Muito além da estatística: a inspiradora jornada de Ursula Burns, ex-CEO da Xerox

A autobiografia da executiva, primeira mulher negra a comandar uma das maiores empresas americanas, representa uma contribuição tão rara quanto sua história

Apenas duas mulheres negras ocupam o comando de uma empresa do grupo das 500 maiores nos Estados Unidos. Ambas assumiram seus postos em 2021. Roz Brewer tornou-se CEO da Walgreens Boots Alliance em março. Thasunda Brown Duckett lidera desde maio a TIAA (Teachers Insurance and Anuity Association of America), depois de deixar o comando de uma divisão do JP Morgan.

A representatividade ínfima torna-se ainda mais notável ao considerar que a primeira mulher negra nessa posição foi Ursula Burns, quando passou a comandar a Xerox em 2009 — cargo que ocupou até 2016. Estudos mostram que estatísticas não costumam, isoladamente, inspirar mudanças de comportamento. Histórias pessoais, sim. Conhecê-las é a melhor maneira de criar empatia, algo fundamental para entender uma realidade ou uma perspectiva diferente da que se está acostumado.

A autobiografia de Ursula Burns, Where You Are Is Not Who You Are (em inglês, algo como “Onde você está não define quem você é”), lançada em junho e ainda sem versão para o português, representa nesse sentido uma contribuição tão rara quanto a própria história de sua autora.

Burns dá o maior crédito de sua trajetória à sua mãe, imigrante panamenha que criou sozinha três crianças num apartamento de um dos prédios populares construídos pelo governo no Lower East Side, em Manhattan.

O título do livro, aliás, vem do que a ex-executiva aponta como a principal lição deixada pela mãe, que fez horas extras para dar uma boa educação aos filhos. O objetivo era justamente abrir portas além das disponíveis para a família naquele momento.

“O talento é distribuído de maneira justa. As oportunidades, não”

Quando criança, Burns estudou em escolas católicas. Chegou a pensar em ser enfermeira ou freira. Mas decidiu fazer engenharia. Na faculdade, ela teve um dos primeiros choques de realidade — era uma das poucas mulheres
negras em meio à maioria de homens brancos. Ela frequentou a Brooklyn Polytech, conhecida hoje como Instituto Politécnico da Universidade de Nova York. Em universidades mais elitizadas, não teria passado em requisitos básicos, como a exigência de esportes como esqui, tênis e natação.

“Esqui? O que era isso?”, ela escreve. “Tênis? Sério? Natação? De jeito nenhum, estou convencida de que faculdades que pedem um teste de natação para graduação criam regras para impedir jovens pobres de considerar a hipótese de ingressar ali.” Até hoje ela não aprendeu a nadar — e, mesmo depois de ter juntado uma fortuna estimada atualmente em mais de 1 bilhão de dólares, também não pratica esqui.

Da época da faculdade, ela tira a primeira lição do que pode funcionar para tornar outros casos como o dela possíveis: ações afirmativas, como cotas, funcionam. Ela recebeu auxílio em programas nos anos 1960 e 1970, e não poderia ter ido à faculdade sem isso. “O talento é distribuído de maneira justa. As oportunidades, não”, afirma.

Ela ingressou na Xerox nos anos 1980, como estagiária. Apesar de não poupar detalhes dos entraves que encontrou como mulher negra, o livro não se resume a um manifesto pela diversidade. Uma das lições de sua trajetória que ela pontua no livro é: não seja tão bonzinho. A conclusão surgiu no contexto da ampla mudança cultural da Xerox — a que ela se refere como “terminal niceness” (algo como “gentileza terminal”).

Tive a chance de entrevistá-la a esse respeito em 2011, após um encontro de analistas no estádio do New York Mets, em Nova York. “Gostaria que tivéssemos mais desacordo, discussão e confronto. Sem isso, as pessoas acabam por repetir velhas crenças, mesmo que não acreditem mais nelas”, disse num tom que, na época, chamava a atenção, mas que anos depois se tornou trivial no discurso de qualquer executivo num contexto de instabilidade perene.

Um de seus contemporâneos foi o holandês Paul Polman, o lendário ex-presidente da anglo-holandesa Unilever, que falava em aumentar o “nível metabólico” da companhia. Burns marcou uma geração de executivos que, à frente de companhias acostumadas a ocupar a liderança em seus setores, tiveram de instilar uma cultura interna adaptada à mudança constante.

A franqueza, por vezes desconcertante, passou a ser sua marca. Nos anos 1990, começou a participar como ouvinte de reuniões de diretoria. Na ocasião, o presidente Paul Allaire repetia todos os meses que a companhia deveria parar de contratar e, em seguida, milhares de novos funcionários eram contratados. Certa vez, Burns levantou a mão e disparou: “Senhor Allaire, estou confusa. Se o senhor diz que não se pode contratar e, no mês seguinte, 1.000 funcionários são recrutados, quem pode dizer para não contratar mais e garantir que isso aconteça?”

A franqueza, por vezes desconcertante, passou a ser sua marca

A personalidade assertiva chamou a atenção de Anne Mulcahy, que se tornou presidente da companhia em 2001 e tirou a Xerox da maior crise de sua história. “Ela não tinha papas na língua”, disse Anne num artigo publicado na Harvard Business Review. “Mas gostei de sua autenticidade, ainda que faltasse um pouco de tato.”

Burns não faz essa correlação no livro — mas não parece coincidência que a jovem que resistiu como a diferente na sala desde a época da faculdade também tenha desenvolvido a capacidade de bancar a diferença de opinião com autenticidade acima da média de seus pares na época. Estudos apontam que uma das vantagens da diversidade para as corporações se mostra justamente ao trazer pessoas com visões e experiências diferentes para o centro das discussões. É algo que pode trazer desconforto. Mas também ajuda a tomar decisões melhores.

Numa época em que ainda se falava muito do CEO super-herói, Burns conta ter aprendido duas lições de liderança. A primeira é buscar ajuda e reconhecer quando precisa do apoio de outras pessoas. A outra: não é preciso ser extrovertido para ser um líder bem-sucedido. Ela diz: “Boa parte da minha vida passei entre as minhas duas orelhas”.

Suas conquistas transcenderam as paredes da Xerox. Ela chegou a participar, a convite do então presidente americano, Barack Obama, de comissões para desenvolver a educação nas áreas de ciências exatas e também na agenda de competitividade global das companhias americanas.

Barack Obama entre Jim McNerney (CEO da Boeing) e Ursula Burns (CEO da Xerox)
Obama e Burns:atuação tambémem agendaspúblicas (Getty Images)

A lição mais controversa apontada no livro é: case-se com um homem mais velho. Primeiro, claro, porque não é algo que se possa exatamente escolher num menu. Ou no mínimo é uma decisão com variáveis mais complexas do que apenas essa. Mas ela conta no livro — e já tinha mencionado diversas vezes antes — que isso funcionou para ela quando os filhos chegaram. Burns se casou com um cientista da Xerox 20 anos mais velho. Ele se aposentou e cuidou das crianças, permitindo que ela pudesse se concentrar no trabalho.

A lição mais controversa apontada no livro é: case-se com um homem mais velho

Aos 63 anos, Burns hoje se dedica ao conselho de administração de empresas como Nestlé, Uber e ExxonMobil. Ali, claro, ela também é minoria. Mas a realidade está mudando rapidamente. De acordo com um estudo realizado pela empresa de recrutamento de altos executivos Spencer Stuart, entre as empresas do índice S&P500, minorias étnicas e raciais representaram 47% de todos os novos conselheiros contratados entre maio de 2020 e maio de 2021 — mais do que o dobro do percentual de 22% registrado nos 12 meses anteriores.

A maior parte veio da indicação de negros, segundo o relatório. Atualmente, 11% dos assentos dessas empresas são ocupados por pessoas negras. Em agosto, também sob impacto da morte de George Floyd, pelas mãos da polícia americana, investidores e ativistas começaram a rastrear a equidade racial — assim como já se fazia com gênero há mais tempo.

A Securities and Exchange Commission aprovou em agosto novas regras da bolsa de valores Nasdaq que exigirão que as empresas listadas por lá atendam a certas metas de raça e gênero. As regras garantirão que os conselhos das empresas atendam aos requisitos de diversidade racial e de gênero ou obriguem as empresas a explicar por escrito por que não o fizeram. O objetivo da Nasdaq é que a maioria das empresas tenha pelo menos uma diretora mulher e outro membro do conselho que se identifique como sendo de uma minoria racial ou da comunidade LGBTQI+.

No Brasil, uma coalizão empresarial se formou com metas de promoção de negros para confrontar uma realidade de exclusão ainda mais marcante. “A intensidade das discussões mudou muito”, Burns afirmou recentemente numa entrevista à CNBC. “Estamos fazendo disso um movimento.”

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