Qual será a nova âncora fiscal do Brasil?

Teto de Gastos sofreu críticas na campanha presidencial, mas adotar novas regras vai exigir muita negociação

Roberto de Lira

Esplanada dos Ministérios (Ana Volpe/Agência Senado)

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Durante a campanha eleitoral para a Presidência da República, nenhum candidato ou proposta de governo apanhou mais do que o Novo Regime Fiscal (NRF), mais conhecido como Teto de Gastos. Tanto à direita como à esquerda do espectro político, a regra adotada em 2016 para limitar o crescimento da despesa primária à variação da inflação registrada no ano anterior se transformou num inimigo a ser combatido.

Na semana que antecedeu ao primeiro turno da eleição, o ex-ministro da Fazenda Paulo Guedes, disse que o Teto de Gastos era uma obra inacabada, “uma casa sem paredes, com o chão comprimindo o teto com o aumento de despesas” e atribuiu isso a falhas em sua concepção.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que venceu a disputa do segundo turno contra o presidente Jair Bolsonaro (PL), passou meses dizendo que iria “acabar com o teto”, algo que exigiria uma longa negociação com o Congresso, uma vez que a regra está no texto constitucional. No entanto, como precisou fazer acenos ao centro político para conseguir alianças de viés mais liberal, autorizou interlocutores a também discutir uma reforma do sistema, apontando interesse em construir uma nova âncora fiscal para o país.

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Lula repetiu a intenção de revogar o Teto de Gastos em seu discurso de posse, mas em meio ao impacto dessa fala nos mercados, o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad prometeu na segunda-feira (2) que apresentará uma proposta de novo arcabouço fiscal ainda no primeiro semestre de 2023.

Em ambos os lados da disputa eleitoral, a alegação era que com as despesas obrigatórias do governo (como as previdenciárias, pagamento de servidores e serviço da dívida) mordendo parcelas cada vez maiores do Orçamento, o espaço para a gestão de políticas públicas e investimentos tem ficado espremido, tirando o poder de ação de quem está na cadeira presidencial.

A Lei Orçamentária federal (LO) para 2023, que está no Congresso, estima que as despesas obrigatórias do ano que vem serão de 93,7% do total. Isso deixa 6,3% do Orçamento para a gestão da máquina pública.

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A artilharia tem sido tão pesada, que o “pai” da NRF, o ex-ministro da Fazenda e ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles, teve de sair em sua defesa. Numa entrevista recente ao programa Roda Vida da TV Cultura, ele afirmou que há um pressuposto compreensível, mas errado, na crítica ao teto. “O pressuposto é o de que não se pode cortar despesas, só pode deixar de crescer. Aí, de fato fica um problema”, disse.

Segundo Meirelles se não puder mexer em todo o custo de financiamento da máquina pública, só sobra mesmo cortar na despesa discricionária, pegando áreas como o investimento e a política social, entre outros gastos. “Se fosse verdade, a crítica seria procedente. Mas não é. O teto foi feito para forçar a definição de prioridades e criar condições para aprovar as reformas”, destacou.

O problema é que o Estado não cabe no seu Orçamento e isso vem de longe, desde os anos 1980, lembra Simão Silber, economista e professor da FEA-USP. “Desde então, o crescimento da despesa pública é três vezes maior que o do PIB”, comparou. E isso foi enfrentado com políticas danosas, como o aumento da carga tributária e a elevação da dívida pública.

Incontrolável

Na verdade, as críticas e propostas sobre a flexibilização ou a adoção de outros mecanismos de controle dos gastos já vêm acontecendo desde 2016, quando a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55 ainda estava em discussão no Congresso.

Já em 2017, o diretor do FGV/Ibre, Luiz Guilherme Schymura, alertava em artigo da revista Conjuntura Econômica que o teto de gastos do governo federal era um dispositivo constitucional muito rigoroso e difícil de cumprir e que deveria ter merecido mais reflexão.

O economista previa que o Poder Executivo seria inevitavelmente confrontado com uma série de despesas expansivas ou de difícil redução nos anos à frente. Afinal, o Executivo tem entre seus gastos algumas rubricas que crescem em termos reais por força de determinações constitucionais ou legais.

Ou seja, despesas obrigatórias como os benefícios previdenciários, as transferências da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), o seguro-desemprego, o abono salarial e o programa Bolsa Família (hoje Auxílio Brasil), tendem sempre a crescer, seja por razões demográficas, políticas, pelo atrelamento legal ao salário-mínimo, ou mesmo pelo comportamento do mercado de trabalho.

Furando o teto

De fato, o governo de Jair Bolsonaro se deparou com esse situação por diversas vezes, o que motivou diversas “flexibilizações” da regra, antes e depois da pandemia de covid-19.

Tanto a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado como o Núcleo de Estudos e Pesquisa da Consultoria Legislativa listaram medidas que foram adotadas.

Em 2019, antes da crise sanitária, por exemplo, foi feita uma capitalização de R$ 10 bilhões para estatais: Emgeprom (7,6 bilhões), Infraero (US$ R$ 1,5 bilhão), e Telebras TELB4 (R$ 1 bilhão). Além disso, a União transferiu à Petrobras (PETR3;PETR4) R$ 34,4 bilhões a título de compensação do leilão da cessão onerosa – o que foi excluído do teto de gastos.

Em 2020, foi elevada a complementação da União para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Depois, vieram a PEC Emergencial da pandemia, o novo regime para os precatórios e a “PEC Kamikaze”.

O IFI reconheceu em relatório que dispositivos constitucionais são sempre passíveis de interpretação e que o TCU tem competência para decidir sobre consultas a respeito da aplicação de dispositivos legais dentro da sua esfera de competência. “Contudo, na área fiscal, as aparências importam”, alertava a instituição ainda em 2020.

Flexível, mas quanto?

Mas se o teto cair, ou for substituído, que vai entrar no seu lugar? A resposta para isso vem de várias fontes e não só das forças políticas que se antagonizam em 2022.

Seja qual for o formato que virá das discussões, Vima Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, pede que as mudanças passem por um profundo debate. “A discussão sobre o arcabouço de regras fiscais tem sido debatida nacionalmente e internacionalmente, sobretudo após início da pandemia de covid-19. Acho que o debate é um bom caminho para eventuais aprimoramentos nesta questão”, defende.

As ideias principais têm girado em tono de vincular os limites máximos dos gastos do governo federal a outros indicadores, como à tendência da relação dívida/PIB, ao próprio crescimento nominal da economia, à dinâmica da dívida líquida do governo ou desempenho do resultado fiscal primário.

Embora defenda a adoção de regras simples de controle de despesas e de fácil entendimento de todos, Bráulio Borges, economista sênior da LCA Consultores e pesquisador associado do Ibre/FGV, pondera que elas também precisam se mostrar resilientes ao longo do tempo.

Um relatório elaborado pela equipe de análises do Credit Suisse e divulgado na semana passada vai na mesma linha, apontando que a introdução de uma regra fiscal confiável em 2023 terá o potencial de facilitar o processo de consolidação fiscal, por meio de menor aversão ao risco, taxas reais e pagamentos de juros.

“Essa dinâmica foi observada entre 2016 e 2020, quando o país estava sob uma regra fiscal crível”, comenta o texto assinado por Solange Srour e Rafael Castilho.

Para o banco, a credibilidade poderá ser reforçada se a proposta de mudança de regra for acompanhada de medidas fiscais que garantam a redução dos gastos obrigatórios, como a reforma administrativa, para simplificar e baratear o setor público.

Déficit anticíclico

Em fevereiro, Felipe Salto, então diretor da IFI, propôs que o teto de gasto em cada exercício fosse fixado tendo como base a receita estimada e o superávit primário requerido para uma razão entre a dívida pública e o PIB.

Segundo ele, a nova sistemática permitiria que o ajuste fiscal combinasse contenção dos gastos públicos com uma elevação da receita disponível, diferentemente do que ocorre atualmente.

A proposta é similar à defendida por Nelson Barbosa, ex-ministro do Planejamento no governo de Dilma Rousseff, que sugeriu recentemente a fixação de uma meta de crescimento real para o gasto primário, que flutuaria de acordo com a evolução da receita efetiva.

Segundo Barbosa, essa regra poderia melhorar a execução do gasto – acabando com contingenciamento – e tornaria o déficit primário automaticamente anticíclico. E receberia ajustes graduais, caso o resultado efetivo se desviasse muito da expectativa do governo.

O consultor legislativo do Senado Alexandre Rocha, que é professor da pós-graduação do ILB e do IBMEC-DF, afirmou em trabalho recente que essa proposta elevaria o grau de discricionariedade por parte dos agentes públicos.

Novo regime

Em agosto, um grupo de economistas, tendo à frente nomes como Pérsio Arida e Bernard Appy, divulgou um documento de “Contribuições para um governo democrático de progressista”, no qual defenderam uma reforma do Estado brasileiro, voltada ao aumento de sua eficiência.

Para a área fiscal, a sugestão é de mudança em todo o regime atual. Segundo o texto, a revisão seria complexa e de caráter geral, indo além da alteração das regras fiscais. “Devendo contemplar também a reformulação das regras orçamentárias e a redução da rigidez dos gastos, que prejudicam a gestão racional das finanças públicas e do próprio federalismo fiscal”, sugere o texto.

Para os autores, a complexidade disso demandaria tempo para sua adoção. “No limite, isso poderá demandar até o final de 2026, quando termina o período inicial do teto de gastos atual”, preveem os autores.

A parte mais polêmica da proposta é de permitir a ampliação temporária de despesas fora do teto de gastos – durante um ano – e criar uma nova rede de proteção aos mais vulneráveis, em substituição ao Auxílio Brasil.

É nesse ponto que os economistas fazem alertas. Para Simão Silber, o risco é essa licença temporária para gastar ficar apenas na teoria. O histórico ensina o contrário. “Se abrir a porteira, a boiada vai entrar”, compara.

Bráulio Borges, observa, que, em tese, seria possível acomodar um gasto extra de até 1,5% do PIB no ano que vem, o equivalente a R$ 150 bilhões. “O gasto em proporção ao PIB ficaria estável, em 19,5%, calcula.

Vinculação à dívida

O Tesouro Nacional também trabalha numa para uma regra mais flexível para o teto de gastos, prevendo que a taxa de crescimento das despesas seja definida a cada dois anos, conforme o nível e a trajetória da dívida pública. A regra ainda concede um bônus em caso de melhora do superávit nas contas públicas.

É praticamente um ajuste do modelo atual. O limite de gastos continuaria sendo corrigido ao pela inflação, como hoje, mas poderia receber um adicional, dependendo do nível e da trajetória da despesa, dívida e resultado primário.

Segundo o Credit Suisse, usando como exemplo 2023, pela nova regra o governo federal precisará estabelecer um teto para o crescimento das despesas em 2024 e 2025. Para isso, primeiro calcularia a dívida líquida média do governo geral (DLGG) em 2022, que ficou em 61,9%. Depois, faria a ponderação com o DLGG médio dos três anos anteriores (64,17%). Por fim, compararia o saldo primário médio dos dois anos mais recentes (déficit de 0,22%) com o de 2019 e 2020 (déficit de 5,67%).

A combinação dessas três variáveis resultaria em um crescimento real de 0,5% nos gastos em 2024 e 2025.

Para Borges, essa seria uma regra fácil de entender, embora ainda seja um esboço, uma vez que o gasto seria menor com uma tendência de dívida mais alta e maior com a dívida mais baixa. Mas ele alerta que qualquer mudança pode esbarrar na questão política e uma transição dessas deve ser difícil de negociar.

Para Silber, seja qual fora a âncora definida para valer a partir de 2024, a única solução para o Brasil é apostar no crescimento para elevar a arrecadação. Para isso, é necessário abrir a economia e atrair o setor privado a investir, dada a dificuldade que o governo tem de fazer isso.

No entanto, ele lembra que a atração de investidores externos, a desregulamentação e a defesa de reformas estruturais não são características nem do ex-militar Bolsonaro, nacionalista e protecionista por natureza, nem de Lula, que precisa manter compromissos com a base petista.

Credibilidade

Todos os especialistas ouvidos para a reportagem foram unânimes em defender que um novo arcabouço de regras precisa consertar a erosão da credibilidades dos últimos anos, ser simples de entender e transparente, no mínimo. “O Teto de Gastos está na Constituição. Imaginava-se que estraria blindado contra eventuais interesses casuísticos”, lembra Borges.

“Acho importante que o arcabouço de regras fiscais transmita credibilidade. Alguns itens, como flexibilidade e ‘enforcement’, são essenciais para um bom desenho da regra e estão presentes na literatura”, comenta Vilma Pinto.