Decreto no RJ libera máquinas de apostas; especialistas alertam alto risco de vício

Rodrigo Machado diz que população menos escolarizada é mais vulnerável e adverte para ficar atento aos primeiros sinais da doença

Agência O Globo

Ativos mencionados na matéria

Maquinas caça-níquel (Foto de Darya Sannikova/Pexels)
Maquinas caça-níquel (Foto de Darya Sannikova/Pexels)

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O decreto do governador Cláudio Castro que autoriza a instalação, no Estado do Rio, de três tipos de equipamento para apostas — Video Lottery Terminals (ou VLTs, máquinas diante das quais os usuários costumam jogar sentados), totens e terminais — já provoca advertências de psiquiatras que estudam o vício em jogos. A ludopatia, condição médica caracterizada pelo desejo incontrolável de continuar jogando, é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

— A gente não consegue prever quem vai ter vulnerabilidade e desenvolver uma dependência — alerta Rodrigo Machado, colaborador do Programa de Transtornos do Impulso (Pró-Amiti), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

A também psiquiatra Carolina Costa, do Complexo Hospitalar da UFRJ, gerido pela Ebserh, destaca que a questão não está somente no jogo:

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— O fácil acesso, cores, propaganda e notificação no celular pioram muito o risco.

O psiquiatra Rodrigo Machado afirma que existe uma grande preocupação da área da ciência que trata das dependências com a expansão do mercado dos jogos de azar no mundo inteiro.

— Há mais de 30 anos, a gente sabe que o jogo de azar adoece. Não se fica dependente só de substâncias químicas, mas também de comportamentos que sejam muito sedutores para o nosso cérebro, como o jogo de azar. Só que no passado era diferente. Cassinos, bingos, eram predominantemente analógicos. Com o advento da tecnologia, especialmente da internet e dos smartphones, o que a gente começou a ver é que o jogo mudou muito nas suas características. Os jogos eletrônicos, como são hoje em dia, trazem um ciclo de estimulação para o cérebro muito mais intenso e mais frequente do que era o jogo de azar lá atrás, em especial essas máquinas de caça a níquel — avalia o especialista.

Machado enfatiza que, atualmente, é muito curto o espaço entre o ato de apostar e o resultado gerado. Isso faz com que seja gerada uma estimulação muito intensa do cérebro, acrescenta. Para ele, as máquinas de jogos tem potencial de vício muito grande, sendo a população das classes C, D e E a mais vulnerável a adoecer.

— Quando a gente viu, por exemplo, a explosão do jogo do tigrinho, muitas pessoas mais vulneráveis, com menor nível educacional, nem sabiam que aquilo era aposta. Elas falavam: “eu vi o influenciador falando que é uma fonte de renda extra”.

‘O adoecimento também é uma loteria’

O ideal, segundo Machado, é nunca apostar, por ser um comportamento de risco. Contudo, diz ele, é preciso ficar atento a sinais para não desenvolver o vício do jogo:

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— Quando você faz uma aposta por ano na Mega Sena acumulada de fim de ano, o risco o é baixíssimo. Agora, você fazer, toda semana, “uma fezinha” na máquina de caça-níquel, na vídeo-aposta, em qualquer aposta que seja, você está testando o seu cérebro. E o adoecimento também é uma loteria. O fato é uma boa parte da população, se ficar se expondo recorrentemente às apostas, pode desenvolver dependência.

Entre os sinais de que a pessoa está ficando dependente e que deve procurar ajuda profissional, o especialista cita começar a jogar mais tempo, perceber que está faltando dinheiro no fim do mês e a queda do rendimento profissional, acadêmico, familiar.

— Quando os primeiros sinais aparecem, ainda é possível fazer uma intervenção para tentar reverter esse processo — adverte Machado.

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Carolina Costa lembra que há aplicativos que bloqueio o jogo on-line. Diz ainda que viciados em jogos podem procurar o Jogadores anônimos e atendimento gratuito em unidades do SUS.

Tentativa de formalização

O governador Cláudio Castro disse nessa quarta-feira que o decreto que autoriza a instalação de máquinas de videoloteria é para “formalizar” a realidade com que qualquer morador do Rio pode se deparar em bares e ruas. Segundo ele, a medida vai acabar com o jogo ilegal que está hoje nas mãos dos bicheiros. A proposta é que a Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) fique responsável por administrar, gerenciar e fiscalizar os três tipos de equipamento para apostas que serão permitidos: Video Lottery Terminals (ou VLTs, máquinas diante das quais os usuários costumam jogar sentados), totens e terminais.

— A ideia não é arrecadar, e sim moralizar o que já existe hoje e está completamente descontrolado. Formalizar o que já acontece e ir no processo de acabar com toda essa questão da contravenção — afirmou o governador ao GLOBO.

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Ao ser questionado sobre o risco de o crime organizado explorar esses novos jogos, Castro respondeu que, com o decreto, será possível identificar quem está lucrando excessivamente com esse mercado:

— Não estou muito preocupado com quem é o empreendedor. Estou preocupado com que aquele que queira empreender esteja dentro do rigor da lei. Que possamos saber quem ele é e, por meio do sistema de pagamento, identificar quem está lucrando excessivamente com isso. Tanto que o meio de pagamento é licitado pelo estado. É uma maneira de fazermos algo diante desse cenário. Vemos, a cada dia, o aumento das disputas e entendemos que essa é uma forma de reduzir e acabar, pouco a pouco, com essa atividade criminosa — afirma.

Herdeiro do bicho

O governo corre contra o tempo para fazer valer o decreto ainda este ano. No site da Loterj, a empresa informa que há 20 dias, antes da regulamentação, o presidente Hazenclever Lopes Cançado visitou uma operadora de jogos — o Rio tem hoje 31 bets licenciadas — em Niterói, onde conversou com os executivos Pedro Viana e Marcelinho Calil, neto do bicheiro Antônio Petrus Kalil, o Turcão, integrante da antiga cúpula da contravenção.

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O texto no site diz que, no encontro, Cançado anunciou o lançamento das regras para legalizar os VLTs no estado e que o presidente conheceu de perto “a estrutura da empresa — com destaque para a tecnologia de ponta utilizada, o modelo de atendimento ao consumidor e o desenvolvimento de novos produtos”. À Loterj, a bet apresentou um projeto de criação de lojas de VLTs e de sports bars em diversas regiões do estado. Os executivos já estariam negociando com empresas que comercializam os equipamentos e parceiros comerciais. Ainda de acordo com o site, Viana e Marcelinho Calil declararam que o “Rio será a Vegas brasileira”, numa referência à cidade americana de Las Vegas onde os cassinos são liberados.

Especialista em regulamentação de jogos e apostas, Eduardo Bruzzi, sócio responsável pela área de Jogos e Apostas do BBL Advogados, afirma que o decreto estadual não se confunde com a exploração de jogos de azar:

— Os jogos de azar são aqueles explorados por cassinos. A atividade lotérica, por sua vez, pode ser explorada por estados e pelo Distrito Federal. É permitida por lei. Entendo que o modelo do Rio pode, sim, ser seguido por outros estados — diz.

Nada de bingos e roletas

Em nota, a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda explicou que “bingos e roletas não podem ser oferecidos por meio de totens físicos, pois isso fere a legislação”. O órgão diz ainda que as máquinas “podem ser instaladas desde que obedeçam à legislação vigente oferecendo produtos que já estejam legalizados e que não firam legislação específica”.

Assim como fez para licenciar as 31 bets já em atividade no estado, o governo do Rio pretende cobrar outorga de R$ 5 milhões por uma autorização de cinco anos das empresas que vão explorar as máquinas de jogos. O decreto publicado ontem também informa que menores de idade não poderão fazer apostas. Há ainda estudos no governo, segundo Castro, para criar um mecanismo que impeça beneficiários do Bolsa Família de usarem o dinheiro do programa social nesses jogos. O governador disse que, em paralelo, haverá campanhas publicitárias para promover uma relação saudável com o jogo e que o sistema da Loterj terá como bloquear o acesso em caso de excessos.

— O que queremos é criar um jogo mais saudável, em que possamos identificar onde está o jogador, perceber quem tem exagerado, quem está perdendo tudo — afirmou.

O grupo de trabalho do governo estadual, no entanto, concluiu que só será possível realizar o efetivo bloqueio de beneficiários do Bolsa Família caso a Loterj tenha acesso à lista das pessoas atendidas. Representantes do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social foram consultados, e a sinalização não foi positiva.

Psiquiatra colaborador do Programa de Transtornos do Impulso (Pró-Amiti), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Rodrigo Machado afirma que existe uma grande preocupação da área da ciência que trata das dependências com a expansão do mercado dos jogos no mundo inteiro. Ele ressalta que os jogos eletrônicos têm muitos estímulos visuais e alerta que as pessoas mais vulneráveis ao vício são as das classes C, D e E:

— Quando a gente viu, por exemplo, a explosão do jogo do tigrinho, pessoas mais vulneráveis, com menor nível educacional, nem sabiam que aquilo era aposta. Elas falavam: “Eu vi o influenciador falando que é uma fonte de renda extra”.