Gestão

As empresas precisam impedir que seu “sistema imunológico” barre a inovação

O fundador da Singularity University mostra por que é dificil ser inovador, e como as companhias e as escolas precisam mudar isso para sobreviver

“Até setembro, acredito que já teremos passado pelo pior da pandemia. Mas o impacto econômico da Covid-19 ainda está para ser descoberto.

Até agora, muitos negócios se mantiveram abertos, com a ajuda dos estímulos dos governos, mas quando eles cessarem, teremos uma nova onda de falências.

Basta pensar que, apenas na pandemia, os Estados Unidos injetaram o equivalente a 30% do PIB em estímulos. Acabamos de deflacionar o dólar em 30% e aumentaremos a inflação de forma dramática como resultado.

Há uma macroestatística, criada por Jeff Booth, que mostra que, nos últimos dez ou 20 anos, para cada US$ 1 acrescentado ao PIB global, são criados US$ 4 em dívidas globalmente. Estamos expandindo a economia mundial com dívida, não com produtividade. Essa não é uma equação sustentável.

Tudo isso vai causar um grande colapso na economia global, que vai começar no varejo e turismo e vai se espalhar para outros setores. Alguns países vão se sair melhor que outros, acredito que a situação na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, vai ficar bem ruim, na China vai ficar ruim, mas não tanto.

Na verdade, esse colapso já está acontecendo agora, mas em poucos meses vai acontecer em uma escala muito maior. No mercado financeiro, essa injeção de dinheiro criou bolhas que devem estourar a qualquer momento. 

Por outro lado, vemos uma explosão inacreditável de inovação saindo dessa crise.

Esse novo mundo está forçando as empresas a abraçar a inovação. O negócio que não for agressivamente disruptivo vai se perder no futuro.

A Apple talvez seja o melhor exemplo de como ser inovador e não se perder. Ela cria pequenos times muito disruptivos e discretos e diz secretamente a eles que eles vão disruptar alguma indústria.

Eles olham para carros, relógios, saúde, pagamentos, varejo, tudo o que você imaginar, e, quando percebem que alguma indústria está pronta para ser disruptada, eles entram. Por isso, não há limite para o valor de mercado da Apple.

Estamos em um mundo em que ou você é o disruptor ou o disruptado – não há meio-termo e isso forçará as empresas a fazer algo semelhante à Apple, mesmo que elas não queiram.

Os hotéis Marriott, por exemplo, valem cerca de US$ 40 bilhões. Se tivessem feito spin-offs e criado o Tripadvisor, o Airbnb ou o Booking.com valeriam US$ 180 bilhões. Todas essas ideias existiam dentro do Marriot, mas o sistema imunológico da empresa não as deixou prosperar. 

Para ser o disruptor e não o disruptado, o primeiro ponto é olhar para dentro do negócio. As pessoas dentro da empresa têm as melhores ideias, geralmente, porque elas sempre viram o que está funcionando ou não naquele mercado.

Eric Yuan, CEO do Zoom, trabalhava na Webex (startup de videoconferência comprada pela Cisco) e tentou fazer a Cisco aceitar uma forma diferente de fazer videochamadas, mas eles disseram não. Então ele disse: vou criar minha própria empresa e deu no que deu. 

Se uma companhia pergunta aos funcionários se eles têm boas ideias, ótimas ideias surgem, mas o gerente da área, que tem 20 anos de empresa, é quem diz se vai funcionar ou não e decide a partir da experiência dele.

Não importa o quão inteligente aquele gestor é, a única maneira de descobrir se vai dar certo é testar a ideia no mercado. Esse é o tipo de política que deverá acontecer no futuro.

Em vez de rechaçar uma nova ideia, a empresa vai dizer: “Vamos gastar um pouco de dinheiro testando”.

O segundo ponto para não ser disruptado é resolver a “resposta do sistema imunológico” da empresa e impedir o interior da companhia de atacar novas ideias.

Geralmente, uma grande empresa é focada em duas coisas: eficiência e previsibilidade. Não é voltada para flexibilidade. Grandes empresas precisam se reinventar para ser ágeis, flexíveis e guiadas por um propósito se quiserem sobreviver. 

Quando lancei o livro Organizações Exponenciais, em 2014, selecionamos as 100 maiores empresas dos Estados Unidos e criamos um índice para mensurar o quanto se encaixavam no conceito de organizações exponenciais, ou seja, quão flexíveis, ágeis e escalonáveis elas eram.

Na época, as dez mais ágeis e primeiras da lista tinham um valor de mercado cinco vezes maior do que as dez últimas. Agora, seis anos depois, rastreamos as mesmas companhias e o valor de mercado das mais flexíveis do índice é 16 vezes maior que o das dez piores.

O oposto disso são empresas que fazem a mesma coisa repetidamente. A Ford e outras montadoras de carros são bons exemplos. O Tesla Model S de 2012 ainda é o carro mais avançado do mundo quase dez anos após o lançamento. 

Um exemplo de por que as montadoras tradicionais ficam para trás: os carros autônomos navegam pelo chamado lidar, radar que mede a luz para checar a distância de um objeto.

Há dez anos, um lidar custava US$ 130 mil e as montadoras achavam caro demais para comercializar. Mas, dois anos depois, o lidar custava US$ 50 mil, quatro anos depois, US$ 12 mil e hoje custa US$ 10 mil.

Mas agora é tarde demais porque outras empresas se debruçaram nisso e estão fabricando seus carros autônomos. O problema é que as empresas tradicionais não veem a natureza deflacionária exponencial da tecnologia. 

A segunda falha é o “ethos” das grandes montadoras. O slogan da BMW, por exemplo, é The Ultimate Driving Machine. Toda a engenharia e estética estão otimizadas para o motorista, mas temos certeza de que ninguém vai dirigir daqui a alguns anos.

Então, como mudar a empresa inteira? Não dá. O melhor é fazer como a Apple, montar um time de pessoas disruptivas e criar produtos totalmente novos.

Outro bom exemplo é a Nestlé, que por muitos anos tentou operar a Nespresso sem sucesso e, finalmente, quando fizeram o spin-off, boom, agora a Nespresso gera US$ 6 bilhões por ano em receita.

Ocorre que muitas grandes empresas compram inovação, mas, como não sabem como alavancá-la, simplesmente a matam. As startups no Vale do Silício entenderam isso e agora pensam, por que seríamos comprados? O CEO do Zoom está se recusando a ser adquirido, porque a empresa tem potencial e é movida por um propósito. 

E esse é um ponto crucial para as empresas do futuro: propósito, não por uma noção romântica, mas porque é algo que mantém todos alinhados.

Mais especificamente, é preciso ter o que eu chamo de Massive Transformative Purpose (MTP), o objetivo mais elevado e aspiracional de uma organização e um componente-chave das organizações exponenciais.

Um MTP deve ser tão abrangente e definitivo que os concorrentes não consigam criar um MTP capaz de superá-lo, como um grito de guerra que atrai as pessoas. O MTP do Google é “Let ‘s organize the world’ s information” (“Vamos organizar as informações no mundo”, em português), então sempre que precisam escolher entre dois projetos eles simplesmente perguntam qual deles irá organizar melhor as informações no mundo.

O do Uber é “Todos deveriam ter um motorista privado”. Isso dá um ponto de foco e é muito importante reter talentos. 

Saindo do universo das empresas, a falta de inovação é um problema ainda maior na educação. O ensino não mudou em 450 anos. Se o seu iPhone tivesse 450 anos, você não estaria muito feliz.

Hoje todas as grandes empresas, incluindo o Google, dizem que não vão mais contratar com base apenas no currículo acadêmico e vão olhar quão criativo e colaborativo o funcionário pode ser. A demanda vai colapsar e depois a oferta, esse é o primeiro ponto. 

Além disso, no passado, uma pessoa crescia aprendendo habilidades técnicas pelos primeiros 20 anos de sua vida, depois trabalhava nessas habilidades por outros 50 e se aposentava. Isso claramente acabou. O tempo médio de vida de uma habilidade caiu de 30 para cinco anos.

Nós treinamos seres humanos por 200 anos para serem robôs. Fomos medidos por quantos produtos poderíamos criar por hora em uma fábrica, e todo o nosso sistema de educação girava em torno de como fazer um trabalho específico.

A educação era guiada com base na oferta, e você estudava para se tornar um bom advogado ou médico. O lado da oferta ditava o rumo. Mas o que estamos vendo é uma mudança completa para o lado da demanda.

Portanto, o que devemos perguntar às crianças ao educá-las hoje é: qual tipo de problema você quer resolver? E então ela vai encontrar as habilidades e tecnologias necessárias para resolver aquele problema.

O Elon Musk, por exemplo, disse que queria ir à Marte, então ele começou olhando o problema e foi atrás das habilidades para chegar à solução, em vez de dizer: eu me tornarei o melhor advogado ou o melhor médico.

Para além das empresas e da educação, vejo outras grandes mudanças em um futuro próximo. Uma delas é que estamos nos movendo para uma administração focada em cidades em vez de nações.

O Trump e o Brexit não surgiram de um conflito entre esquerda e direita, mas de urbano contra rural. Cidades como São Paulo são mais importantes do que países, então esse é um paradigma importante. 

Muitas pessoas estão dizendo que o capitalismo falhou, mas o capitalismo foi incrivelmente bem-sucedido ao tirar a humanidade da pobreza, ao fornecer energia barata via petróleo.

Mas os combustíveis fósseis e o capitalismo são como o foguete propulsor, que é grande, pesado e faz uma combustão enorme para tirar o foguete da órbita. Uma vez que ele atinge certa altura, se livra daquela estrutura pesada e assume uma nave muito mais leve que o levará para a Lua.

O capitalismo e o petróleo nos tiraram de um lugar difícil, agora precisamos assumir a nave mais leve. 

Quando passamos da escassez para a abundância de energia com o petróleo, a transformação da economia global foi gigantesca, agora a energia solar tem o poder de mudar o mundo completamente mais uma vez.

Os combustíveis fósseis representam cerca de 12% do PIB global, toda a nossa geopolítica é baseada no petróleo. Usamos militares para defender o petróleo, mas eu brinco que, agora, os EUA terão de encontrar outras razões para ir à guerra.

Hoje temos redes centralizadas para distribuir energia, mas, ao descentralizar esse abastecimento com a energia solar, a rede nacional deixa de ser necessária. 

E as mudanças seguirão com o blockchain, a tecnologia por trás das moedas digitais, e os avanços da biotecnologia com o Crispr, uma técnica revolucionária que permite a edição do material genético de qualquer ser vivo, e pode trazer, entre outras coisas, a cura de doenças como Alzheimer e câncer.

No século 15, Gutenberg criou a prensa móvel e ela mudou o mundo ao democratizar a literatura. Hoje, o mundo tem 20 prensas de Gutenberg atingindo todos nós ao mesmo tempo. Vivemos a era das mudanças exponenciais, e nossas empresas e instituições precisam se adaptar.

Depoimento a Priscila Yazbek