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O poder do Supremo Tribunal Federal de dizer que pedra é pão – os casos de Aécio Neves e de Natan Donadon

O Supremo Tribunal Federal nada mais fez que usar discussões jurídicas para nos dar pedra dizendo tratar-se de pão. Usou a Constituição como pretexto para afirmar que sua decisão teria como fundamento o quê está escrito, e que o seu julgamento teria como propósito proteger a separação dos poderes, a soberania popular manifestada no voto, etc, etc, etc. No entanto, avaliando a decisão do Supremo pelos seus resultados, a conclusão é de que seu julgamento foi lamentável, nada importando os seus cultos fundamentos, nem as suas elevadas intenções.
Por  Alexandre Pacheco
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

O artigo 2º da Constituição Federal tem a seguinte redação: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

No artigo 14 da Constituição está disposto que “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”.

Mais adiante, no artigo 53, está disposto que “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”, de forma que, “Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.

Por fim, no artigo 55 da Constituição, está disposto que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.

Combinando-se esses dispositivos da Constituição, juristas interpretam que, se os Poderes da República são “independentes”, sendo assegurada a soberania popular manifestada no voto, e cabendo a prisão de Congressistas somente em flagrante de crime inafiançável, não caberia ao Poder Judiciário aplicar medidas cautelares que possam impedir o exercício do mandato eletivo de parlamentar.

Ou seja, apesar da Constituição dizer literalmente que a “prisão” determinada pelo Poder Judiciário deve ser decidida pelo Parlamento, há quem entenda que medidas judiciais que impossibilitem ou dificultem o exercício do mandato, a exemplo do afastamento do cargo, também dependeriam de apreciação dos próprios parlamentares. E o Supremo Tribunal Federal, por maioria, aceitou essa interpretação em sessão de julgamento do Plenário ocorrida no dia 11/10/2017 – veja aqui.

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Esse artigo 2º da Constituição, usado como razão de decidir, tem origem controvertida. Nelson Jobim explicou que seu texto não havia sido discutido nas Comissões da Assembleia Nacional Constituinte, nem votado pelo Plenário, tendo sido incluído posteriormente na Constituição, já na Comissão de Redação – ou seja, no final do processo legislativo. Posteriormente, esses dispositivos incluídos pela Comissão de Redação teriam sido “ratificados” pelos Congressistas por meio de votação nominal, com maioria absoluta. Veja aqui.

É bem verdade que a separação dos poderes consiste em um dos princípios fundamentais da República, de forma que, se não constasse no texto final da Constituição, seria naturalmente tratada como um “princípio implícito”, a orientar a aplicação das normas constitucionais e legais. Mas essa passagem da nossa história é educativa para despertar algum ceticismo em relação à literalidade da redação dos dispositivos da Constituição, que podem não ser, vamos assim dizer, exatamente a “suprema” e “inquestionável” expressão da vontade geral do povo – havendo alguns casos em que não são a suprema ou inquestionável vontade nem mesmo dos próprios Constituintes…

Justamente esse dispositivo, cuja suprema dignidade e extrema importância foi percebida pelos Constituintes somente quando, digamos, da revisão ortográfica do texto da Constituição, é que hoje fundamenta debates apaixonados no meio jurídico, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, tendo sido elevado à categoria de dogma inquestionável a merecer interpretação radical, literal e quase que religiosa – tal como, e apesar de, “contrabandeado” pela Comissão de Redação da Constituição…

Em matéria criminal, o Supremo Tribunal Federal deve ser a última palavra da República, o que obviamente inclui a determinação do afastamento de parlamentar de seu cargo, e isso não precisaria estar escrito no contrabandeado artigo 2º, nem em qualquer outro dispositivo da Constituição – é da natureza da República que seja assim. Isso porque todos os cidadãos, inclusive os “semideuses” da classe política, devem ser tratados igualmente perante a lei penal, sendo que, ademais, o único Poder cujas decisões finais são imutáveis é o Poder Judiciário, de forma que o Supremo é a última instância de manifestação dessa capacidade de aplicar a lei em grau definitivo – e não quaisquer das casas do Congresso Nacional.

Enfim, há um episódio vergonhoso em nossa história, de deputado federal condenado a 13 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (Deputado Natan Donadon), e que continuou exercendo o seu mandato, comparecendo às Sessões da Câmara dos Deputados, apesar de estar preso na Papuda. Veja aqui  e aqui.

Horrível.

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Agora, temos esse caso do Senador Aécio Neves, que tem contra si aplicadas medidas cautelares diversas da prisão que importam no afastamento do seu cargo, o que foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal à vista de provas na forma de gravações e filmagens, que são de grave teor. Com esse citado julgamento do Supremo, no entanto, a aplicação dessas medidas de natureza criminal foi condicionada à aprovação do Senado Federal. Veja também aqui.

Como resultado desse julgamento, ontem, foi o dito Senador mantido no cargo pelo glorioso Senado Federal, que tem nada menos do que 25 de seus membros (30%) investigados pela Lava Jato, conforme noticiado pelo Estadão – veja aqui.

O que está em jogo não é meramente a aplicação de um texto cuja verdade suprema estaria revelada em palavras escritas na Constituição (contrabandeadas, no caso). Não é disso que se trata, até porque, como demonstrado, a Constituição fala de “prisão”, e não de “afastamento do cargo”.

O Supremo Tribunal Federal nada mais fez que usar discussões jurídicas para nos dar pedra dizendo tratar-se de pão. Usou a Constituição como pretexto para afirmar que sua decisão teria como fundamento o quê está escrito, e que o seu julgamento teria como propósito proteger a separação dos poderes, a soberania popular manifestada no voto, etc, etc, etc. No entanto, avaliando a decisão do Supremo pelos seus resultados, a conclusão é de que seu julgamento foi lamentável, nada importando os seus cultos fundamentos, nem as suas elevadas intenções.

Alexandre Pacheco é Advogado, Professor de Direito Empresarial e Tributário da Fundação Getúlio Vargas, da FIA, do Mackenzie e da Saint Paul e Doutorando/Mestre em Direito pela PUC.

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Alexandre Pacheco Professor de Direito Empresarial e Tributário da FGV/SP, da FIA e do Mackenzie, Doutor em Direito pela PUC/SP e Consultor Empresarial em São Paulo.

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