Comportamento

“Trabalho fantasma” e outros impactos da pandemia para a vida profissional

A antropóloga americana e pesquisadora-sênior da Microsoft mostra como o conceito de emprego está mudando de forma acelerada

Mary L. Gray, antropóloga americana que estuda a intersecção de tecnologia e trabalho, recomenda cautela em relação às previsões do fim do escritório.

O mais provável, em sua opinião, é um meio termo entre a vida que levávamos até o começo da pandemia e a realidade do teletrabalho, que virou a regra para muita gente.

Mas as consequências da crise sanitária vão além do “onde”, diz Gray. A pandemia do coronavírus vai acelerar uma mudança fundamental no que se entende por emprego.

Em Ghost Work – How to Stop Silicon Valley from Building a New Global Underclass (trabalho fantasma – como impedir o Vale do Silício de criar uma nova subclasse global, numa tradução livre), Gray e o co-autor Siddhart Suri expõem o trabalho sob demanda – repetitivo, mal remunerado e não-reconhecido –, que está por trás da tecnologia da inteligência artificial.

Esse tipo de relação de trabalho, essencialmente a vida do freelancer, ou do motorista do Uber, contratado por tarefas via plataformas digitais – deve se acelerar, diz Gray.

“Ficou óbvio para muitas empresas que parte do que elas fazem hoje pode se transformar em serviços sob demanda.”

Gray é pesquisadora-sênior da Microsoft, integra o centro de estudos de internet e sociedade Berkman Klein, da Universidade Harvard, e dá aulas no Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Em outubro do ano passado, ela foi uma das agraciadas com a MacArthur Fellowship, um programa mais conhecido como “a bolsa dos gênios”, que reconhece indivíduos de diferentes áreas por sua contribuição para o conhecimento e as artes.

Gray conversou com o InfoMoney por videoconferência de sua casa em Sommerville, na região de Boston. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Quais foram as principais lições que aprendemos em quase um ano de trabalho remoto?

A primeira lição é que conectividade é essencial. As empresas e os trabalhadores dependem da internet como dependemos de estradas asfaltadas para o comércio. Isso não é trivial.

As pessoas que não têm acesso à internet ficam fora da economia global.

Outra lição é que coisas como saúde, que muitas vezes consideramos um benefício do emprego, são fundamentais. Existe a possibilidade real de que enfrentemos outras pandemias.

Lidar com elas vai exigir acesso à saúde. As empresas precisarão das garantias que tanto seus clientes quanto seus funcionários estarão saudáveis.

E ficou óbvio para muitas empresas que parte do que elas fazem hoje pode se transformar em serviços sob demanda. Cada vez mais isso se dá em mercados online. Eles permitem encontrar a pessoa certa, agendar, administrar, receber o trabalho e fazer a cobrança. E isso vem acontecendo nos mais diversos setores da economia.

Falando especificamente dos trabalhadores do conhecimento, que há dez meses estão trabalhando de casa, que mudanças podemos esperar no futuro próximo?

Todo mundo deveria ter cuidado com os anúncios da morte do escritório. Acredito num modelo misto, com espaços que possam ser usados em esquema de rotação. Ainda temos o anseio das conexões pessoais.

Minha esperança é que essa seja uma versão do futuro do trabalho: mais controle sobre seus próprios horários. Mas isso depende de as empresas entenderem que os funcionários podem ser produtivos controlando e coordenando suas agendas.

Muitas das ideias antigas de gestão eram baseadas na desconfiança de que os funcionários não fariam o trabalho a menos que houvesse cobrança. Esse mundo já não existe mais.

Apontamos em nosso estudo sobre o trabalho fantasma a importância dos funcionários que são a “liga” das equipes, ou seja, que incentivam e facilitam a colaboração.

Eles muitas vezes não recebem o reconhecimento nem a recompensa financeira por esse trabalho essencial. É um tipo de trabalho invisível, mas essencial quando as equipes estão distribuídas.

As videoconferências funcionam, mas não substituem a conexão física. A tecnologia estará à altura um dia? Realidade virtual, talvez?

Adoro estudar a história da tecnologia justamente em relação a esse tema.

Quando inventaram o telefone, havia o temor de que ele pudesse interferir em nossas relações interpessoais. E você tinha de ensinar as pessoas como se comportar num telefonema.

Hoje, uma conversa por telefone parece muito mais íntima que uma troca de mensagens.

Nossas expectativas em relação à sensação de intimidade de cada tecnologia vão mudando com o tempo.

As conversas por videoconferência podem não parecer a mesma coisa que se encontrar para tomar um café, mas acredito que especialmente depois da pandemia elas vão transmitir essa ideia de conexão. Talvez passemos a dar mais valor aos encontros no mundo real.

Sem dúvida tecnologias como realidade virtual e realidade aumentada trarão uma nova dimensão para esse contato à distância, mas ainda assim vamos querer ir ao escritório, sentar à mesa e olhar nos olhos um do outro.

No próximo semestre vou dar um curso online para meus alunos do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Adoraria estar na sala de aula.

As melhores partes da conversa acontecem quando você acha que a conversa acabou. No meu caso, é andando pelo corredor, depois do fim da aula. E isso é muito difícil de reproduzir via internet.

Entre as desigualdades salientadas pela pandemia está a diferença entre quem pode trabalhar de casa e quem não pode – como um caixa de supermercado, por exemplo. Há quem diga que esse tipo de trabalho essencial será realizado por robôs e computadores no futuro. A senhora concorda?

A inteligência artificial tem limites. Ela é fantástica se você souber a resposta para uma pergunta e se houver muitos exemplos para treiná-la.

Mas desmorona, ou pelo menos precisa de ajuda humana, quando você não sabe bem o que quer.

Pense num consumidor diante de várias opções de produtos. Diria que é basicamente impossível substituir essas pessoas por robôs e software, pois elas estão lidando com perguntas que não podem ser respondidas simplesmente com “sim” ou “não”.

Numa loja, muitas vezes você precisa de ajuda para decidir o que comprar. Só um humano pode ajudá-lo.

Mas a tecnologia pode permitir que o funcionário da loja tenha muito mais informações para fazer o trabalho. Para esse tipo de atividade, a parte essencial ainda é o trabalhador.

A senhora afirma que a tecnologia é um facilitador do fim do emprego tradicional. A pandemia acelerou essa transformação?

Acredito que sim, mas as estatísticas econômicas são lentas. As pessoas que fazem esse tipo de trabalho sob demanda me dizem que têm mais concorrência agora.

Sabemos que muita gente deixou o mercado de trabalho formal, particularmente mulheres. Também sabemos que, globalmente, a maioria dos trabalhadores não têm emprego formal.

Fui a um supermercado recentemente e a maioria das pessoas na loja eram funcionários montando pedidos recebidos pela internet.

Na economia de mercado, um dos bens à venda é o tempo alheio. Além da questão da saúde durante a pandemia, a população mundial está envelhecendo. Nesse cenário, os serviços de compra online devem ser cada vez mais importantes.

O curioso é que, ao mesmo tempo, isso representa uma volta a um tempo em que o leiteiro ia até sua casa.

Esse tipo de trabalho tem muito valor. Mas como reconhecer esse valor? Como vamos entender que se trata de uma atividade essencial, pelo menos para parte da população?

Se esse tipo de trabalho for insustentável para quem o faz, ou então considerado algo “menor” pela sociedade, vamos perpetuar e exacerbar essa ruptura econômica.

E quando falamos de fazer supermercado, ou cuidar das crianças, ou cuidar de quem está doente, em quem estamos pensando? Normalmente nas mulheres. Qual será o contrato social para esse tipo de trabalho?

Entrevista concedida a Sérgio Teixeira Jr.