Por que 2023 pode ser ano perdido para regulação de criptoativos no Brasil

Marco legal foi aprovado em dezembro, mas órgão regulador ainda não foi definido pelo Executivo, que tem outras prioridades no radar

Paulo Barros

Edifício-sede do BC, em Brasília. Autonomia financeira mudaria radicalmente a estrutura da autarquia (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

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O setor brasileiro de criptoativos encerrou 2022 comemorando a sanção de um aguardado marco regulatório gestado desde 2015, mas já se prepara para um novo “chá de cadeira” em 2023. Apesar de a lei já ter previsão para entrar em vigor – em junho, 180 dias após a publicação – as regras específicas que irão nortear o trabalho das empresas do ramo ainda não têm data para serem definidas.

Pelo texto sancionado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em dezembro, o Poder Executivo deve designar um órgão, novo ou existente, responsável por tocar a formulação dessas normas, papel que o mercado espera amplamente que seja dado ao Banco Central, que faria uma dobradinha com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). No entanto, a decisão acabou passando para o novo governo, trazendo um novo elemento de imprevisibilidade até então inexistente.

Nos bastidores, profissionais do setor olham com preocupação o fato de que o assunto tenha baixíssima prioridade junto ao Ministério da Fazenda, ao qual recairia a tarefa neste momento.

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Somado a isso, os acontecimentos recentes em Brasília, com os atos de vandalismo nas sedes dos três Poderes, só fizeram atrasar a agenda do governo de Luís Inácio Lula da Silva (PT) – se a regulação das criptos já estava no fim da fila de prioridades, viu a distância aumentar nos primeiros dias do ano dentro da pasta chefiada por Fernando Haddad (PT).

“É muito difícil que tenhamos avanços neste ano. Mas o tempo já está contando, a ampulheta foi virada”, aponta o advogado Isac Costa, professor do Insper e do Ibmec.

Apesar dos seis meses estipulados por lei para entrada em vigor, nada impede que o prazo seja renovado em junho, de modo a dar mais tempo para o Executivo tomar uma decisão, ou para que o supervisor designado inicie os trabalhos.

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O processo de normatização costuma envolver o chamamento de consultas públicas. Para o Marco Legal do Câmbio, por exemplo, o BC precisou de um ano para trabalhar na estruturação. Embora a regulação das criptos seja vista como tendo menor complexidade, o fato de o supervisor ainda não ter sido escolhido é visto como un indício de a regulação ainda irá demorar para ganhar corpo.

Diante do cenário, Costa, do Insper e Ibmec, tem a opinião de que é muito provável que estipulação dos requisitos para concessão de licenças para exchanges de criptomoedas, entre outras regras específicas do setor, seja empurrada para, pelo menos, 2024.

“Isso sem falar no prazo para adequação [das corretoras]”, ressalta Costa, lembrando também que o BC também precisaria de tempo extra para começar a emitir as licenças, mesmo que elas sejam exigidas apenas para empresas que movimentam volumes maiores, a exemplo de como foram reguladas as Instituições de Pagamento.

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Atualmente, empresas de pagamentos que atingem R$ 500 milhões transacionados têm, por lei, seu funcionamento condicionado à autorização do Banco Central. No entanto, o órgão pode levar mais de um ano para de fato conceder essa permissão. Diversas corretoras de criptos, buscando ter algum tipo de autorização no país, disseram à reportagem terem pedidos parados juntos ao BC – até o momento, apenas a Crypto.com já obteve a licença de IP no Brasil.

Por outro lado, há quem seja mais otimista e aponte que o BC deverá precisar de menos tempo para regular o setor por já estar muito envolvido no processo desde a formulação da proposta legislativa. “Câmbio é mais complexo”, comenta o advogado Rodrigo Caldas de Carvalho Borges, membro fundador da Oxford Blockchain Foundation, ao comparar a regulação das criptos com o processo de um ano utilizado para realizar as consultas públicas do Marco Legal do Câmbio.

“No caso de cripto, o mercado ainda tem espaço para crescer, enquanto isso [não acontece] o BC teria uma regulação mais rápida, e, ao longo do tempo, atualizaria medidas”, comenta. O especialista ressalta que, inclusive, o prazo de 180 dias pode não ser prorrogado, fazendo com que itens da lei que não dependam do regulador já entrem em vigor em junho. Por esse motivo, ele não enxerga que 2023 será de todo perdido.

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“Do ponto de vista prático, a lei já poderia produzir efeitos [dentro de seis meses], como a atualização do Código Penal, sobre a prática de ilícitos com criptos, enquanto demais questões para funcionamento dos prestadores [de serviço de ativos virtuais] ficaria em suspenso”, avalia.

Banco Central corre risco de não ser o regulador?

A demora na definição do supervisor neste início de ano levantou questões sobre a possibilidade de o novo governo optar por não escolher o Banco Central. A dúvida pairou principalmente após o deputado Expedito Netto (PSD), relator do marco regulatório na Câmara dos Deputados, afirmar recentemente que o governo Lula pode rever a lei e propor mudanças.

“Vai começar uma discussão toda de novo. Não teve nenhum avanço na transição nem dentro do Ministério de Ciência e Tecnologia, nem na Economia, em nenhuma das pastas”, disse o deputado na semana passada ao jornal O Globo. Netto, vale lembrar, não se reelegeu para um novo mandato, mas fez parte da equipe de transição da nova administração federal, na área de ciência, tecnologia e inovação.

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“Não definir [o BC] esvaziaria a lei”, opina o advogado Rodrigo Borges. “O benefício de nomear um órgão técnico deixa o processo mais dinâmico do que no legislativo, e isso se perderia. O mercado ficaria em uma zona cinzenta e a lei produziria poucos efeitos”.

Contatado, o Banco Central disse que não comenta o caso.

De qualquer modo, o mercado está atento para a possibilidade de o Executivo escolher um órgão que “cairia de paraquedas” nas discussões e que, por conta disso, precisaria de mais tempo para definir as regras específicas que os players do setor aguardam.

Um órgão de menor expressão que o BC, avaliam interlocutores, também estaria mais sujeito a pressões de lobby vindas de corretoras estrangeiras que preferem regras mais brandas do que as que supostamente estariam no radar do BC.

Uma delas seria a da segregação patrimonial, vista como “dispositivo anti-FTX” por exigir, juridicamente, que o patrimônio de exchanges não se misture com os de clientes – em caso de falência, usuários teriam preferência automática no ressarcimento frente a demais credores.

Mas a retomada desse tópico, que acabou sendo excluído do marco legal, é vista como difícil por quem acompanha o assunto – como não está mencionada na lei, a exigência de segregação poderia ser contestada juridicamente por empresas que discordem dela no futuro, mesmo que a regra seja forçada pelo Banco Central.

“Considerando que a matéria foi debatida pelo congresso e foi discutida pelos parlamentares, pode haver dificuldade para o BC incluir a segregação como norma infralegal”, destaca Borges.

Bernardo Srur, diretor da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), minimiza a questão e não acredita que os acontecimentos em Brasília influenciarão as decisões sobre o processo de regulação.

O executivo da entidade que reúne algumas das principais corretoras de criptoativos do país, como Mercado Bitcoin, Foxbit, NovaDax e Bitso não trabalha com a possibilidade de o BC não ser escolhido como regulador, com auxílio da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

“Nossa expectativa continua sendo o Banco Central com a CVM. Entendemos que ambos os órgãos terão um papel importante no nosso mercado. A matéria já está mais do que pacificada”.

Paulo Barros

Editor de Investimentos