Michael Burry: o médico que previu a crise dos subprime nos EUA

Gestor de fundos, ele apostou na queda do mercado de títulos hipotecários que precipitou o tombo global de 2008, retratada no filme ‘A Grande Aposta’.

Michael Burry
(Imagem: Reprodução/ UCLA)
Nome completo:Michael James Burry
Local de nascimento:San José, Califórnia, Estados Unidos
Data de nascimento:09 de junho de 1971
Formação:Medicina
Ocupação:Investidor, gestor da Scion Asset Management
Fortuna:

Michael Burry é um médico norte-americano, investidor e gestor de fundos de hedge. É conhecido por ter sido um dos primeiros profissionais do mercado financeiro a prever o estouro da bolha das hipotecas nos Estados Unidos em 2007, que levou à crise financeira internacional em 2008.

Pelo menos dois anos antes, o californiano percebeu a fragilidade dos títulos lastreados em dívidas imobiliárias “subprime”, apostou contra estes papéis e, quando veio a queda, fez uma fortuna para si e para seus clientes, enquanto instituições tradicionais quebravam. Mais recentemente, se notabilizou por fazer alertas sobre potenciais bolhas e crises, principalmente pelo Twitter.

Ele alcançou o status de celebridade quando a história da crise das hipotecas foi relatada no livro “A Jogada do Século: A História do Colapso Financeiro de 2008”, de Michael Lewis, publicado em 2010, e retratada na adaptação cinematográfica “A Grande Aposta”, de Adam McKay, produzido em 2015, com Christian Bale no papel de Burry. O filme ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado em 2016 e foi indicado a vários outros, inclusive o de melhor ator coadjuvante, para Bale.

(Crédito: Reprodução)

Garoto do olho de vidro

Michael James Burry nasceu em San José, na Califórnia, em 09 de junho de 1971. Antes de completar dois anos, foi submetido a uma cirurgia para extirpar um câncer e acabou perdendo o olho esquerdo. No livro, Lewis diz que um garoto com apenas um olho vê o mundo de forma diferente dos demais. Esta é uma das características atribuídas a Burry, ver no mercado nuances que passam despercebidas dos outros, e nadar contra a corrente.

Burry costumava atribuir à perda do olho, e ao consequente uso de uma prótese de vidro, muitas características de sua personalidade, como dificuldade de interagir socialmente e fazer amizades; preferência por esportes individuais, como natação, e atividades solitárias; e até, em sua próprias palavras, obsessão por equidade ou justiça. Obsessão é outra faceta que ele atribui ao seu comportamento. Não há meio termo: ou se interessa muito por alguma coisa e vai a fundo ou não está nem aí.

Desde cedo, pegou gosto por acompanhar o mercado financeiro, o que se tornou um hobby. “Eu tinha interesses profundos, como me tornar um estrela do rock ou ser um atleta ou um administrador de dinheiro”, declarou Burry num documentário da série Risk Takers, da Bloomberg.

Só muito mais tarde, quando seu filho Nicholas, então com quatro anos, foi diagnosticado com síndrome de Asperger que, ao ler livros sobre a questão, Burry se autodiagnosticou como portador de uma forma leve do transtorno. “Quantas pessoas pegam um livro e encontram nele um manual de instruções de sua própria vida?”, diz ele no livro de Lewis sobre sua epifania. Quando jovem, Burry havia sido apontado como bipolar por um psiquiatra, diagnóstico que ele de pronto rejeitou, pois não era dado a depressões.

O olho de vidro deixou de ser a explicação para seu comportamento. “Agora eu era explicado por um transtorno”, afirmou Burry a Lewis (em tradução livre). Ele atribui a esta condição seu interesse em estudar o mercado e chegar aos seus mais profundos detalhes, vendo coisas que os outros deixam passar. “Foi um golpe de sorte que seu interesse especial era o mercado financeiro e não, digamos, colecionar catálogos de cortadores de grama”, diz Lewis com ironia no livro (em tradução livre). Isso iria ajudar o investidor a enxergar as entranhas das transações com títulos hipotecários.

Doutor Michael J. Burry

Ao terminar o colégio, Burry entrou na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), onde se alternou entre Inglês, Economia e o curso preparatório para medicina. Acabou se formando em Economia, mas logo foi cursar Medicina da Universidade Vandebilt, em Nashville, no Tenessee.

Posteriormente, Burry voltou à Califórnia para fazer residência no Hospital da Universidade Stanford. Foi residente em Neurologia e, por um período, em Patologia. A prática da Medicina, no entanto, era entediante para ele, e até repugnante, segundo Lewis conta no livro. Além disso, havia sua dificuldade de se relacionar com as pessoas.

Nascido e criado no Vale do Silício, Burry se interessava por computadores e, ainda na faculdade de Medicina, começou a participar de fóruns de discussão sobre o mercado financeiro na internet. Depois criou um blog, onde explicava suas negociações no mercado financeiro, ainda como hobby. Na residência, fazia isso entre os plantões, geralmente das 23 à 03 horas da madrugada. Ele conta que, nesse ritmo, chegou a dormir quando acompanhava uma cirurgia e acabou expulso da sala de operações pelo cirurgião.

Com suas postagens sobre o mercado acionário, o jovem médico começou a atrair a atenção de investidores e instituições. No documentário da série Risk Takers, Burry conta que foi convidado por um editor de Economia do portal MSN, da Microsoft, para escrever sobre o tema no site, e ganhava US$ 1,00 por palavra pelo trabalho. Ou seja, se este texto fosse de Burry, ele ganharia US$ 3.972,00 na ocasião.

Era final dos anos 1990, época da bolha das empresas “ponto com”, que Burry qualifica como algo “insano”, afirmando que então já fazia uma abordagem do mercado diferente da maioria. Essa bolha viria a estourar no início da década seguinte.

Burry se classificava como um “value investor” (“investidor em valor”, em tradução livre), conceito criado pelo economista inglês Benjamin Graham no final da década de 1920 que consiste, grosso modo, em identificar empresas com perspectivas de bons resultados e cujas ações estejam momentaneamente baratas, ou seja, com potencial de valorização. Isso demanda bastante pesquisa. Graham foi mentor de Warren Buffett, grande guru dos investidores atuais. Entre lições de Graham e Buffett, Burry chegou à conclusão que o bom investidor é aquele segue seu próprio caminho e suas própria regras; e que suas posições, às vezes contrárias ao senso comum, davam certo.

“Gosto de ter minhas próprias ideias, leio muito, muitas notícias”, diz no documentário da Bloomberg. “Gosto de seguir o meu nariz e as notícias da imprensa”, acrescentou.

Seu pai, um engenheiro mecânico, morreu depois de um diagnóstico errado. Segundo o livro, um médico falhou ao não identificar um câncer numa radiografia, o que rendeu uma indenização à família.

Burry acabou abandonando a residência após terminar o terceiro ano. Voltou a morar em San José e decidiu largar a medicina para se dedicar ao mercado financeiro em tempo integral. Apesar do pai não gostar do mercado acionário, o dinheiro da indenização acabou por financiar a carreira do filho.

Crônicas de Shannara

Burry conta que, na época, tinha um saldo de US$ 40 mil a US$ 45 mil, mas também uma dívida de US$ 145 mil em financiamento estudantil. Sua mãe contribuiu com US$ 20 mil e seus três irmãos, com US$ 10 mil cada. Fundou o fundo Scion Capital no ano 2000, em Cupertino, na Califórnia, onde fica também a sede da Apple.

O nome é baseado no livro The Scions of Shannara (Os Herdeiros de Shannara, em tradução livre), do escritor norte-americano Terry Brooks, parte de uma série de fantasia ambientada no mundo fictício de Shannara, a Terra num futuro distante. Burry é fã do gênero, e Christian Bale aparece lendo um exemplar do livro numa das cenas do filme de 2015, no que hoje é chamado de “easter egg” (“ovo de páscoa”), referências colocadas propositalmente dentro de uma produção cinematográfica, geralmente à cultura pop.

O médico transformado em gestor de fundos já havia atingido alguma fama com a publicação de suas transações, comentários e análises na internet. Ele chamou a atenção do Gotham Capital, um fundo de grande porte fundado pelo investidor Joel Greenblatt, que o convidou a ir a Nova York para uma reunião. “Ele (Burry) era obviamente um cara brilhante, e não há muitos deles por aí”, afirma Greenblatt no livro de Lewis.

Como mostrado no filme, Burry trabalhava descalço, geralmente de bermudas e camiseta, então teve que comprar uma gravata para comparecer ao encontro e controlar sua ansiedade, dada sua aversão a contatos pessoais. Com seus clientes, ele se comunicava majoritariamente por correspondência ou e-mail e, mesmo tendo mudado de profissão, continuava insistindo que o chamassem de “doutor”. Assinava seus comunicados como “Dr. Michael J. Burry” ou “Michael J. Burry, Médico”.

A reunião foi um sucesso e Burry voltou à Califórnia com US$ 1 milhão do Gotham Capital pela compra de parte do Scion. Pouco tempo depois, ele foi procurado pela seguradora White Mountain, então administrada pelo executivo Jack Byrne, já falecido, que era próximo de Warren Buffett. A White Mountain pagou US$ 600 mil por uma parte do fundo e ainda prometeu uma remessa de US$ 10 milhões para investimentos.

Burry não desapontou. Em 2001, primeiro ano completo de funcionamento, seu fundo teve uma valorização de 55%, ao passo que o índice de ações S&P 500 caiu 11,88%. O sucesso continuou nos anos seguintes. Em 2002, o Scion subiu 16%, e o S&P 500 recuou 22,1%; em 2003, o indicador avançou 28,69%, mas o fundo teve ganhos ainda maiores, de 50%. De acordo com o livro de Lewis, no final de 2004, o médico administrava US$ 600 milhões. Em meados de 2005, quando o mercado de capitais nos Estados Unidos registrava uma queda de 6,84% no acumulado de cinco anos, seu fundo registrava valorização de 242% desde sua fundação, e ele já se dava ao luxo de recusar investidores.

Burry diz que desde o início disse aos seus clientes para avaliar sua performance no longo prazo, de três a cinco anos, e incluía nos contratos cláusulas que permitiam o bloqueio de saques em determinas situações, afinal suas estratégias de investimento fugiam do padrão.

Fechado em seu escritório, isolado, como gosta, o californiano estudava atentamente relatórios, balanços, prospectos e as notícias do mercado. Assim, ele cunhou o termo “investimento ‘ick’”. “Ick” é uma expressão de surpresa ou nojo, algo como “eca”, em português. Ou seja, significa se interessar a analisar ações cuja primeira reação é: “Eca!”.

Nas entrelinhas

Foi nesse contexto que Burry se interessou pelos papéis lastreados em hipotecas subprime. Via de regra, estes títulos resultavam de operações complexas e eram pródigos em termos e siglas complicadas, mas econômicos em transparência. Incluíam uma pilha enorme de empréstimos imobiliários colocados em fatias, ou “tranches”, sendo que as operações com melhor avaliação de risco apareciam por cima, e as piores ficava na base, como um castelo de cartas.

Ele passou meses lendo atentamente dúzias de prospectos com centenas de páginas, coisa que ninguém fazia, provavelmente só os advogados que os redigiam, e talvez nem eles. “Só alguém com síndrome de Asperger leria um prospecto de título de hipoteca subprime”, comentou.

O mercado destes papéis estava aquecidíssimo, assim com o setor imobiliário em si. Burry percebeu, porém, que havia algum tempo vinha crescendo a taxa de inadimplência das hipotecas, e os bancos estavam emprestando dinheiro para gente que não tinha condições de pagar, até pessoas sem nenhuma renda.

Estes empréstimos lastreavam os papéis e eram passados para frente. Ele avaliou que, em algum momento no futuro, quando os prazos de carência dos contratos terminassem e a inadimplência aumentasse mais ainda, o castelo de cartas desabaria, e investidores e bancos que compravam e vendiam avidamente estes títulos terminariam com lixo nas mãos, papéis imprestáveis.

“Quem dava crédito [hipotecário] geralmente vendia estes empréstimos arriscados para Wall Street, para serem empacotados em títulos lastreados em hipotecas, e assim passavam o risco ara frente. Quem dava créditos estava cada vez mais preocupado com a quantidade de hipotecas e não a qualidade”, declarou Burry em artigo para o New York Times (NYT), de 2010. “Eu percebi que o mercado de hipotecas iria derreter no segundo semestre de 2007”, acrescentou.

Nesse momento, em meados de 2005, o doutor decidiu que era uma boa ideia apostar contra tais operações. O problema é que não existiam ferramentas para tanto. Apostar contra o sólido e pujante mercado imobiliário e seus derivativos era visto como algo fora de propósito. O mercado não aceitava que alguém operasse “vendido” neste caso, ou “short”, termo em inglês que, grosso modo, significa “venda” – e compõe o titulo original tanto do livro de Lewis como do filme de McKay: “The Big Short”.

Burry foi buscar em outros segmentos do mercado financeiro a resposta para este dilema e a encontrou na forma de um tipo de contrato chamado “credit-default swap”. Trata-se de uma espécie de seguro para títulos de dívidas de empresas em caso de calote e é usado também como mecanismo de especulação contra tais papéis . O comprador deste instrumento, no entanto, tem que pagar ao emissor um valor periódico para receber o “seguro”, se houver o calote, e não recebe nada se a dívida for paga corretamente. Durante o prazo de vigência, quanto mais o papel atacado desvaloriza, mais o “credit-default swap” valoriza.

Como esta ferramenta não existia no mercado de títulos hipotecários, Burry foi correr Wall Street em busca de alguma instituição que a criasse, acreditando que em breve haveria “pessoas inteligentes” interessadas na mesma coisa, dadas as condições do mercado imobiliário. Com base nos prazos de carência das hipotecas, majoritariamente dois anos de taxas de juros fixas e baixas, que depois seriam substituídas por taxas variáveis e, provavelmente, muito altas, ele calculou que a quebradeira começaria em 2007.

Ficou surpreso ao descobrir a falta de interesse dos bancos no negócio, o que o levou a concluir que outras pessoas não partilhavam de suas expectativas. Só o Deutsche Bank e o Goldman Sachs manifestaram algum interesse inicialmente. Embora tenha sido recebido com ceticismo, em maio de 2005, Burry comprou US$ 60 milhões em “credit-default swaps” do Deutsche Bank, seis no total, no valor de US$ 10 milhões cada para seis títulos hipotecários diferentes. O Goldman Sachs seguiu a mesma linha e depois uma dezena de outros bancos.

Em sua avaliação, os bancos estavam vendendo barato estes “seguros”, em tese alienados do risco embutido nos títulos subprime. “Eu me fiz bastante de bobo, fazendo parecer para eles que eu não sabia o que estava fazendo, na realidade”, contou no livro. No final de julho de 2005, o Scion Capital tinha aplicado US$ 750 milhões em “credit-default swaps”.

Mas nem todos os seus investidores ficaram contentes, pois embora o considerassem um bom administrador, vendo nele um ótimo “stock picker”, não conseguiam entender porque Burry tinha que se meter no mercado de títulos hipotecários “podres” e duvidavam de sua capacidade de antecipar grandes tendências macroeconômicas. “Stock picker” é um profissional que analisa e escolhe ações de empresas com potencial e monta uma carteira com boas perspectivas de retorno, de preferência acima da valorização do mercado.

Ainda assim, tentou criar outro fundo exclusivamente para apostar contra títulos de hipotecas subprime, com US$ 600 milhões, tão certo ele estava de suas previsões. Batizou a iniciativa de “Milton’s Opus” (“Obra de Milton”, em tradução livre). Na proposta que enviou aos investidores, questionava logo no início: “Qual é obra (Opus) de Milton?”. E respondia: “Paraíso Perdido”, em referência ao poema épico do inglês John Milton, do século 17. Não colou, e o empreendimento foi natimorto.

A esta altura, ele já tinha pelo menos US$ 1 bilhão empatados em “credit-default swaps” contra títulos hipotecários subprime e ainda tinha que pagar as prestações periódicas destes “seguros”, ou seja, gastar dinheiro, deixando os investidores ainda mais nervosos. Mesmo com os indicadores de inadimplência piorando, o mercado imobiliário se mantinha em alta, e os clientes começaram a ameaça tirar dinheiro do fundo e processar o gestor. Ele, no entanto, reteve os recursos, exercendo o bloqueio previsto em contrato.

“Ganhar dinheiro não é a única coisa importante, mas também saber se comunicar e estar nas boas graças das pessoas”, disse Burry no documentário da Bloomberg, reconhecendo que sua forma de se comunicar com os clientes apenas por escrito talvez não tenha sido a melhor.

No final de 2005, porém, representantes de vários bancos começaram a entrar em contato com Burry com a intenção de comprar seus “seguros” contra papéis subprime. Para ele, era um sinal de que o mercado começava a virar. Mas ainda demorou para desabar mesmo, e o médico se viu sob pressão até às vésperas da quebradeira propriamente dita. O investidor lembrou que, em 2006, enquanto os índices do mercado subiam de 5% a 10%, seu fundo caia 20%.

Até que no segundo semestre de 2007 a bolha estourou. Para sobreviver a este período de dois anos, Burry se viu obrigado e demitir metade de sua já reduzida equipe e se desfazer de uma fortuna em outros papéis. No final, a aposta contra os títulos subprime rendeu a ele próprio um retorno de US$ 100 milhões, mais US$ 750 milhões para seus investidores. Ou seja, ele dobrou o total investido.

Burry se ressente de não ter recebido na época o devido reconhecimento por ter antecipado a crise. O então já ex-presidente do Fed, o banco central americano, Alan Greenspan, chamou seus ganhos de “sorte de principiante” e disse que ninguém havia previsto a crise . O médico respondeu com o artigo de 2010 no NYT, com título: “Eu vi a crise chegando. Por que o Fed não viu?”. Ele também criticou as agências de classificação risco. “Eu via como as agências de rating ratificavam os títulos lastreados por hipotecas subprime. Para mim, estas agências não estavam prestando muita atenção”, ressaltou.

Apesar dos lucros, a relação de Burry com seus clientes estava abalada depois de tanto tempo de tensão e ele acabou encerrando o Scion Capital. “Acho que nós não recebemos sequer um telefonema [de investidores] em 2008”, contou ele no documentário da Bloomberg. “Alguns dos investidores originais tiraram todo seu dinheiro do fundo”, acrescentou. Segundo o livro de Lewis, o fundo teve uma valorização líquida de 489,34% desde sua criação, em 01 de novembro de 2000, até sua extinção, em 30 de junho de 2008.

O investidor não se vê como um grade tomador de riscos. Para ele, a aposta contra os subprimes era uma questão de lógica, não de mera especulação. “Eu estava 100% confiante [de que a bolha ia estourar]”, afirmou no documentário da Bloomberg.

O tombo dos EUA levou junto o resto do mundo, numa crise financeira que duraria até 2009 e que teria reflexos durante muitos anos ainda. Burry se recolheu e passou a cuidar apenas de seus investimentos pessoais, até o livro de Lewis e, posteriormente, o filme, levarem seu nome ao estrelato.

A produção fez tanto sucesso que até hoje a imprensa norte-americana se refere a Burry como o cara de “A Grande Aposta”. O filme o retrata ouvindo rock pesado e tocando bateria em momentos de tensão, como um outsider que tem dificuldade de conversar frente a frente com outras pessoas e que é incompreendido, apesar da convicção com que segue suas estratégias e dos resultados que apresenta.

Um bom roteirista sabe que o público tem que ter empatia pelo personagem para a história funcionar, mas Burry é de fato fã do estilo musical e toca guitarra. Ele fala abertamente sobre sua inabilidade social e que suas propostas podem parecer pouco ortodoxas, mas são fruto de muito estudo, raciocínio lógicos e de ver as coisas por vários ângulos.

Tuitaço

Em 2013, ele abriu uma nova empresa de gestão de fundos de hedge, a Scion Asset Management, em Saratoga, também no Vale do Silício. Mais recentemente, Burry voltou a dar alertas sobre bolhas e crises em potencial.

Em 2019, ele disse que havia uma bolha no segmento de investimentos passivos – como fundos que seguem índices de referência -, que estavam inflacionando os preços de ações e títulos. “Como a maioria das bolhas, quanto mais tempo ela durar, maior será o tombo”, afirmou ele à Bloomberg.

Demorou, mas no início de 2020 ele começou a causar no Twitter. No início de 2021, chamou a enorme valorização das ações da rede varejista de videogames GameStop de “não natural, insana e perigosa”. O curioso é que foi o próprio Burry que deu o pontapé inicial no frenesi de negociações, quando anunciou em 2019 a compra de 5,3% dos papéis da empresa.

Em março de 2021, o alvo foi a criptomoeda Bitcoin. “$BTC é uma bolha especulativa que traz mais riscos do que oportunidades, apesar de a maioria dos proponentes estar correta em seus argumentos porque ela é relevante neste momento”, declarou. “Se você não sabe quanta alavancagem está envolvida, talvez você não saiba o suficiente para tê-la”, acrescentou.

Ele também criticou a indústria de carros elétricos Tesla, o aplicativo de investimentos Robinhood e os tokens NFT, que chamou de “feijões mágicos”. Vale ressaltar que Burry costuma apagar seus tuítes algum tempo depois de postar.

Em 2020, quando começou a usar a rede social, o médico protestou contra os lockdowns para combater a pandemia de Covid-19. Ele disse que os efeitos do isolamento poderiam ser piores do que os da doença, causando recessão e desemprego, afetando principalmente os mais pobres e minorias. Burry afirmou ainda que deveria ser ampliada a disponibilidade de hidroxicloroquina, medicamento que não tem eficácia comprovada contra a Covid.

“Uma permanência em casa universal é a mais devastadora força econômica na história moderna”, declarou à Bloomberg. “E é causada pelo homem. [O lockdown] reverte subitamente os ganhos de grupos desfavorecidos, mata e cria viciados em drogas, agride a aterroriza mulheres e crianças em domicílios violentos e agora sem emprego, e mais”, acrescentou. Na época, em abril de 2020, o desemprego atingiu 14,8% nos Estados Unidos, o pico na pandemia, mas em fevereiro de 2021 já havia recuado para 6,2%.

Quase um ano e 546 mil mortes – só nos EUA – depois, não se sabe se a opinião do doutor permanece a mesma, mas suas declarações sobre o isolamento mostram que remar contra a maré nem sempre dá resultados, muitas vezes dá em caldo. Se bem que, na época, sua avaliação estava alinhada com lideranças como Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Em fevereiro de 2021, Burry ainda tuitou que o auxílio econômico do governo norte-americano em função da pandemia poderia resultar em inflação. Um mês depois, o presidente Joe Biden anunciou um pacote de estímulo de US$ 1,9 trilhão. O Fed sinalizou que a taxa básica de juros dos EUA deve ser mantida próxima a zero pelo menos até 2024, mesmo com perspectivas de forte crescimento da economia. O aumento dos juros é a principal ferramenta de controle da inflação nas mãos das autoridades monetárias.

Depois de tanto barulho, Burry decidiu parar de tuitar seus alertas e opiniões. Seu perfil agora conta apenas com nomes de bandas de rock pesado, recomendações de restaurantes e frases em vietnamita, origem de sua mulher. Ele colocou “Cassandra” como nome de seu perfil, uma referência à princesa troiana que encantou Apolo com sua beleza, recebeu do deus o dom da profecia, mas não deixou se seduzir por ele, sendo amaldiçoada para que ninguém acreditasse em suas previsões. Previu a queda de Troia, mas ninguém levou a sério.

Michel Burry é casado com sua segunda mulher, tem dois filhos e segue vivendo na Califórnia.