Interpretação de Haddad para arcabouço gera desconforto, e especialistas veem sinalização negativa para ajuste fiscal

Para críticos, regra usada pelo ministro para limitar contingenciamento máximo se refere à definição do nível de despesas na elaboração da peça orçamentária

Marcos Mortari

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), durante reunião com líderes partidários do Senado Federal (Foto: Pedro Gontijo/Senado Federal)

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O entendimento do ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), de que contingenciamentos de despesas orçamentárias, sob as regras do novo marco fiscal, precisam obedecer o piso de 0,6% para o crescimento real de despesas públicas provocou divergências entre especialistas em contas públicas e gerou preocupações futuras sobre o risco fiscal no País.

Na prática, a interpretação oferecida pelo ministro em entrevista concedida a jornalistas nesta sexta-feira (17), deve limitar em R$ 30 bilhões o valor máximo passível de contingenciamento durante a execução orçamentária de 2024, dependendo dos resultados verificados em comparação com a meta de déficit zero estabelecida pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Considerando as regras do novo marco fiscal, o limite de despesas para o ano que vem foi fixado em cerca de R$ 2,061 trilhões, calculados com base em uma inflação de 3,16% (correspondente ao IPCA acumulado em 12 meses até junho) e um crescimento real de 1,7% (que equivalem a 70% do crescimento de 2,43% da receita). Em termos nominais, um aumento de R$ 96,5 bilhões.

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Vale salientar, ainda, que um montante adicional, referente à diferença entre a inflação acumulada em 12 meses em junho e em dezembro deste ano (4,85% – 3,16%), também poderá ser incorporado à base de cálculo nos próximos anos.

Seguindo a interpretação dada pelo Ministério da Fazenda, o limite de contingenciamento para o ano que vem sairia de R$ 53 bilhões (considerando regra que prevê um teto de 25% do total de despesas discricionárias previstas para garantir o funcionamento da máquina pública) para algo em torno de R$ 23 bilhões (respeitando o piso de 0,6% para o crescimento real das despesas).

Especialistas em contas públicas têm resistências ao entendimento apresentado por Haddad. Há uma avaliação de que uma regra se refere ao cálculo das despesas orçadas para um exercício, enquanto a outra trata de contingenciamento a ser realizado em momento posterior, durante a execução da peça que foi aprovada pelo Congresso Nacional.

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“Avaliamos que a restrição não se aplica ao contingenciamento. O crescimento mínimo real de 0,6% se aplica ao cálculo da variação do limite de despesas para fins de orçamento. Não obstante, o contingenciamento deve ser realizado no momento posterior – a execução – onde existem regras específicas que estão inscritas na Lei de Responsabilidade Fiscal, inclusive aquela que impõe o contingenciamento de até 25% das despesas discricionárias”, avaliaram os economistas da XP Investimentos em relatório distribuído a clientes.

“Além disso, podemos analisar por similaridade a aplicação do limite do novo regime fiscal e do teto de gastos vigente até 2022: nesse último, em vários momentos o governo foi obrigado a contingenciar para atingir a meta de resultado primário, ainda que as despesas estivessem abaixo teto. Portanto, vale sempre a regra mais restritiva”, sustentaram.

Entendimento similar tem Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena e especialista em contas públicas. Para ele, a aplicação de tal entendimento poderia provocar um maior descompasso entre despesas e receitas e aprofundar o risco fiscal.

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“É compreensível que se pretenda negociar um volume de contingenciamento aceito pela ala vencida no debate da alteração da meta fiscal. Isso poderia reforçar o quadro de (provável) acionamento de gatilhos da LC 200/2023 (arcabouço fiscal), quando necessário, no caso de entrega de um resultado primário pior do que o limite inferior de -0,25% do PIB (meta fiscal zero)”, disse.

“Contudo, o problema dessa arriscada estratégia é introjetar nas possibilidades de gastos um volume muito alto de despesas discricionárias. Para ter claro: se o corte ficar em R$ 25 bilhões, e não puder chegar ao máximo de R$ 52,7 bilhões (25% da dotação orçamentária proposta, conforme regra do arcabouço) ou a um volume próximo a esse, então um risco fiscal poderá se materializar”, alertou.

Os especialistas das duas casas concordam que a medida é negativa para o ajuste fiscal. “A nova regra fiscal já está sob questionamento em seu primeiro ano de funcionamento por conta das discussões sobre a possível mudança da meta de resultado primário. Se o governo adotar a interpretação conforme descrito na matéria, a credibilidade do arcabouço será ainda mais questionada, o que não colabora para ancorar as expectativas de estabilização da dívida pública – afetando inflação e juros futuros”, pontuaram os economistas da XP.

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Para Salto, uma situação de resultado primário pior do que o limite inferior da meta fiscal zero e de despesas discricionárias com margem para corte não exercida no nível inicialmente imaginado poderia piorar as projeções para a dinâmica das contas públicas. “Todos incorporaríamos nas estimativas uma despesa sistematicamente maior, motivada pela própria limitação ao corte de discricionárias”, disse.

Ele também levanta como hipótese uma possível “aposta implícita” do governo no chamado “empoçamento de gastos” − termo utilizado como referência a gastos que o poder público não consegue exercer durante a execução orçamentária. “Com uma despesa de R$ 196,9 bilhões (R$ 211,9 menos R$ 25 bilhões), em 2024, a gordura seria tal que, provavelmente, repetiríamos, em 2024, o quadro de 2023, com um empoçamento (gasto autorizado não realizado) de algo como R$ 24 bilhões. Melhor seria aplicar ipsis literis o que diz a regra da LC 200. Isso evitaria ruídos desnecessários e, mais importante, afastaria o risco fiscal”, sugeriu.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.