Sem educação financeira, Desenrola pode virar armadilha ao consumidor?

Ciclo vicioso de novas dívidas no curto prazo, após renegociação, preocupa especialistas

Giovanna Sutto

Ilustração sobre dívidas (Shutterstock)

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O Desenrola, programa do governo federal para renegociar dívidas, pode ser uma armadilha se os milhões de brasileiros que estão voltando a ter “crédito na praça” não aprenderem a administrar as próprias finanças, dizem os especialistas consultados pelo InfoMoney.

No primeiro mês em vigor, o Desenrola registrou R$ 9,5 bilhões em volume financeiro negociados, exclusivamente pela Faixa 2, no qual os débitos bancários são negociados diretamente com a instituição financeira em condições especiais, informou a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) nesta semana.

A Febraban explica que essa faixa inclui as dívidas bancárias dos clientes que tenham renda mensal superior a 2 salários mínimos e menor que R$ 20 mil e que não estejam incluídos no Cadastro Único do Governo Federal.

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Entre 17 de julho e 18 de agosto, o número de contratos de dívidas negociados chega a 1,5 milhão, beneficiando um universo de 1,1 milhão de clientes bancários. A adesão ao programa irá até o dia 31 de dezembro.

Em setembro, a segunda fase da iniciativa vai beneficiar consumidores cuja renda não passa de dois salários mínimos ou estão inscritos no Cadastro Único. Esse grupo, considerado de baixa renda, poderá renegociar dívidas de até R$ 5 mil de várias categorias.

“O que se espera, num primeiro momento, é a redução de pessoas inadimplentes. Porém, muitas delas saem da inadimplência com aquisição de um novo crédito via renegociação. Isso significa que ela vai ficar com uma dívida adimplente”, explica Cintia Senna, educadora financeira e doutoranda em Educação Financeira pela Florida Christian University (FCU).

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Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostram que a proporção de famílias endividadas no Brasil teve uma leve retração de 78,5% em junho para 78,1% em julho. Foi o primeiro recuo desde novembro de 2022 e a justificativa para o resultado, segundo a CNC, foi a criação do Desenrola.

“Sem educação financeira e organização do orçamento, é bem provável que essa pessoa, que saiu de uma situação devedora, volte ao mesmo status por não conseguir arcar com a nova parcela da dívida renegociada ou por fazer mais dívidas paralelas”, pontua Luan Correia, analista sênior de educação financeira da Unicred.

A economista Ione Amorim pontua que o programa pode ser prejudicial para o consumidor ao tratar do efeito do problema e não da causa.

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“As pessoas vão sozinhas renegociar diretamente com os bancos. Podem ter múltiplos credores, vão receber várias propostas. E vão ter que decidir qual a melhor saída. Em que momento essa pessoa foi preparada para isso? Ela teve educação financeira para tratar as dívidas? Esse tipo de enfrentamento ao endividamento não funciona”, questiona a especialista, que também é coordenadora do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Como consequência dessa falta de manejo com as finanças, muitos consumidores, em iniciativas como o Desenrola, não avaliam as propostas recebidas e pela urgência em resolver o problema cedem e aceitam renegociações nem sempre vantajosas.

“Lidei com um caso recentemente, já no contexto do Desenrola: uma pessoa tinha uma dívida de R$ 3 mil. A proposta oferecida foi 96 parcelas de R$ 187. Quase R$ 18 mil. Oito anos pagando uma dívida seis vezes maior do que o que ela tinha por que a parcela ‘cabe no bolso’. Essa pessoa poderia ter esperado para entrar na próxima etapa do programa ou poderia ter calculado a proposta, mas como não tinha preparo se endividou ainda mais”, conta Ione Amorim.

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É por isso que a economista defende ser necessária educação financeira também para quem concede o crédito. “Parte do mercado concede crédito e renegocia de forma abusiva e predatória. A fidelização com o cliente ainda se dá pela perpetuação do uso do crédito: a pessoa toma dinheiro sempre no prazo máximo, se aperta financeiramente e renegocia. E, em alguns casos, nunca termina de pagar”, critica.

Para ela, a fidelidade deveria ser construída no curto prazo. “Usa o crédito, quita a dívida e fica livre para pegar mais crédito. O bom pagador é, na verdade, quem começa e termina de pagar”, pontua Amorim.

Programa de educação financeira

O Desenrola, segundo o Ministério da Fazenda, contará com um curso de educação financeira, que será ofertado em setembro ao público de baixa renda.

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“É muito importante a realização do curso para que o beneficiado pelo programa saiba como evitar novas situações de endividamento e de restrição de crédito”, diz a pasta por meio de nota, que não explicou o conteúdo que será ofertado e nem como o consumidor poderá acessar as aulas.

O ministério afirma ainda que o Desenrola “oferece a maneira de escolher o refinanciamento das dívidas, aumenta a transparência da renegociação e amplia o conhecimento que o usuário tem de sua vida financeira. Essa experiência é também um modo de educação, à medida em que a pessoa, ao se apropriar do processo, reorganiza sua situação financeira”.

Apesar do foco na fatia de renda mais baixa, se engana quem acredita que a falta de educação financeira abrange apenas os mais pobres.

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“É só olhar o volume de renegociações no Desenrola nesta fase atual: pessoas que ganham até R$ 20 mil e mesmo assim estão endividadas por não saberem administrar o volume que recebem”, pontua Correia, da Unicred.

Vale frisar que entre os mais pobres, a desigualdade em diferentes aspectos pesa e muito no orçamento. “O desemprego, problemas de saúde e a falta de acesso de tudo também entram na conta dos impactos”, ressalta Senna.

Ter dívida é ruim?

Ter dívida, por si só, não é ruim. Estar inadimplente, sim.

“A maioria dos inadimplentes se endivida por má organização financeira, falta de conhecimento e questões emocionais. Fazer uma dívida e conseguir arcar com ela não é algo negativo. Pode, pelo contrário, representar a construção de patrimônio”, explica Isabela Brandão, planejadora financeira CFP e sócia da consultoria patrimonial Oikos.

A cultura do brasileiro com o dinheiro o faz ter uma relação negativa com a dívida: um misto de vergonha com frustração por não conseguir honrar os compromissos, além da falta de educação financeira para se reorganizar e sair dessa situação.

É diferente do que acontece em outros países, como nos EUA, onde a dívida é parte da vida do consumidor com hipotecas, financiamentos estudantis, despesas médicas, e a relação com esses custos é bem administrada.

As duas economias, claro, são bem diferentes. “A dívida nos EUA tem um juro mais baixo para o consumidor, que não corrói tanto a vida financeira dele”, afirma Brandão. A hipoteca de uma casa, por exemplo, tem juros entre 6% e 7% para 30 anos, neste momento mais conturbado com o rebaixamento de rating do EUA. Mas os patamares de juros já foram bem mais baixos.

Somado a isso, o histórico brasileiro com a inflação é traumático. “A sociedade brasileira aprendeu a gastar rápido porque no dia seguinte o valor do dinheiro mudava. O americano não passou por isso. E a origem também é diferente: eles fazem mais dívidas para comprar de casa a carro, enquanto aqui o primeiro motivo de endividamento é o cartão de crédito”, diz Cintia Senna.

O formato parcelado, uma “jabuticaba brasileira”, também é uma pedra no sapato no processo de educação financeira. “Esse pensamento imediatista se consolidou com a opção parcelada à disposição e muito impulsionada pelo mercado. Sob essa lógica, o planejamento quase inexiste: se a pessoa quer comprar e o valor cabe na parcela mensal, ela vai fazer isso”, afirma Correia, da Unicred.

O problema, ressalta o especialista, está na aquisição. “As pessoas não sabem comprar. Não avaliam primeiro o orçamento para depois fazer a compra. A falta desse exercício leva à decisões prejudiciais. O segredo está no antes: o planejamento”.

Alertas ao endividado

Márcia Ribeiro, 55, é auxiliar de serviços gerais e tem dívidas com cartão de crédito e com crediários em lojas há vários anos. Com o nome negativado em cadastros de inadimplência, não consegue comprar vários itens necessários para a sua casa e começou a fazer outras dívidas com familiares.

“Quero comprar itens para a minha casa, que fazem falta e eu não posso comprar por causa dessas dívidas: um armário, um fogão. Por isso, eu fiz uma dívida para ter televisão e um guarda-roupas, mas foi no cartão do meu irmão. Se eu tivesse pago minhas contas, eu teria comprado no meu”, conta.

A auxiliar de serviços gerais diz que o Desenrola vai ajudá-la. “Vou liquidar minhas dívidas e vou poder comprar as coisas para a minha casa”, conta.

A ideia da quitação da dívida faz parte da iniciativa governamental, mas os especialistas alertam que o Desenrola não serve só para isso.

“As instituições vão ofertar novas taxas para a dívida, mas a pessoa ainda sai dessa mesa com um compromisso financeiro a ser honrado. Por mais atrativo que possa parecer a oferta, se a pessoa não se organizar, vai enfrentar problemas no curto prazo novamente”, afirma Correia, da Unicred.

Para ajudar o consumidor a evitar a armadilha de “sair de uma dívida hoje e voltar à inadimplência amanhã”, os especialistas têm dicas para lidar com o Desenrola e estruturar um planejamento financeiro. Veja:

De um lado:

Do outro, a organização financeira:

O InfoMoney tem planilha de gastos que pode ajudar você a dar os primeiros passos para organizar sua vida financeira. 

Vale lembrar que a Lei do Superendividamento (nº 14.181/2021) acrescentou novas regras ao Código de Defesa do Consumidor. Dentre elas, há a previsão de acolhimento sobre o tema ao cidadão.

“O consumidor pode procurar o Procon ou a Defensoria Pública para tirar dúvidas sobre a situação financeira e ser amparado em relação às dívidas que possui”, lembra Amorim.

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) tem material sobre o tema.

*Com Agência Brasil e Estadão Conteúdo

Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.