Não existe almoço grátis: entenda o que muda para as empresas com a sanção presidencial da MP do vale alimentação

Medida provisória sancionada hoje não afeta contratos atuais; novatas do setor comemoram e miram em março de 2023

Mariana Amaro

(Foto: Pexels/ Andrea Piacquadio)

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Um mercado gigantesco, de cerca de R$ 150 bilhões, está concentrado em quatro grandes empresas: Sodexo, Alelo, Ticket e VR Benefícios, mas a Medida Provisória 1.108, aprovada pelo congresso no começo de agosto e sancionada e publicada hoje (5) como Lei 14.442, pelo presidente Jair Bolsonaro, pode chacoalhar esse cenário.

As mudanças já são comparadas à abertura do mercado de cartões de crédito a partir de 2010, com o fim da exclusividade das maquininhas, e podem fazer com que novatas do setor tenham mais espaço para crescer.

Entre os pontos do texto, ao menos um era rejeitado por praticamente todas as empresas do setor de benefícios: a possibilidade de saque do benefício após 60 dias sem uso, o que permitiria o uso do dinheiro para outras finalidades e iria contra pontos da própria MP, que exige que os benefícios fossem utilizados apenas para o pagamento de refeições e a compra de alimentos. O ponto foi vetado no texto final publicado no Diário Oficial da União, mas o Congresso ainda dará a palavra final sobre o texto.

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Para Ademar Bandeira, CFO da Flash Benefícios, o que preocupava na possibilidade de saque não era o curto prazo, mas o longo. “Hoje, o trabalhador gasta todo o valor do benefício em uma média de 14 dias, então menos de 1% dos trabalhadores teria algo para sacar. Nossa preocupação é que haja uma mudança no formato de pagamento, com evasão de impostos, que os empregadores passem aumentar o valor do benefício em vez de aumentar os salários, dada a possibilidade de saque do benefício sem impostos. Isso destruiria o PAT (Programa de Alimentação do Trabalhador). Todas as empresas do setor são contra o saque”, diz Bandeira.

Procuradas pelo InfoMoney, as quatro maiores empresas do setor informaram que seguiriam o posicionamento da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT) e não se manifestariam individualmente.

Por meio de nota, a ABBT informou que contava que o Governo Federal vetaria parte da versão aprovada pela Câmara dos Deputados. Para a associação, a MP que passou pelo Congresso previa uma série de incongruências que prejudicaria a segurança alimentar de trabalhadores e destacava, justamente, o saque em dinheiro do valor do benefício recebido no PAT, que não fosse utilizado em 60 dias.

A associação alertou que a possibilidade de saque traria uma insegurança jurídica e um risco para o trabalhador, já que a receita federal poderia caracterizar o valor recebido como remuneração e, portanto, passível de tributação. “O benefício em dinheiro àqueles que mais precisam de assegurar sua alimentação durante a jornada de trabalho – a maioria dos beneficiários ganham até três salários mínimos – pode levar à prática de “agiotagem”, com a venda dos vales em troca de empréstimos, e fomentar um mercado ilegal” afirmou a entidade.

Outro ponto da MP que desagradava boa parte do setor era o da portabilidade, que mantido por Bolsonaro. Segundo a ABBT, que fala em nome de todas as grandes empresas, o sistema no qual seria possível escolher por qual operadora de cartão o trabalhador deseja receber o benefício, que em um primeiro momento pode parecer simples, cria dificuldades e pode inviabilizar a concessão do benefício pelos empregadores, que passarão a ter que gerir internamente dezenas de operadoras diferentes para o pagamento do benefício.

Pedro Lane, fundador da Flash lembra que a portabilidade em outros setores, como telefonia e conta-salário, funcionou muito bem, mas que sem um padrão pode cair em problemas, inclusive jurídicos. “Se um trabalhador faz a portabilidade de um benefício de uma empresa para outra e o valor ‘some’ no meio da transação, de quem é a culpa?”, questiona.

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Carla Dolezel, advogada e reitora da Faculdade Instituto Rio de Janeiro (FIURJ), avalia que, pelo lado social, a portabilidade seria benéfica. “Existe, hoje, uma relação entre empregadores e empresas fornecedoras tomando decisões sobre a alimentação do trabalhador que, no fundo, não participa dessa relação diretamente. Recebe o benefício, mas não pode escolher os termos”, afirma.

Para Dolezel, a possibilidade de maior concorrência é vantajosa para os trabalhadores e comerciantes de alimentos, que teriam mais liberdade. Por outro lado, a advogada admite que a portabilidade pode gerar problemas na operacionalização.

Karen Fletcher, Head do jurídico da Caju, startup do setor, encontra outro ponto de polêmica na portabilidade. “Ela pode abrir margem para outras práticas de mercado, como pagamento de cashback para os usuários e seria uma barreira para novos entrantes no mercado”, afirma. Essa, segundo Fletcher, seria uma forma de dar sobrevida ao rebate – o desconto usado pelas grandes fornecedoras de vales – que foi proibido pela medida.

Pontos de divergência

Entre as mudanças aprovadas (e mais comemoradas pelos novatos) estão a interoperabilidade entre bandeiras, o arranjo aberto e o fim do rebate.

Enquanto o primeiro ponto permite que o trabalhador use o cartão em qualquer restaurante que aceite o pagamento em vale, o segundo – arranjo aberto – amplia ainda mais as possibilidades de uso.

As maiores empresas do setor, quando se estabeleceram, funcionavam em um ambiente fechado: a prestadora do benefício tinha que credenciar os estabelecimentos formando uma rede única da própria empresa. “Isso fazia com que o mercado operasse com taxas altíssimas que são cobradas do estabelecimento, resultado dos grandes descontos – os rebates – que eram pagos para as empresas clientes. “Afinal, não existe almoço grátis”, afirma a advogada Dolezel.

O arranjo aberto, contudo, não é uma inovação dessa MP. “A diferença é a publicidade que essa informação está recebendo”, afirma Fletcher.

Novos mercados

As mudanças implementadas pela MP foram costuradas por bastante tempo. “As discussões começaram com a grande reforma trabalhista de 2018, que inseriu, na CLT, artigos específicos sobre benefícios”, afirma Any Genovez, diretora responsável pela área legal e de compliance da Swile, startup de benefícios francesa que desembarcou no Brasil após adquirir uma concorrente por aqui.

Para Genovez, esse foi o pontapé inicial para que os trabalhadores e empresas deixassem de entender benefícios meramente como vale-alimentação e refeição. “A reforma trouxe o conceito de pagamentos que não possuem natureza salarial e listou saúde, cultura, transporte e educação. Abriu, assim, o mercado para empresas de benefícios flexíveis”, afirma.

CEO da Eva Benefícios, Marcelo Lopes, faz coro. Vindo do mercado de fintech, ele enxerga o movimento de mudança na regulação como uma grande oportunidade. “Os grandes players desencorajam a regulação e que haja esse movimento porque isso significa que vão aparecer novos participantes. Mas, no fim das contas, isso é vantajoso para os trabalhadores, as empresas e o próprio setor, porque empurra a inovação”, afirma.

Mariana Amaro

Editora de Negócios do InfoMoney e apresentadora do podcast Do Zero ao Topo. Cobre negócios e inovação.