TudoAzul e Smiles suspendem contas de usuários por venda de milhas: entenda a situação e veja o que fazer

Azul e Gol aplicam sanções mais rígidas para combater comércio de milhas no Brasil

Giovanna Sutto

(Getty Images)

O TudoAzul, programa de fidelidade de milhas da companhia aérea Azul (AZUL4), e a Smiles, que gerencia as milhas de clientes da Gol (GOLL4), suspenderam por 90 dias as contas de usuários que supostamente desrespeitaram os regulamentos dos programas. O motivo: venda de pontos para terceiros.

O programa da Azul encaminhou, na semana passada, um e-mail a um grupo de clientes notificando-os sobre a suspensão das contas. O texto, compartilhado pelos consumidores, dizia que o bloqueio poderia ser evitado desde que não houvesse comercialização de pontos com terceiros.

A Smiles também enviou um e-mail informando aos clientes da suspensão, após ter identificado uma “conduta em desacordo com o regulamento”, mas sem mencionar se o bloqueio foi causado por comercialização de milhas. Como o procedimento ainda não é regulamentado no país, não há definições oficiais sobre o funcionamento desse mercado.

No site do ReclameAqui vários clientes compartilharam queixas sobre a situação. Alguns afirmaram não ter vendido pontos e outros defenderam ser um direito comercializar as próprias milhas.

Leia também: Milhas: o que são, como funcionam e o que fazer com elas

Reclamações

“Recebi da Azul, por e-mail, uma ameaça de bloquear minha conta TudoAzul por venda de milhas, sendo que nunca fiz isso. Se houver bloqueio, vai ter processo judicial contra a empresa”, diz um cliente de Belo Horizonte (MG), em 8 de setembro.

Outro cliente, do Rio de Janeiro, também relatou o conteúdo da notificação por e-mail. “Recebi um e-mail da companhia informando sobre movimentações suspeitas na minha conta e falando sobre a proibição do uso dela em caso de venda de milhas. Como punição ficarei sem acesso à conta por meses. Isso é abusivo e ilegal. As milhas são minhas e não há lei que proíba a venda das mesmas”, avalia o cliente.

“Recebi um e-mail dizendo que bloquearam minha conta TudoAzul por suspeita de venda de milhas logo depois de eu cadastrar minha esposa pra fazer uma viagem. Vou ter que processar [a companhia aérea] caso não desbloqueiem minha conta o mais rápido possível! Gostaria que provassem que vendi minhas milhas! [A conta] está inativa”, afirma outro consumidor da Paraíba.

As reclamações contra a Smiles seguem na mesma linha.

“Minha conta foi bloqueada sem motivo algum. Sou cliente antigo da Smiles e fiz a assinatura do clube de vantagens recentemente. Minha conta foi bloqueada. Não fiz nada de errado, não estou fazendo o comércio de venda de milhas. Apenas fiz um resgate […]”, conta outro consumidor de Manaus (AM).

“Tenho 259.000 milhas na Smiles, que decidi vender. Realizaram, porém, o bloqueio da minha conta e cancelamento da assinatura do clube. Já tentei contato de todas as formas possíveis e estou sem acesso ao aplicativo há 10 dias. Quero um parecer sobre o que está acontecendo, e o motivo de efetuarem o bloqueio. […]”, diz um cliente de Guapó (GO).

O que dizem as empresas?

A Azul e a Smiles confirmaram, por nota, a suspensão temporária das contas de clientes por venda de milhas.

“A Azul informa que alguns clientes participantes do TudoAzul tiveram suas contas temporariamente suspensas após a companhia constatar movimentações contrárias ao regulamento de seu programa de fidelidade. A companhia destaca que vem notificando os clientes que estejam agindo em desacordo com as regras do programa e que, após constatar reincidências, aplica as penalidades previstas e que são de conhecimento prévio dos participantes”, diz a nota da empresa.

O regulamento diz que a empresa “poderá excluir ou suspender a conta, bem como o acesso do participante caso este:

“A Smiles informa que suspendeu temporariamente as contas de alguns participantes no dia 5 de setembro de 2022, após observar ações em sua plataforma que estão em desacordo com o regulamento do programa de fidelidade. A medida, que terá duração de 90 dias, tem como objetivo alertar os participantes Smiles sobre o uso indevido do programa. As viagens futuras já quitadas não sofrerão alterações, e os clientes poderão contar com o suporte do time de atendimento”, afirma a nota.

O regulamento diz que a GOL poderá excluir ou suspender do programa Smiles o participante que:

As empresas não afirmaram quantos usuários foram suspensos e nem como foram identificados.

O InfoMoney também contatou a Latam para entender como seu programa de fidelidade, o LatamPass, trata o tema. Em nota, a empresa disse que “monitora de perto o uso dos pontos dos clientes de acordo com o regulamento do programa e aplica a suspensão ou até mesmo a exclusão permanente do usuário especialmente quando constatada a comercialização ou qualquer outro uso indevido”.

A empresa ressalta que o objetivo do programa é oferecer benefícios aos clientes que mais usam os serviços da empresa.

“Nesse contexto, há um regulamento, que é assinado por ambas as partes na entrada do programa, no qual as regras e as sanções — como essa apresentada pela reportagem — fazem parte das cláusulas contratuais e fundamentais para a adesão ao programa”, diz a empresa.

Em seu regulamento, o LatamPass diz que “serão suspensos ou excluídos do programa todos os clientes que venham a infringir os Termos e Condições e/ou a legislação vigente, bem como utilizem de má-fé, fraude ou ardil no acúmulo de pontos e/ou no resgate de benefícios, sem prejuízo de arcar com as respectivas responsabilidades civis e criminais relacionadas”.

É permitido vender milhas?

No Brasil não há uma regulamentação sobre a comercialização de milhas. Portanto, o procedimento não é ilegal. Tanto é que existem uma infinidade de sites especializados nesse comércio de pontos.

Por isso, o tópico é polêmico e divide opiniões.

De um lado, os programas desqualificam a venda de pontos e milhas para terceiros por descaracterizar a ideia da fidelização. Por trás disso também existe um fator econômico: um determinado trecho vendido via milhas, no mercado informal, pode ser mais barato do que o preço da companhia aérea.

Um exemplo: quem buscou, nos últimos dias, uma passagem aérea para o Rio de Janeiro encontrou valores de até R$ 2.500, a partir de São Paulo. Mas o mesmo trecho pode custar R$ 500 no site que emite passagens com milhas porque alguém estava disposto a vender os pontos necessários para a emissão do bilhete neste patamar de preço.

Importante ressaltar que os programas de fidelidade também ganham com a circulação de milhas, afinal, são eles os emissores dos pontos aos clientes. “Mas ninguém quer o prejuízo de não vender passagens (seja via dinheiro, seja via milhas), que é o negócio principal”, explica Alexandre Zylberstajn, especialista em milhas.

Já os sites que comercializam passagens, a partir das milhas, alegam que estão democratizando o acesso às viagens, além de defenderem que as milhas são do consumidor, que pagou por elas.

“Existem projetos de lei que visam regulamentar tal pratica, todavia, ainda aguardam a análise e o parecer de determinadas comissões do Congresso. Mas, por não haver regulamentação, inexiste qualquer fiscalização por parte de órgãos oficiais”, explica Victor Hanna, advogado especializado em direito aeronáutico e sócio do Goulart Penteado.

Milhas

As empresas podem bloquear as contas?

Com o mercado de milhas e pontos sem regulamentação, as regras dos programas de fidelidade são estabelecidas exclusivamente pelas empresas que fornecem o serviço.

“Ao analisar as regras propostas pelo programa, o usuário deve ponderar e decidir se deseja ou não participar. Trata-se de um contrato de adesão”, afirma o advogado Victor Hanna, do Goulart Penteado.

Segundo Hanna, caso as empresas responsáveis pelos programas identifiquem alguma conduta irregular ou que estão em desacordo com os termos e condições, elas têm a liberalidade de suspender ou banir o usuário e aplicar multas, conforme as regas previstas pelos programas de milhas.

A lógica do programa é que, em tese, o titular da conta consiga emitir passagens e utilizar serviços e benefícios para sua família e amigos, por exemplo, através dos pontos, mas sem ganhar dinheiro sobre isso.

As empresas tentam barrar a comercialização de milhas por meio da aplicação de algumas restrições, tais como a inclusão de cláusulas que vedam a transferência de nome nos contratos dos programas de fidelidade e a limitação do número de beneficiários (de CPFs) para emissão de passagens em cada conta.

No TudoAzul é permitido emitir passagens para até cinco CPFs diferentes do titular. Ao atingir o limite, é necessário cadastrar um novo CPF e aguardar 60 dias para realizar a emissão para essa nova pessoa. Na Smiles, cada cliente pode fazer a emissão de no máximo 25 CPFs diferentes do titular por ano. E no LatamPass é permitido a emissão de no máximo 24 CPFs diferentes do titular por ano.

Já entre os usuários, o entendimento é de que as milhas são de sua propriedade podendo comercializá-las da maneira que quiserem.

“A propriedade das milhas é do consumidor, mas há uma divergência sobre se as milhas são créditos ou de fato propriedade [como se fosse uma moeda]. A posição majoritária é no sentido de tratar como crédito e, portanto, sujeita à limitação de prazos e condições específicas dos termos de uso”, diz Brunno Giancoli, advogado especialista em direito do consumidor.

“Os consumidores receberam as milhas em contrapartida de algo, por isso, são os donos delas. Mas elas não são vistas como moeda circulante, são um recurso do mercado de turismo”, diz Leonardo Watermann, advogado especializado em crimes contra o consumidor.

Alexandre Zylberstajn, especialista em milhas, diz que “o papel aceita tudo” e quem assina o contrato para participar do programa precisa ler e entender os termos propostos.

Como as empresas identificam a venda?

Nenhuma das empresas contatadas explicou como funciona o mecanismo que identifica que determinado usuário realmente vendeu milhas. Brunno Giancoli, advogado especialista em direito do consumidor tem uma pista.

“Por meio do sistema, as empresas detectam a transferência sucessiva dos pontos para terceiros, especialmente pessoas que não guardam com o titular qualquer relação de parentesco ou proximidade. Via de regra a ‘chave’ é o sobrenome”, explica.

Se o titular das milhas emite passagens para pessoas de sobrenome diferente, a empresa já fica de olho na operação.

O consumidor pode acionar a Justiça?

Sim. O consumidor pode acionar a justiça caso se sinta lesado de alguma maneira. “Especialmente se o consumidor pretende vender ou ceder as milhas de acordo com o regulamento, mas a empresa proíbe”, diz o advogado Brunno Giancoli.

No caso em que o consumidor teve conta bloqueada, mas não cometeu nenhuma infração, a recomendação é comprovar que não teve nenhum movimento de emissão de milhas em nome de pessoas que não sejam da sua família, por exemplo.

“A pessoa que for entrar com o processo judicial precisa embasar o que está alegando para tentar garantir que o processo corra ao seu favor”, afirma Hanna, do Goulart Penteado.

A dica do especialista é que os clientes procurem, primeiro, meios administrativos e extrajudiciais, como por exemplo a plataforma Consumidor.gov, que realiza a interlocução direta entre consumidores e empresas para solução alternativa de conflitos de consumo pela internet. Outra saída é acionar o Procon.

O entendimento da Justiça sobre o comércio de pontos ainda é controverso. Por não ser regulamentado, a questão pode ter várias interpretações.

“A utilização dessas milhas com destinação diversa da prevista no contrato de adesão do programa de fidelidade pode ser questionada sim. Na prática, o consumidor que faz a venda para terceiros está quebrando os termos do contrato”, diz Watermann.

“Há decisões que afirmam que, ao aceitar o regulamento dos programas de fidelidade, os clientes não devem vender seus pontos a terceiros, já que isso vai contra o contrato firmado entre empresa e consumidor. Mas também há decisões judiciais que consideram que os pontos são parte do patrimônio do consumidor e podem ser vendidos, sendo que qualquer cláusula que impeça a comercialização ou limite a transferência de milhas para terceiros seria nula, pelo caráter abusivo”, explica Hanna.

Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.