O colapso da MtGox, uma corrida bancária digital (Parte 1/2)

O espetacular colapso da MtGox sacudiu o mundo do Bitcoin nos últimos dias. Não por ter sido alguma surpresa - pois quem acompanha a empresa desde o começo já estava plenamente ciente do seu péssimo histórico -, mas sim porque ainda era uma exchange bastante relevante com impacto visível no mercado da moeda digital. Como isso foi possível e as repercussões desse episódio é que pretendemos esclarecer neste post.
Por  Fernando Ulrich
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O espetacular colapso da MtGox sacudiu o mundo do Bitcoin nos últimos dias. Não por ter sido alguma surpresa – pois quem acompanha a empresa desde o começo já estava plenamente ciente do seu péssimo histórico –, mas sim porque ainda era uma exchange bastante relevante com impacto visível no mercado da moeda digital. As suas complicações e trapalhadas de relações públicas acabaram causando uma grande oscilação no preço da moeda digital nesses últimos dias em todas as demais exchanges.

Embora a reputação do Bitcoin tenha sido arranhada nas últimas semanas, é preciso entender o ocorrido com mais profundidade, para não corrermos o risco de interpretações e conclusões equivocadas. Sobretudo, é preciso enfatizar que o Bitcoin como tecnologia, sistema, etc., está inabalado e segue operando normalmente. O blockchain permanece inviolado e seguro. Já a moeda, o bitcoin, sofreu alguns solavancos, mas, apesar de tudo, segue negociada em um patamar muito superior ao de um ano atrás – mas não tomemos o câmbio como sinal de sucesso; ele é secundário.

A MtGox, por outro lado, foi à bancarrota. A mais antiga exchange do ecossistema Bitcoin – e até a semana passa uma das maiores – está implodindo, mas isso nada tem a ver com a solidez e segurança da moeda digital. Tem a ver, na verdade, com uma empresa amadora que, no melhor dos casos, foi imprudente na sua política de segurança. Mas talvez tenha sido o pior dos casos, isto é, uma empresa que agiu deliberadamente de forma enganosa e negligente. Independentemente do veredito final, a verdade é que a MtGox proporcionou a primeira grande corrida bancária digital.

Como isso pode ocorrer com uma empresa do ecossistema Bitcoin e quais as lições desse episódio é o que trataremos neste post, que será dividido em duas partes.

 

As reservas fracionárias, o tantundem e o Bitcoin

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Para entender como a queda da MtGox foi possível, é preciso, antes de qualquer coisa, fazer referência a uma particularidade da atividade bancária tradicional: a prática das reservas fracionárias, em que bancos mantêm em caixa apenas uma fração dos depósitos de seus clientes.

Sob a perspectiva econômica, a probabilidade de aparecimento das reservas fracionárias no sistema Bitcoin é bastante reduzida. Porque o Bitcoin oferece aos usuários as vantagens tecnológicas tanto do dinheiro commodity propriamente dito quanto de um substituto de dinheiro (como certificados de depósitos, os precursores do papel-moeda), o aparecimento de um substituto de uma unidade monetária de bitcoin seria, até certo ponto, redundante.

Historicamente, o substituto de dinheiro surgiu como uma forma de reduzir os custos de transação, permitindo um uso mais eficiente do dinheiro, usos que com o dinheiro commodity em si não seriam possíveis. O sistema Bitcoin sobressai-se justamente nesse ponto, pois a base monetária bitcoin em si já propicia uma redução substancial dos custos de transação quando comparada aos sistemas monetários atuais. O Bitcoin é ao mesmo tempo uma moeda e um sistema de pagamentos, algo sem precedentes na história monetária. Mas seria possível conceber a prática de reservas fracionárias com bitcoins? Sim, é possível. Para entendermos como, é preciso ir ao básico ou à origem da atividade bancária: o depósito de dinheiro.

Os bancos surgiram para suprir uma necessidade de mercado, o serviço de custódia de bens monetários. Com o aperfeiçoamento da prática bancária, eles passaram a oferecer não somente o serviço de custódia, mas também de intermediação financeira e de facilidade de pagamentos. É no desenvolvimento do serviço de custódia, contudo, que graves consequências se sucedem. A custódia de dinheiro requer um contrato de depósito entre banco e depositante em que este deposita bens fungíveis para que o banco os guarde, os custodie e os restitua a qualquer momento, quando solicitado pelo depositante. Em troca, ao depositante é entregue um certificado de depósito que lhe dá o direito de exigir a restituição do depósito a qualquer momento. Entretanto, por tratar-se de bens fungíveis, não é obrigatório que o banco restitua o cliente com as mesmas moedas ou barras de metal precioso que lhe foram depositadas; basta entregar ao depositante uma quantidade equivalente em gênero e qualidade, ou tantundem, em latim.

Com o desenvolvimento da prática bancária, os certificados de depósitos evoluíram a bilhetes de banco – bastava o portador apresentar o bilhete no caixa para ter restituído seu dinheiro em espécie –, os quais passaram a circular como se o próprio dinheiro fosse. Os bancos logo perceberam que os depositantes raramente resgatavam seus depósitos, preferindo, em vez disso, transacionar somente com os bilhetes (substitutos de dinheiro), pela praticidade e facilidade de manuseio. Diante dessa constatação, não tardou muito para que as instituições bancárias cometessem um grave delito, o de emitir bilhetes sem lastro algum em dinheiro material. Iniciava assim a prática das reservas fracionárias, em que havia mais bilhetes em circulação emitidos pelos bancos do que dinheiro material em custódia para a pronta restituição de quem assim demandasse. Dessa forma, quando a confiança em alguma instituição depositária fosse abalada e os depositantes se dirigissem em massa para solicitar o resgate em espécie de seus bilhetes – a notória corrida bancária –, o banco estaria simplesmente insolvente; não poderia jamais entregar dinheiro material a todos os demandantes portadores de bilhetes. Não haveria tantundem suficiente em custódia.

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Os registros da prática de reservas fracionárias ao longo da história são milenares, mas seu ápice foi atingido somente no século passado, com a anuência e o auxílio dos bancos centrais. Hoje em dia, a prática não somente é regra do sistema bancário em escala global, como também é respaldada por lei.

E como o Bitcoin difere desse arranjo? Em primeiro lugar, quando temos o cliente Bitcoin instalado e rodando em nosso computador pessoal, não há um contrato de depósito entre proprietário de bitcoins e um banco ou casa de custódia. Você é seu próprio banco. Você custodia o seu próprio tantundem. Logo, a posse dos bitcoins está a todo o instante com o dono da carteira (equivalente à conta bancária tradicional). Igualmente, ao proprietário, há disponibilidade completa e irrestrita dos bitcoins. Você pode transferi-los a quem desejar a todo instante sem que nenhuma entidade o impeça de fazê-lo.

Mas é claro que, se dependermos exclusivamente do software em um computador pessoal, o uso do Bitcoin seria bastante reduzido. Para suprir essa necessidade, já existem serviços de carteira online, como o da empresa Blockchain.info, em que podemos usar um smartphone ou equipamento portátil similar para efetuar transações. Ainda que à primeira vista tenhamos a impressão de que isso constitui um serviço de custódia similar ao oferecido pelo sistema bancário tradicional, há uma grande distinção. Nos serviços de carteira online como o exemplificado acima, o provedor não custodia os seus bitcoins. Na verdade, você permanece sendo o único agente a ter posse, controle e uso irrestrito dos seus bitcoins. Da forma como é configurado esse serviço, o provedor proporciona ao usuário a capacidade de utilizar a rede Bitcoin por meio da web, transacionando normalmente como se tivesse o próprio software instalado no computador. Não há transferência de propriedade dos bitcoins do dono da carteira ao provedor de serviço de carteira online; este tampouco pode visualizar os saldos da carteira do usuário, não pode realizar transações em seu nome, não pode confiscar a sua carteira nem mesmo pode forçá-lo a utilizar o serviço de carteira online indefinidamente[1].

Portanto, nas duas formas de custódia dos bitcoins acima descritas, pelo software Bitcoin instalado em um PC e pelo serviço de carteira online, não há um terceiro custodiando os bitcoins do proprietário. Assim, o surgimento de um substituto de bitcoin é redundante, pois as facilidades que poderia oferecer já estão incorporadas no bitcoin na sua forma mais primitiva. E a prática de reservas fracionárias seria uma impossibilidade técnica: o depositante e o depositário confundem-se; são a mesma entidade, o próprio usuário. Como poderia o dono da carteira criar substitutos de bitcoins sem lastro e transacioná-los na rede? Seria o equivalente à falsificação de bitcoins, o que é criptograficamente impossível.

Entretanto, há serviços de carteira online em que a transferência de posse e controle da carteira ocorre, sim, como é muito comum em casas de câmbio[2], ou sites que ofereçam pagamento de juros aos saldos de bitcoins lá depositados. Nesses casos, a possibilidade de surgimento de um substituto de bitcoin, ou pior, de reservas fracionárias, é maior, uma vez que o usuário do serviço não possui nem controla efetivamente a sua carteira na rede Bitcoin (o saldo é mantido fora do blockchain, “off the blockchain”). Quem o faz é o provedor, em seu nome, normalmente seguindo ordens do usuário. Logo, o risco da contraparte está presente – seja de práticas ilegais, como uso indevido do seu saldo de bitcoin, seja de práticas questionáveis, como reservas fracionárias, seja de práticas insuficientes de segurança, sujeitando os usuários a ataques de hackers aos servidores do provedor. Grande parte dos episódios infelizes de extravio de bitcoins deve-se a este último caso.

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O aparecimento da prática de reservas fracionárias com bitcoins é, portanto, bastante improvável, embora possível. Nas formas mais primitivas, o tantundem está a todo o instante sob posse e controle do próprio dono da carteira. Este é depositante e depositário. Mas enquanto houver serviços de carteira online em que o controle e a posse dos bitcoins são cedidos ao provedor, o risco das reservas fracionárias existe.

Na segunda parte deste post, analisaremos o caso concreto da MtGox e as repercussões para o futuro do Bitcoin.

 


[1] As chaves privadas são guardadas pelo browser do usuário, e não pelos servidores do provedor de serviço. Para entender a tecnologia envolvida que possibilita tal façanha, ver site da Blockchain.info.

[2] Nesses casos, a chave privada fica em posse e controle do provedor de serviço, ainda que esteja associada a um usuário devidamente logado e registrado no site do provedor.

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Fernando Ulrich Fernando Ulrich é Analista-chefe da XDEX, mestre em Economia pela URJC de Madri, com passagem por multinacionais, como o grupo ThyssenKrupp, e instituições financeiras, como o Banco Indusval & Partners. É autor do livro “Bitcoin – a Moeda na Era Digital” e Conselheiro do Instituto Mises Brasil

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