais pelo estoque do que pela situação presente”, afirmou.

Para Sundfeld, com a venda, os Correios vão ficar livres das amarras das indicações políticas e da rigidez das regras para a administração pública. “O desafio dos Correios é estar presente e atender à demanda crescente do comércio eletrônico. Isso é inviável para uma empresa estatal”, destacou.

O comércio eletrônico não é monopólio dos Correios, mas é uma importante fonte de receita. De acordo com os estudos encomendados pelo BNDES, o avanço de transações digitais em geral resultou numa queda dos volumes de correspondência e no aumento da quantidade de encomendas oriundas do e-commerce. O relatório diz que os Correios ainda não conseguiram explorar todo o potencial de faturamento que poderiam com automação e digitalização, e que a privatização pode permitir mais investimentos e aumento de competitividade nesta área.

Trabalhadores

O debate passa também pela questão trabalhista. Os Correios são um dos maiores empregadores do Brasil, com cerca de 100 mil funcionários, e os trabalhadores estão preocupados com possíveis consequências da privatização.

A Federação interestadual dos Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras dos Correios (Findect) lançou a campanha “Correios, o que é essencial para o povo não se vende!”, contra o processo; e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) elencou “18 motivos para os brasileiros serem contra a privatização dos Correios”.

O projeto de lei proíbe a demissão sem justa causa de funcionários por 18 meses, contados a partir da venda da companhia, e determina a realização de um programa de demissão voluntária (PDV), com direito a indenização equivalente a 12 meses de salário.

Leia também: Postalis: como a privatização dos Correios pode mudar os investimentos de 200 mil participantes do fundo de pensão

Senado

Estas questões serão levadas ao Senado, onde não é esperada uma tramitação tão rápida quanto na Câmara. “É mais difícil negociar privatizações de estatais no Senado do que na Câmara”, acrescentou Sundfeld.

O cenário atual não é considerado ideal para discussão do tema, dada a beligerância do presidente com outros Poderes, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 e um sentimento de falta de direção clara por parte do governo.

Gente acostumada com os bastidores de Brasília avalia que, na medida em que assunto avançar e ganhar destaque, pode haver reações negativas da opinião pública e de parlamentares.

Esta semana já ocorreram algumas. O jornal Valor Econômico relatou resistências das bancadas do PSD e do MDB. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), deu luz verde para análise do tema na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), mas alguns parlamentares manifestaram contrariedade com o projeto, como Eduardo Braga (AM), líder do MDB – maior bancada da Casa –, e o próprio presidente da comissão, Otto Alencar (PSD-BA).

Justiça

Mesmo com a aprovação no Senado, há receio que a questão vá parar nos tribunais. “Pode haver judicialização”, comentou Gandelman. Se para o lado econômico essa é uma possibilidade, na seara jurídica ela é líquida e certa. “Não há a menor chance de não haver [processos]”, observou Sundfeld.

O advogado prevê ações trabalhistas em todos os estados, processos movidos por partidos políticos e, eventualmente, pelo Ministério Público. “Mas não é um impeditivo [para a privatização], se o governo quiser”, disse.

Ele ressalta que, depois de mais de duas décadas de privatizações e embates jurídicos, o Estado brasileiro aprendeu a lidar com contenciosos nesta área, tem estrutura para enfrentá-los e vencê-los no final. “Desde que o governo queira”, reiterou.

A vontade política é relevante, pois outras incertezas surgem para além do Parlamento e do Judiciário. Nisso, os analistas concordam: o tempo é curto e muitas variáveis podem interferir no processo, especialmente a aproximação das eleições de 2022.

Postalis

E como fica o Postalis, o fundo de pensão dos Correios, com a privatização? “Continua como fundo de pensão, agora da empresa do setor privado. Foi assim com os fundos das empresas de telecomunicações”, respondeu Sundfeld.

O Postalis tem um déficit de cerca de R$ 7 bilhões em seu plano de benefício definido (BD). “Para sabermos como ficará o Postalis, vai depender muito do desenho da negociação da privatização. Pode ser que haja uma negociação para a compradora assumir o passivo e levar junto o fundo, ou pode ser algo compartilhado, o governo assume a parte do passivo e a outra parte fica com uma nova empresa. Os interessados vão levar o déficit em consideração na hora de fazer as ofertas”, acrescentou Sampaio.

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Alexandre Rocha

Jornalista colaborador do InfoMoney