Por que a Bolsa está descolando do PIB, ignorando a pandemia e os riscos político e fiscal?

Enquanto o PIB é revisado para baixo, a Bolsa vai superando as expectativas e recupera os 120 mil pontos; o que explica a alta e quais as perspectivas?

Priscila Yazbek

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SÃO PAULO – O Ibovespa superou os 121 mil pontos na sexta-feira (16), fechando na sua terceira alta semanal seguida. Nas últimas três semanas em que a Bolsa subiu, o Brasil registrou um recorde de 4.249 mortes em 24 horas na pandemia, a instalação da CPI da Covid foi determinada pelo STF, impasses sobre o Orçamento se intensificaram, os juros de títulos prefixados do Tesouro bateram 9% e estimativas para o PIB foram revisadas.

Bancos de investimento como Credit Suisse, Barclays e Morgan Stanley reduziram suas projeções para a economia brasileira neste ano, de um crescimento acima de 4% para algo mais próximo a 3%. Segundo o último Boletim Focus do Banco Central, que reúne as projeções das principais instituições financeiras do país, o mercado agora espera avanço de 3,04% para o PIB deste ano, ante 3,41% no início do ano.

Esse descolamento entre a Bolsa e o PIB pode causar estranhamento, mas tem explicação e ela está principalmente no cenário externo. A retomada da China e dos Estados Unidos, os dois principais motores da economia global, foram a principal justificativa usada pelos economistas consultados pelo InfoMoney para explicar o otimismo do mercado, mesmo diante de tanta instabilidade no cenário político e fiscal doméstico.

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O PIB da China cresceu 18,3% no primeiro trimestre em relação ao mesmo período de 2020. E os fortes dados divulgados nos Estados Unidos, como o avanço de 10% no varejo em março, têm levado economistas a preverem um crescimento em “nível chinês” para economia americana, com projeções variando entre 6% até 9% entre os mais otimistas.

O Fundo Monetário Internacional, inclusive, revisou para cima a estimativa sobre o PIB global, de 5,5% para 6%, ao mencionar que espera agora um crescimento de 6,4% para o PIB americano.

Para Roberto Reis, gestor da Meraki Capital, as expectativas de um “crescimento absurdo” para a economia americana têm sustentado o otimismo do mercado financeiro. “Estamos em um típico cenário de bull market (de alta). Quando temos um dia de notícias ruins é uma esquizofrenia, mas nos dias em que não acontece nada a Bolsa sobe e o Ibovespa já voltou aos 120 mil pontos”, diz.

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A recuperação vigorosa das duas maiores economias do mundo se traduz em aumento da demanda global por commodites, ponto forte da Bolsa brasileira: um terço das ações do Ibovespa são ligadas às commodities. Suzano (SUZB3), com alta de 22% em 2021, Gerdau (GGBR4) com avanço de 34,29%,  e Vale (VALE3), com ganho de 35,65% no ano, são alguns exemplos de ações que têm surfado nessa onda.

As receitas dessas empresas têm sido revisadas para cima não só pelo aumento das cotações de commodities no mercado global – como minério de ferro, petróleo, celulose -, mas pelo efeito do câmbio.

“O minério de ferro estava em cerca de US$ 120 por tonelada no fim de novembro, agora está em US$ 155, aumento 30%. E o dólar subiu outros 10% no período, são cerca de 40% a mais que a empresa ganha em caixa. Como essas empresas têm receita em dólar, elas têm tido um ganho gigantesco em revisão de estimativa de caixa para cima, a despeito do PIB revisado para baixo”, diz Gilberto Nagai, head de renda variável da BNP Paribas Asset Management.

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Além do impulso das commodities, ações brasileiras também sobem no embalo do movimento de rotação global, com investidores saindo de empresas de crescimento ou growth, como as de tecnologia, para empresas de valor ou value, como bancos e commodities (entenda o conceito).

“Na última década, as empresas de growth estavam ‘outperformando’ [superando] as de value. Em um mundo de crescimento e juros baixos, essas empresas que crescem rapidamente ficaram muito atrativas porque cresciam muito em um mundo de PIB de lado”, diz Fernando Ferreira, estrategista-chefe da XP.

Agora, com juros e economias avançando em um ritmo maior, essas empresas de crescimento perdem vantagem e as ações de valor, que são cíclicas e acompanham o crescimento da economia, se sobressaem. “O Brasil é um clássico exemplo de velha economia, com boa parte da Bolsa ligada a commodities, bancos, setores classificados como valor e não crescimento. Por isso, nosso mercado tem ficado muito bem posicionado nesse movimento de rotação”, completa Ferreira.

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Lucros altos e Bolsa barata

Diante do movimento de rotação e do boom das commodities, os ganhos registrados pelas empresas listadas aumentou. O estrategista-chefe da XP destaca dois dados: em 2021, o lucro das empresas que fazem parte do Ibovespa está 50% acima do nível de 2019; e 80% dos lucros reportados pelas companhias na última temporada de balanços, referentes ao quarto trimestre de 2020, vieram em linha ou acima das expectativas dos analistas.

Com os lucros subindo em uma velocidade superior ao avanço das cotações, os papéis ficam mais baratos.

Ferreira faz o seguinte cálculo: o lucro por ação projetado pelo consenso Bloomberg para 2021 é de cerca de 12 mil pontos. O Ibovespa está em 121 mil pontos, portanto o índice Preço/Lucro (P/L) para o Ibovespa está em cerca de 10 vezes.

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“Ou seja, a Bolsa está negociando a dez vezes o lucro, abaixo do P/L histórico de 13,5 vezes e também abaixo do P/L do S&P 500 [principal índice do mercado de ações americano], de 23 vezes. Significa que estamos com 53% de desconto em relação ao S&P, sendo que historicamente esse desconto foi de 25%. Mesmo no pior momento da gestão Dilma o desconto chegou a 42%. No fim do dia, essa mega revisão de lucro fez com que a Bolsa ficasse muito barata”, diz o estrategista-chefe da XP.

Thomas Giuberti, sócio e economista da Golden Investimentos, destaca que empresas do setor elétrico, bancos, varejo, são as mais descontadas. “A Petrobras está negociando a R$ 23 [no começo do ano, antes da troca do CEO, estava em R$ 31], qualquer correção na estatal e de bancos, que têm forte peso no Ibovespa, já pode mexer com a Bolsa”, diz. Os ativos PETR3 e PETR4 hoje têm peso de 8,14% no Ibovespa, já os bancos têm peso de 14,62%, representam 22,76% do índice.

Além dos fortes lucros e dos descontos nos preços, outro fator que distingue o cenário da Bolsa em 2021 e 2020 é a perspectiva. Ainda que a segunda onda de pandemia no Brasil tenha sido pior que a primeira, desta vez há uma clara luz no fim do túnel com a vacinação.

“Lógico que estamos em um momento terrível de mortes e internações por Covid. Mas ao avaliar empresas observamos a geração de caixa em anos. Portanto, se um shopping fica fechado por alguns meses, por exemplo, para a avaliação do preço não é muito significativo porque só desloca a geração de caixa em dois, três meses. Como alguns shoppings caíram 30%, 40% o investidor vê que existe valor nesses ativos, tanto que eles começaram a andar também”, afirma Nagai, da BNP.

Ele acrescenta que as empresas listadas em Bolsa, de forma geral, estão capitalizadas e inclusive aproveitando o momento para comprar negócios menores a um bom preço. “Essas empresas não só sofrem menos que o PIB, mas veem oportunidade para se consolidar. Como sempre nessas crises tem diferença grande entre empresas listadas em Bolsa e a economia.”

Gestoras reduzem exposição ao Brasil

Ainda que o lucro das empresas tenha crescido e o cenário global esteja segurado as pontas, os riscos político e fiscal e o recrudescimento da pandemia não passaram despercebidos.

Após o ingresso de R$ 24,5 bilhões em janeiro, os saques de estrangeiros na Bolsa brasileira ultrapassaram os aportes em R$ 3,8 bilhões em fevereiro, com o saldo negativo chegando a R$ 4,6 bilhões em março.

Casas globais do porte de JP Morgan, Credit Suisse e BlackRock, recentemente recomendaram cautela com o Brasil, dando maior foco às oportunidades em pares comparáveis que lidaram, em sua avaliação, melhor com o vírus, como México e Chile.

Mas o movimento de saída de capital pode não ter sido tão intenso e já apresenta uma certa reversão, segundo Ferreira, da XP. Ele diz que de novembro de 2020 – após a eleição de Joe Biden e o início das vacinações -, até fevereiro deste ano, a Bolsa brasileira acumulou um saldo positivo de investimento estrangeiro de cerca de R$ 80 bilhões. E a partir de meados de fevereiro, após a demissão de Roberto Castello Branco da Petrobras, até a sexta-feira (16), saíram R$ 14 bilhões.

Além de o volume de saída não ter sido suficiente para pesar na Bolsa, diz Ferreira, nos últimos dias o dinheiro estrangeiro voltou a entrar no mercado: a Bolsa registrou um saldo positivo de R$ 2,4 bilhões só na quarta-feira (14), somando um fluxo positivo estrangeiro de cerca de R$ 4 bilhões na semana passada.

“Existe uma dicotomia: câmbio e juros contam que o Brasil está num cenário complicado, com pandemia, Orçamento e eleição de 2022, mas a Bolsa está contando outra história. Tem muito gestor de fundo multimercado dizendo que a Bolsa está errada, mas eles estão perdendo a história micro [de lucros altos e preços descontados], que é muito boa”, afirma o estrategista-chefe da XP.

Giuberti, da Golden, também acredita que houve um exagero por parte das grandes gestoras no movimento de saída do Brasil. “O mercado tomou Petrobras e dólar como ‘proxy’ [representação] do Brasil. Mas as empresas vão crescer e estão faturando”, diz.

Riscos e perspectivas

Os economistas destacam que o mercado hoje corre três riscos principais ligados à: política, pandemia e situação fiscal.

A pandemia é o menor deles, segundo Roberto Reis, da Meraki, já que apesar da situação crítica, ao observar a trajetória de outros países, é de se esperar que o avanço da vacinação solucione o problema – ainda que exista na mesa o risco de uma terceira onda de lockdowns.

Em relação ao risco político, apesar de manter no radar os desdobramentos da CPI da Covid, os analistas não veem espaço para um evento mais extremo agora, como seria o caso de um impeachment. E, por enquanto, o mercado ignora riscos associados à eleição de 2022, já que a discussão ainda está prematura. “É um capitulo para o ano que vem, o mercado vai começar a se preocupar com eleições mesmo a partir de março, abril de 2022”, diz Reis.

Já o terceiro risco, o fiscal, é o mais preocupante, mas o mercado está “leniente” quanto a isso, segundo o sócio da Meraki. “Até quando o mercado vai fazer vista grossa com isso eu não sei, mas a questão fiscal e o impasse no Orçamento estão no preço. O mercado também já incorpora que não vai ter reforma nenhuma, então se tiver alguma surpresa vai ser para upside [para cima]”, diz.

Para Reis, portanto, os três principais riscos do Brasil hoje estão controlados. “Os três grandes riscos de Brasil estão vivos, são grandes, mas estão mitigados e, bem ou mal, o Brasil vai sair desse lockdown e a economia vai ganhar tração. Nos cenários otimistas, a previsão é de uma vacinação abrangente em três meses, nos pessimistas em seis, sete meses. Eu acho que vai ser algo no meio do caminho, em quatro ou cinco meses. É um cenário atraente para o mercado, que nos força a comprar”, diz.

Construtivos, mas não eufóricos

Mesmo esperando alguma evolução no cenário, os analistas ressaltam que também não há motivos para euforia.

Para Gilberto Nagai, da BNP Asset, enquanto a situação fiscal não der sinais claros de melhora, a Bolsa não deve apresentar um avanço mais forte. A previsão da gestora é de um Ibovespa entre 125 mil a 130 mil pontos em 2021. “Nós esperamos uma solução fiscal, mas bem no meio do caminho. Não vai desanuviar de uma vez e se uma solução vier, não vai ser a solução ótima. Mas mantivemos a previsão para o Ibovespa porque com a vacinação caminhando e sem notícias ruins de fora, no final se chega a alguma solução”, diz.

Roberto Reis afirma que a Meraki vê um cenário construtivo, porém não eufórico. A casa iniciou o ano com uma alocação de 100% em Bolsa no seu principal fundo; em fevereiro, reduziu a exposição para 60%; e em março elevou para 83%. “Claro que preferíamos um cenário melhor, não estou mexendo mais na alocação por causa disso [referindo-se ao risco fiscal e político, com a CPI da Covid]. Quando eu falo que estou construtivo com Bolsa é que eu espero ganhos modestos, acima do CDI, mas não estou nada eufórico. O empresariado está fragilizado, tem a pandemia, dúvidas na política…É o desconforto tradicional com Brasil”, diz.

A XP prevê Ibovespa em 135 mil pontos em 2021 e não alterou a projeção desde o começo do ano. O estrategista-chefe da XP afirma que os balanços das empresas no primeiro trimestre, que começam a ser divulgados nesta semana, permitirão observar se a Bolsa seguirá sustentando lucros ou se será necessário calibrar as expectativas.

“Eu achei que teríamos que revisar nesse último mês por causa da forte alta dos juros de longo prazo, mas o crescimento dos lucros mais do que compensou a alta dos juros. Agora é saber se a alta dos lucros vai continuar porque se parar e o cenário macro continuar a se deteriorar aí a Bolsa para”, diz Ferreira.

Com um início de 2021 sem auxílio emergencial, inflação pressionada e famílias endividadas, Ferreira espera que setores domésticos, como varejo, apresentem resultados fracos no primeiro trimestre. Para ele, os balanços já devem trazer algum impacto do lockdown, mas as restrições devem afetar mais os resultados do segundo trimestre. E do lado positivo, os grandes destaques da temporada devem continuar sendo as ações ligadas a commodities e exportação.

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Priscila Yazbek

Editora de Finanças do InfoMoney.