Finanças

O futuro das moedas

O setor privado vai assumir o papel do governo na emissão de moedas? Há quem acredite que sim

Se a última década nos ensinou algo, é que precisamos de uma estratégia afirmativa para moldar o papel da tecnologia em sociedades abertas. Nesse contexto, a web3 (internet descentralizada) não é apenas uma nova onda de inovação — é também uma oportunidade de recomeçar. Legisladores e reguladores podem tirar proveito das ferramentas fornecidas pela web3 para construir uma internet melhor para gerar novas oportunidades, proteger dados e resolver desafios críticos para a sociedade.

Alguns enxergarão a CBDC (Central Bank Digital Currency, ou Moeda Digital do Banco Central) como uma nova ferramenta de tecnologia para os governos invadirem completamente nossa vida, e outros vão considerá-la um aprimoramento total. No entanto, há dois fatores a levar em conta: 1) o surgimento de novas soluções de pagamento está vindo do setor privado, não de governos, e de fora dos grandes bancos; 2) o uso de dinheiro físico está diminuindo de modo significativo, e a importância dos sistemas de pagamento digital como infraestrutura essencial está aumentando.

A maioria das propostas de CBDC não utiliza soluções de blockchain no sentido mais estrito. Elas são criadas monopolisticamente, e pode-se argumentar que já existem algumas formas de CBDC, mas que elas carecem de certas interfaces de programação significativas. Não há uma CBDC única porque existem vários padrões em projeto. Podemos ter tokens centralizados e descentralizados, varejo, atacado (com poucas instituições tendo acesso a eles) ou baseados em contas.

As CBDCs têm sido pesquisadas desde 1990, e o Bitcoin simplesmente acelerou tudo. Além disso, quando o Facebook anunciou que fará sua moeda digital, foi um alerta para governos e grandes bancos. A proposta da CBDC para mitigar os problemas de incentivo no setor bancário tem potencial para combater a lavagem de dinheiro e oferece uma transmissão aprimorada da política monetária. Por outro lado, ela pode ter efeitos desconhecidos sobre a estabilidade financeira e introduzir questões de privacidade e impacto na liberdade, além de trazer graves riscos de centralização e desintermediação estrutural indesejada de bancos.

Corretora de criptoativos em Hong Kong: mercado em rápida expansão (Paul Yeung/Bloomberg via Getty Images)

AS STABLECOINS

As stablecoins, por outro lado, são completamente diferentes. Elas são um criptoativo de emissão privada vinculado a outro ativo (geralmente uma moeda fiduciária) com o objetivo de di­minuir a volatilidade dos preços e criar um meio de troca baseado em blockchain. Como vimos, no mercado de criptografia pode haver muita volatilidade, e as stablecoins são projetadas para estabilizar parte disso. Há três categorias principais de stablecoins. A primeira é a fora da cadeia e colateralizada (com garantia), onde se promete a entrega de um ativo físico (por exemplo, USDT, USDC, TUSD). Os riscos em torno dela são re­gulatórios e de contrapartida.

O segundo tipo são as stable­coins com garantia na cadeia. A ideia é que se bloqueiem ativos criptográficos no blockchain e se emitam stablecoins recém­-criadas. É preciso manter a po­sição colateralizada nesse caso por causa das flutuações (por exemplo, DAI, sUSD). Os riscos estão ligados a liquidação, fa­lhas em contratos inteligentes e violações de oráculos — ativos digitais que vinculam dados ex­ternos confiáveis e fora da ca­deia a aplicativos descentraliza­dos, como preços de ações.

O terceiro tipo são as stablecoins algorítmicas. Elas afirmam que conseguem manter a inde­xação a outro ativo sem precisar de uma garantia colateral, mas a tecnologia ainda se encontra em fase de pesquisa e há muitas dú­vidas em relação a ela.

A questão mais profunda por trás das stablecoins, em compa­ração com as CBDCs, é um equi­líbrio entre centralização e des­centralização. Hoje é óbvio que podemos ligar a TV e assistir à Netflix ou a algo parecido sem necessidade de um satélite cen­tralizado, e tudo isso é feito pela web. Há 20 anos, a maioria das pessoas riria dessa ideia e pro­vavelmente diria que ela não seria possível. Hoje e 12 anos atrás, quando comecei no setor de pagamentos e passei para o das criptos, em 2010, aleguei que a mesma coisa aconteceria com as transferências de dinhei­ro e de qualquer valor. Vimos e continuaremos vendo mais di­nheiro e formatos programáveis por meio dos quais as pessoas trocarão valores.

À medida que isso se desen­volve, uma das perguntas funda­mentais é: o setor privado pode interferir em uma área que há décadas tem sido definida e de­cidida pelos governos, como a política econômica em torno de “dinheiro”, “transferência de va­lor” e coisas assim? Como ob­servamos hoje, o setor privado está forçando exatamente isso, então há quem diga que sim. O sistema financeiro atual deixou muitas pessoas desbancariza­das, e as criptomoedas e finan­ças descentralizadas (DeFi, do inglês “decentralized finance”) podem fornecer um rápido cres­cimento e acesso financeiro àqueles que não têm conta em banco. Por exemplo, uma stablecoin baseada num contrato inte­ligente em que as pessoas con­fiam, essencialmente uma API (Application Programming In­terface, ou Interface de Progra­mação de Aplicativos) aberta para dólares na internet.

Ver muitas pessoas inovando no USDC é algo poderoso, mas ainda estamos nos estágios ini­ciais de programabilidade. Exis­tem riscos? Sem dúvida. Há preocupações quanto à segu­rança e às fraudes, mas, ao mes­mo tempo, o ritmo rápido de inovação é inédito. A capitalização total de stablecoins au­mentou de cerca de 20 bilhões de dólares para mais de 125 bi­lhões ao longo do ano passado, e nos próximos dois ou três anos veremos um hipercresci­mento ainda maior desse tipo de criptoativo. Acredito que os formuladores de políticas deve­riam adotar stablecoins regula­mentadas de uma forma res­ponsável. O próspero ecossistema em marcha atualmente nesse espaço só viria a ajudar na inovação financeira.

O fundamental a considerar é que a escolha da infraestrutura digital de um país pode ser igualmente importante na defi­nição de sua orientação geopolítica e, em última análise, na saúde de toda a economia e em como ela se compara à de outros países. É preciso ter uma boa regulamentação, mas somente a que leve em conta todos os cida­dãos, garantindo um acesso jus­to. As stablecoins são uma solu­ção única e podem se tornar o pilar de um sistema financeiro mais inclusivo e que certamente impulsionará o sistema atual e seus atores muito mais depressa do que se imagina.