Juiz nega pedido de associações para proibir Boeing de contratar engenheiros no Brasil

Juiz, porém, manteve a Ação Civil Pública contra a empresa na Vara Federal; Boeing diz que busca atrair e desenvolver os melhores talentos em todo o mundo

Lucas Sampaio

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O juiz Renato Barth Pires, da 3ª Vara Federal de São José dos Campos (SP), reconsiderou a sua decisão de enviar a Ação Civil Pública (ACP) contra a Boeing (BOEI34) para a Justiça Estadual, mas negou o pedido liminar das associações que processam a empresa americana para proibir — ou pelo menos restringir — a contratação de engenheiros “de elite” no Brasil.

Pires afirmou em sua decisão que “em um sistema jurídico que tem como um de seus fundamentos a livre iniciativa […], a intervenção judicial, quer para impedir, quer para limitar a contratação de trabalhadores, há de ser feita com muita cautela”.

Disse também que a livre concorrência é “princípio regente da ordem econômica” e que, “para que se possa estabelecer uma restrição dessa natureza, precisaria haver uma prova muito clara dos fatos e dos propósitos indevidos das requeridas, o que, até o momento, não se verificou”.

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O juiz deu 10 dias para as partes do processo especificarem as provas que pretendem produzir, “justificando sua necessidade”, e disse que vai examinar as questões preliminares apontadas pela Boeing após a manifestação dos envolvidos. Ele também deu indícios da sua opinião sobre o caso (veja mais abaixo).

Boeing x Embraer

InfoMoney tem mostrado que, anos após a Boeing desistir de comprar 80% da divisão comercial da Embraer (EMBR3) por US$ 4,2 bilhões, a gigante americana tem avançado sobre os talentos da brasileira — e de outras companhias com sede no Brasil –, contratando “a elite da engenharia aeroespacial brasileira”.

A empresa já contratou mais de 200 profissionais no país desde o ano passado — sendo mais de uma centena da Embraer — e continua com dezenas de vagas em aberto em São José dos Campos (SP), o berço da multinacional brasileira e do setor aeroespacial e de defesa do país.

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O foco começou por engenheiros de nível sênior, que têm anos de experiência, chefiam importantes áreas de desenvolvimento de aeronaves e possuem acesso a informações privilegiadas de projetos com segredos industriais. Nos últimos meses, a gigante americana passou a contratar também profissionais de meio e começo de carreira.

A Embraer inclusive já notificou extrajudicialmente a Boeing nos Estados Unidos, por causa das contratações no Brasil, acusando a empresa americana de “se apropriar indevidamente de seus segredos de negócios e outras informações confidenciais” após o negócio frustrado entre as duas. A Boeing nega as alegações.

Pedido urgente?

É neste contexto que a Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) e a Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (AIAB) entraram com a ACP contra a Boeing, em novembro de 2022, acusando a empresa de ameaçar a soberania nacional com as contratações, e tentam impor uma série de restrições à empresa.

Elas pediram tutela de urgência na Ação Civil Pública e uma série de liminares contra a Boeing, afirmando que a gravidade da situação exigia medidas drásticas. Mas não têm encontrado na Justiça o respaldo e a celeridade que esperavam.

Apesar de a ação ter começado em novembro, o governo federal se manifestou no processo apenas em fevereiro. E, com base em um parecer do Ministério da Defesa, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirmou que não via ameaça à soberania nacional nas contratações da Boeing.

O juiz então declarou “incompetência absoluta” para julgar o caso e o mandou para Justiça Estadual, mas as associações recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que suspendeu a decisão e questionou novamente o governo.

Vaivém do governo

A AGU apresentou um novo posicionamento, desta com base em um parecer do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), em que voltava atrás e pedia para fazer parte do processo. “Não há dúvidas de que a expertise brasileira nos setores de defesa/aeroespacial e aeronáutico, conquistada após uma trajetória de muito trabalho e estreito suporte estatal, possui caráter estratégico para a soberania nacional”.

Foi devido à mudança de posição que Pires reconheceu a competência da Justiça Federal para analisar o caso, como queriam as associações. Mas ele afirmou em sua decisão que “é sintomático que o interesse da União (agora reconhecido) tenha partido do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e não do Ministério da Defesa (que, ao que parece, não mudou de opinião a respeito)”.

O juiz afirmou também que “uma parte dos problemas narrados na inicial poderia ser resolvida com simples ajustes nos contratos de trabalho, com a inserção de cláusulas de confidencialidade e de não concorrência e, evidentemente, com a instituição de uma política salarial e de incentivos compatível com o mercado”.

O que diz a Boeing?

Este é o argumento da Boeing no processo judicial. Antes mesmo de ser intimada a se defender no processo, a empresa afirmou que “as associações não fornecem qualquer base legal para as medidas extremas pleiteadas” e querem impedi-la de “exercer seu direito constitucional de livre contratação de funcionários”.

A empresa americana disse que “não pode ser impedida de oferecer bons salários e boas posições aos trabalhadores no Brasil” e que “os engenheiros brasileiros são livres para trabalhar na empresa que ofertar melhores condições de trabalho, especialmente em um mercado altamente especializado”, e que proibi-la de contratar esses profissionais “seria abusivo e desproporcional”.

Sobre a decisão da 3ª Vara Federal de São José, a Boeing afirmou que o Brasil “possui um rico histórico de aviação, universidades técnicas de ponta e um forte ecossistema de engenharia”. “Como empresa global, estamos comprometidos em atrair e desenvolver os melhores talentos nos Estados Unidos e em todo o mundo para atender à demanda global por nossos produtos e serviços aeroespaciais”.

Negócio frustrado

Em meio à disputa pela elite da engenheira aeroespacial e de defesa do Brasil, o InfoMoney tem mostrado o custo, para a Embraer, do negócio frustrado com a Boeing. A empresa brasileira já gastou mais de R$ 806 milhões e ainda cobra ressarcimento da americana, após mais de 3 anos do fim de acordo, mas alerta seus investidores que pode não só não ser indenizada como perder ainda mais dinheiro.

Procurada, a Embraer não quis se pronunciar sobre o negócio frustrado nem sobre a arbitragem em andamento. Por isso, para chegar aos R$ 806 milhões, a reportagem analisou as demonstrações financeiras da empresa dos últimos seis anos, além de documentos públicos depositados na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) e na SEC (Securities and Exchange Comission).

A brasileira desembolsou milhões não só para segregar a sua divisão comercial (que seria transformada em uma joint venture com a Boeing), mas também para reincorporá-la, depois que o acordo fracassou. Foram R$ 485,5 milhões em 2019 e mais R$ 215,7 milhões no 1º semestre de 2020, antes de o negócio ser cancelado pela Boeing, além de R$ 105,6 milhões em 2021, com o programa One Embraer (criado para reintegrar a divisão comercial ao restante da empresa).

Embraer já gastou mais de R$ 806 milhões em negócio frustrado com a Boeing — e continua gastando (Arte: Leo Albertino/InfoMoney)

A Embraer é a terceira maior fabricante de aeronaves comerciais do mundo, atrás apenas da Airbus e própria Boeing, e líder no segmento de aviões de até 150 passageiros. Mas a escala das empresas é incomparável: enquanto a Embraer tem cerca de 18 mil funcionários em todo o mundo, a Boeing tem mais de 150 mil e contratou mais de 26 mil pessoas apenas em 2022. Além disso, a receita da empresa americana é cerca de 15 vezes superior à da brasileira.

Apesar de não se pronunciar publicamente sobre a disputa contra a Boeing, a Embraer é obrigada a tratar do assunto em seus balanços e em documentos públicos depositados na CVM e na SEC. Neles, a empresa brasileira diz que a americana “rescindiu indevidamente o acordo que criaria parcerias nas áreas da aviação comercial e de defesa & segurança, gerando custos significativos para nossa empresa” (veja mais abaixo).

Já a americana afirmou ao InfoMoney que tinha direito a cancelar o negócio. “Rescindimos nosso acordo para formar uma parceria estratégica depois que a Embraer não cumpriu uma série de condições importantes do contrato. A Embraer contestou nosso direito de rescisão e estamos arbitrando essa disputa em um processo confidencial. Não diremos mais nada sobre isso enquanto prosseguimos com a arbitragem”, afirmou a Boeing à reportagem.

Riscos da arbitragem

No formulário 20-F, depositado na SEC neste ano, a Embraer trata dos riscos que corre por causa do processo de arbitragem contra a Boeing (que já dura mais de três anos). Com 307 páginas, o documento aborda o negócio frustrado logo na primeira parte, onde estão as “informações-chave” (“key information”) da empresa, na parte “fatores de risco”:

“Incorremos e continuamos a incorrer em custos adicionais em conexão com o processo, defesa ou liquidação do processo judicial atualmente pendente e de quaisquer processos judiciais futuros e quaisquer procedimentos legais futuros relacionados à Transação Boeing e/ou rescisão e falha da Boeing em fechar a Transação Boeing”, afirma a Embraer no documento (veja abaixo).

A empresa lembra os investidores que “tanto a Embraer quanto a Boeing iniciaram arbitragens relacionadas à rescisão” e que os processos foram unificados. “No caso de uma determinação adversa no processo de arbitragem, podemos não recuperar quaisquer danos da Boeing e podemos ser obrigados a pagar danos monetários significativos à Boeing”, destaca a Embraer no formulário. A empresa alerta ainda que pode ser alvo de “litígios movidos por nossos acionistas e detentores de nossas ADRs relacionados à transação da Boeing”.

Embraer alerta investidores que pode não ser ressarcida pela Boeing, pelo negócio frustrado, e ainda ter que indenizar a gigante americana (Arte: Leo Albertino/InfoMoney)

Lucas Sampaio

Jornalista com 12 anos de experiência nos principais grupos de comunicação do Brasil (TV Globo, Folha, Estadão e Grupo Abril), em diversas funções (editor, repórter, produtor e redator) e editorias (economia, internacional, tecnologia, política e cidades). Graduado pela UFSC com intercâmbio na Universidade Nova de Lisboa.