Pilares que sustentam Putin são repressão, economia e nacionalismo, diz especialista

Para o cientista político Vicente Ferraro, eleição neste final de semana tenta dar legitimidade democrática ao regime autoritário, mas cerceamento contínuo à oposição impede uma disputa de verdade

Roberto de Lira

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, que deve ser reeleito para mais seis anos

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O autoritário regime do presidente da Rússia Vladimir Putin está sustentado sobre três pilares muto bem definidos, que explicam o porquê de o líder russo conseguir se manter no poder desde o início dos anos 2000: um forte aparato de repressão, uma sensação de tranquilidade econômica e um nacionalismo extremado, um dos responsáveis diretos pela guerra na Ucrânia e pelas escaramuças verbais contra o Ocidente. Mesmo com a soma desses fatores enraizada no Kremlin e entre a população russa, Putin tenta na eleição presidencial que está acontecendo neste final de semana atribuir alguma legitimidade democrática à sua gestão, ainda que o pleito seja marcado por inúmeros tipo de cerceamento ao que seria um oposição de verdade ao seu governo.

A análise é do cientista político Vicente Ferraro, professor da FGV e especialista em conflitos e política da Rússia. Em  entrevista ao InfoMoney, o acadêmico também detalhou como Putin, em duas décadas, estrangulou quaisquer canais de contestação às suas políticas. O professor projetou também alguns cenários de como o país deve se comportar no tabuleiro das relações com o exterior nos próximos anos. Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Essa eleição na Rússia em 2024 tem sido definida como de cartas marcadas. Existe uma oposição de verdade nessa disputa?

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Essa eleição tem a função de atribuir um aspecto de legitimidade democrática para o regime. Ela tem essa importância, mas ao mesmo tempo há uma série de procedimentos que levantam algumas inconsistências do processo. Por exemplo: na Rússia há dois tipos de oposição, a chamada de oposição sistêmica e a não-sistêmica. A primeira é aquela que a gente chamava aqui, durante o regime militar, de ‘oposição chapa-branca’. Em algumas questões não muito salientes, de não muita politização, ela se opõe ao governo. Mas, na maioria dos casos, ela acaba apoiando, como no caso da guerra na Ucrânia, no qual apoia o regime sem qualquer tipo de contestação. Essa oposição é a que está habilitada a participar das eleições. A outra oposição é chamada de não sistêmica, que é a oposição que, de fato, contesta os posicionamentos e a legitimidade do regime. E que frequentemente sofre repressão e obstruções para participar do processo eleitoral. Um exemplo dessa oposição era o Alexei Navalny, que morreu há algumas semanas. Essa oposição contesta questões como a guerra, mas tem muito pouco espaço e é muito perseguida dentro da Rússia.

Como é realizada essa perseguição? Ela se concentra em períodos eleitorais, como o atual?

Eu diria que os processos pelos quais essa oposição não-sistêmica acaba sendo cerceada de participar efetivamente do pleito eleitoral tem três fases. A primeira é o período fora de campanha, com o uso marcante do controle dos meios de comunicação. A grande mídia na Rússia é controlada pelo Estado, a maioria dos canais de televisão são estatais e eles veiculam posicionamentos políticos muito favoráveis a Vladimir Putin. A todo momento, tem uma propaganda de apoio muito forte em torno dele, das suas orientações, tanto na política interna, quanto na externa. Nesses meios de comunicação dificilmente vai ter alguma crítica à guerra na Ucrânia, por exemplo. Tem um apoio nacionalista ao regime muito marcante em todos os meios de comunicação. E, em qualquer crítica mais enfática contra o regime, essa oposição não-sistêmica frequentemente sofre processos criminais ou administrativos, há uma série de presos políticos, repressão a protestos e assassinato de alguns opositores. Desde o início dos anos 2000, no regime Putin, houve o assassinato de diversas lideranças políticas dessa oposição não-sistêmica. E há um intenso uso dos serviços de segurança, de inteligência, contra essa oposição não-sistêmica. Todo esse processo acaba obstruindo a consolidação de qualquer canal de voz para essa oposição.

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Quais são as outras fases?

A segunda fase é a pré-eleitoral. Fora da campanha, tem esse controle midiático e essa repressão muito forte. Na segunda fase, uma série de mecanismos burocráticos e jurídicos acabam obstruindo ou dificultando muito a participação dessa oposição não-sistêmica. Um desses mecanismos de obstrução é o registro de candidaturas. Para concorrer, um candidato de um partido que não esteja representado no Congresso, na Duma (e ali só estão os partidos da oposição sistêmica), precisa coletar 100 mil assinaturas. E se ele não tiver ligação com nenhum partido, precisa de 300 mil assinaturas. Só que, frequentemente, quando essas assinaturas são coletadas, a comissão central eleitoral – órgão equivalente ao nosso TSE – aponta irregularidade nessas assinaturas. Um caso emblemático foi o de Boris Nadezhdin, que era um dos poucos candidatos que criticavam Vladimir Putin pela guerra. Ele coletou mais de 100 mil assinaturas e a comissão rejeitou a candidatura, alegando que mais de 15% das assinaturas tinham irregularidades. Muitas vezes, a irregularidade é o nome de uma cidade com um erro de gramática. Tem procedimentos muito rígidos. A terceira fase é a do período eleitoral e envolve tanto a votação quanto o resultado. Houve em outros anos denúncias de fraude, como no início dos anos 2010, quando eleitores filmaram mesários enfiando cédulas dentro das urnas e isso gerou uma série de protestos. Agora, há alguns elementos que levantam dúvidas, como a questão do voto online, de que o processo é muito vulnerável a ataques nessa eleição. E eu chamaria a atenção também no processo eleitoral das regiões anexadas da Ucrânia. Não se sabe qual o real número de eleitores, já que milhões que viviam nessas regiões anexadas acabaram migrando para outros países ou para outras regiões da Ucrânia. Então, não há dados muito consistentes sobre qual é a população de fato dessas regiões anexadas. E as eleições começaram na quinta-feira nessas áreas de risco.

Mesmo com esse regime autoritário recebendo críticas, Putin ainda possui muita popularidade no país, como mostrou uma pesquisa recente. O que explica isso?

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A popularidade dele certamente é alta, em parte pelo discurso nacionalista, que ele reforça com a guerra, com o antagonismo com o Ocidente. Eu diria que basicamente o regime tem 3 pilares de sustentação. Um pilar é o já citado da repressão. E está presente em vários líderes autoritários, não é característica apenas do Putin. Há controle dos meios de comunicação, censura, prisão de opositores, repressão a protestos, assassinato de opositores políticos e também essa obstrução eleitoral da oposição não-sistêmica. Isso tudo é o pilar da repressão. O segundo pilar é odos ganhos econômicos. A Rússia passou por uma crise muito intensa nos anos 1990, no período de transição para o capitalismo e para um regime político mais aberto, embora não totalmente democrático. E esse período foi muito caótico, de certa maneira muito traumático para o povo, com uma crise econômica intensa. Quando Putin ascendeu ao poder, nos anos 2000, houve um crescimento econômico muito significativo, em parte pela valorização do petróleo e das outras commodities no mercado internacional. Mas em parte também por algumas reformas que foram conduzidas. Nesse período de crescimento, os russos fizeram esse vínculo de que um regime autoritário, de uma liderança como a de Putin talvez fosse melhor e trouxesse mais estabilidade e segurança econômica do que um sistema mais aberto, que foi o que eles tiveram nos anos 1990. Nos anos 2010, não houve o mesmo crescimento dos anos 2000, mas mesmo assim houve uma certa estabilidade. E, mesmo agora, com todas essas sanções econômicas, a Rússia criou mecanismos para contornar os efeitos e economicamente está relativamente estável.

Qual é o último pilar que sustenta esse regime autoritário?

É o pilar ideológico, que se fundamenta principalmente na ideia de que a Rússia é cercada por inimigos, tanto externos como internos, isso em referência à oposição não-sistêmica aliada aos inimigos externos, sobretudo o Ocidente. E que o que esses inimigos querem é a destruição ou o enfraquecimento da Rússia. E que figura de Vladimir Putin, entre todos os atores, seria capaz de trazer segurança e proteção contra esses inimigos. Muitos discursos promovem esse nacionalismo e o medo. A ideia de que Rússia é cercada de ameaças é o pilar de sustentação ideológica do regime. O que eu venho argumentando é que isso explica mais a guerra do que a questão de uma expansão da Ucrânia. Eu diria que a maior preocupação do regime para manter a guerra é reforçar esses antagonismos e ver a Rússia como uma fortaleza sitiada e de ter um herói protetor como Putin.

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Esse pilar se sustentaria sem Putin?

Acredito que mesmo que ele saia em algum momento, na hipótese por exemplo de falecimento, as elites provavelmente vão sustentar esse posicionamento de política externa porque é algo que traz uma coesão, traz uma legitimidade política. Então esse seria um recurso importante, um pilar para a sustentação desse regime autoritário. A grande dúvida é se as próximas lideranças da Rússia vão ter a mesma força política interna, a mesma habilidade, não apenas em termos de legitimação ideológica, do nacionalismo, da confrontação com inimigos externos, mas também do controle sobre o aparato de repressão. Vladimir Putin vem da KGB, que hoje é a FSB [Serviço Federal de Segurança], que é um instrumento importante da repressão. Obviamente, ele conhece muito bem esse sistema, esse organismo. E a gente não sabe se as próximas lideranças vão ter todo esse controle, todo esse conhecimento, essa habilidade de instrumentalizar os órgãos de inteligência e de controle político interno.

Como explica a popularidade, a aprovação pessoal de Putin ainda alta?

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Sobre as pesquisas, tem que ter alguma cautela na avaliação porque elas são feitas em um contexto autoritário. Acredito que dificilmente as pessoas quando interrompidas na rua respondam com segurança sobre as preferências eleitorais delas ou de preferências políticas, dados o contexto da repressão Eu, pelo menos, não responderia. Acredito que popularidade dele seja alta, em parte por essa força desse discurso nacionalista, esse pilar ideológico. E também por aquela questão econômica. Mas não tão alta, por conta que essas pesquisas certamente estão enviesadas porque as pessoas não têm uma segurança plena, por se tratar de um contexto autoritário.

Com Putin mais consolidado ainda poder, há alguma chance de recuo na questão da Ucrânia?

Certamente, não. Pelo contrário, ao que tudo indica agora é que a Rússia está numa nova ofensiva. A Ucrânia, a partir do fim de 2022 até meados do ano passado, conduziu uma contraofensiva. No início, teve um relativo sucesso e retomou o controle de algumas cidades importantes. Mas depois esse contra-ataque perdeu fôlego e, no início deste ano, a gente entrou num cenário em que quem está na ofensiva agora é a Rússia. A situação da Ucrânia é muito delicada, pelo titubeamento da ajuda militar e econômica das potências ocidentais. Não está contando com o mesmo apoio que contou no início do conflito. E uma eleição de Donald Trump [na disputa presidencial nos Estados Unidos, em novembro], por exemplo, poderia ser catastrófica para a Ucrânia, já que o Trump já mostrou simpatia pelo Putin em outros momentos e ele mesmo já anunciou que resolveria a guerra em alguns dias. Na prática, o Trump é muito mais positivo para a Rússia do que o Biden.

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E como fica a relação com o Ocidente, em especial com a aliança militar da Otan?

Eu diria que a agressão russa à Ucrânia fortaleceu a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e isso já era algo previsível. A gente tem a Finlândia e a Suécia, que por décadas foram contrárias à entrada na Otan e recentemente entraram. A Otan está muito mais coesa hoje. E ao mesmo tempo Vladimir Putin se fortalece internamente com essa orientação da Otan. Os dois lados acabam se beneficiando desse conflito. E as fronteiras russas hoje não estão mais seguras do que antes da guerra. Eu diria que elas estão muito mais inseguras. Então contrariamente ao que Putin falava, que a guerra era para proteger e garantir a segurança das fronteiras russas, eu discordo. Acho que as fronteiras russas hoje estão muito mais vulneráveis e ameaçadas do que antes. Mas ele está de certa maneira mais fortalecido, ele reforçou esse pilar ideológico nacionalista do regime e eu diria que a Rússia não ganha com essa guerra, mas ele ganha em termos de legitimidade.

Que papel a China pode representar nesse quadro polarizado?

A China foi fundamental para que a Rússia conseguisse contornar o impacto das sanções econômicas impostas contra a Rússia – a Índia também foi um ator importante. Obviamente esses países se beneficiam com um petróleo em valor mais baixo do que o praticado no mercado internacional, pois tem contratos mais vantajosos. Vejo uma discussão muito forte na academia de que essa guerra representaria a nova ordem mundial multipolar. Mas eu diria que não é a guerra que marca o início do mundo multipolar, o que marcou o fim da unipolaridade norte-americana para mim foi a ascensão da China no início dos anos 2000. Sem a ajuda da China e de outros parceiros, a Rússia não teria conseguido contornar de maneira efetiva o impacto das sanções econômicas. A China é o grande ator para essa migração para uma ordem multipolar, ou talvez bipolar, num bloco anti-Ocidente. Acho que não está muito clara essa nova ordem, estamos numa transição.