“Queremos a Polícia Federal isenta de ingerências políticas”, diz delegado

Em entrevista ao InfoMoney, Edson Garutti fala sobre as influências que o meio político exerce sobre as atividades da PF por meio de cortes orçamentários e contingenciamentos nos repasses

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – Existe algum nível de ingerência política sobre as atividades da Polícia Federal que prejudica o andamento das grandes investigações em curso, responsáveis por passar o Brasil a limpo. Da decisão sobre o orçamento do órgão à maneira como se dão os repasses ao longo do ano, o trabalho dos delegados é mais afetado do que se imagina por decisões administrativas tomadas em níveis mais elevados do poder Executivo. O experiente delegado Edson Garutti, da Delefin (Delegacia de Combate a Ilícitos Financeiros) de São Paulo, não acredita na existência de qualquer interferência direta sobre a forma como os inquéritos são abertos e conduzidos pelos encarregados ou sobre qualquer etapa de investigação. No entanto, ele diz que a falta de regras que definam com clareza o volume de recursos a serem destinados para a PF anualmente e a forma como os repasses devem ser feitos requer cuidados adicionais do órgão, que tem feito malabarismo para fechar suas contas em meio a uma realidade de cortes e contingenciamentos.

“Temos algum nível de ingerência política [na PF]. Não na investigação em si. Os delegados conduzem as investigações criminais com independência e isenção, conforme a consciência e o entendimento jurídico de cada um. Mas no âmbito administrativo temos uma hierarquia, que tem por fim o ministro da Justiça. Todo repasse de verbas depende dessa cadeia administrativa. Nas investigações menores, isso não é um grande problema. Conseguimos conduzir [os trabalhos] com equipes mais enxutas. Agora, quando as investigações atingem certo tamanho e demandam uma equipe exclusiva e deslocamento de recursos humanos e materiais, a gente começa a ter que pedir recursos nos graus da hierarquia administrativa, que pode repassá-los ou negá-los. O corte de recursos afeta a Polícia de um modo geral, inclusive as investigações. O corte [de gastos do ajuste fiscal] pode ser a desculpa para não se repassar os recursos materiais necessários para uma Lava Jato, Zelotes ou Acrônimo”, explicou Garutti em entrevista ao InfoMoney.

Em grandes operações, são necessárias mobilizações de pessoal, viaturas e despesas decorrentes de diárias, além de outros gastos com técnicos e equipamentos específicos. Com essa nova demanda, é preciso que a direção geral aprove o repasse de recursos adicionais às superintendências requisitantes via crédito suplementar de recursos. Quando se tem cortes orçamentários gerais, a disponibilidade de verba para atender a tais necessidades fica cada vez mais reduzida, o que compromete o andamento de alguns trabalhos. Isso sem falar nas baixas diárias em casos de deslocamentos temporários, reclamadas pela categoria. Delegados que vão para outras cidades ou estados para trabalhar em casos específicos recebem em média R$ 220 por dia, com os quais precisam arcar com diária de hotel, transporte e alimentação — o que não raramente precisa ser complementado pelo profissional, que acaba “pagando para trabalhar”. “Muita gente faz isso, pelo simples gosto de estar em um caso mais relevante, complexo e importante. Mas não é justo”, complementou Garutti, lembrando que, em situações semelhantes, membros do Ministério Público recebem R$ 1100 em diárias. A mesma realidade destoante se reflete nos salários comparados entre os membros desses órgãos, com o MP garantindo remunerações bem mais interessantes.

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O maior atrito entre governo e Polícia Federal visto recentemente ocorre em meio a um anúncio de corte orçamentário na ordem de R$ 151 milhões para o órgão em 2016, sob a argumentação de recuperação do controle sobre as contas públicas via ajuste fiscal. Na ocasião, a Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal emitiu nota criticando a redução nos recursos a serem passados neste ano, o que poderia implicar em “drástica diminuição das ações investigadas da PF, pois contratos celebrados para garantir o seu regular funcionamento serão suspensos ou cancelados e projetos que visam ao seu aprimoramento serão completamente abandonados, por absoluta falta de recursos, o que já vem ocorrendo, por exemplo, em projetos estratégicos para a segurança da nação”. O texto assinado pelo presidente da Associação, Carlos Eduardo Miguel Sobral, ainda fala em desmonte da instituição e na impossibilidade de se cumprir compromissos investigativos.

Em resposta, o ministro José Eduardo Cardozo chegou a dizer que a diretoria da PF já havia sido orientada a “gastar normalmente”, uma vez que, apesar do corte, “o ministério da Justiça tem R$ 2,8 bilhões de possibilidade de remanejamento interno”, e que por conta de a situação ter sido resolvida antes da mobilização da associação, ele não poderia “admitir que houve pressão para que mudássemos de posição”. Para o chefe da pasta, a organização teria criado “factoides que julga necessários para atender suas reivindicações salariais”. Na última segunda-feira, foi confirmada a reposição do corte em nota divulgada pela pasta, que também frisou que “não faltaram e nem faltarão recursos financeiros para a realização de operações e investigações da Polícia Federal ao longo do corrente ano”.

Seria exagero falar em sucateamento da Polícia Federal nesse momento, avalia Garutti. Mas ele acredita que nada impediria que a situação chegue a esse limite no curto prazo. Embora o ministro Cardozo argumente que, de 2003 para cá, o orçamento da PF cresceu em mais de 43%, o delegado rebate que os investimentos da instituição têm caído sucessivamente desde 2007, apesar de os aumentos de gastos com folha de pagamentos e custeio. “É um gargalo. O corte no orçamento representa um embaraço para as investigações, mas não o fim delas. A gente vai tocando conforme a possibilidade material nos permite. Agora, tendo investimentos, seria outro patamar de celeridade e profundidade. O investimento está caindo ano após ano. No limite, isso gera uma situação de sucateamento”, argumentou.

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Como justificativa dessa ação, Garutti não acha plausível apenas a questão do ajuste fiscal. Na avaliação do delegado, haveria uma disputa política por trás das decisões sobre o orçamento da Polícia Federal, que tem culminado em menos recursos ao longo dos últimos anos. “Se fosse uma coisa pontual, desse ano de crise, eu até poderia dizer que é um sacrifício que todos os órgãos públicos fazem. Mas não é. Essa queda do investimento observamos desde 2007. Naquele ano, o Brasil estava atravessando momentos de boom, não havia ocorrido a crise do Lehman Brothers. Se você perceber, essa é a época em que começaram a aparecer as provas mais contundentes no inquérito do Mensalão. Foi aí que começou esse corte de investimentos na PF. Portanto, [o motivo] é político, sim. É isso que queremos acabar. Queremos a Polícia Federal isenta de ingerências políticas”, complementou. Segundo o delegado, o ex-presidente Lula, em seu primeiro mandato, chegou a fazer muitos investimentos na PF. Mas depois a instituição foi alvo de redução de investimentos, com concursos se tornando cada vez menos frequentes.

Muito além dos cortes e restrições orçamentárias, outro problema assombra as contas da Polícia Federal: é o tal do contingenciamento, que faz com que o governo repasse os recursos de maneira irregular ao longo do ano. “A liberação desses valores é feita também a conta-gotas. Ao longo do ano, eles vão contingenciando o valor que já foi liberado pela lei orçamentária, de modo que a Polícia recebe mês a mês cerca de 1/16 do valor. E deixa-se uma pequena gordura mais para o fim do ano. Agora, as investigações não necessariamente seguem essa cronologia de gastos. A investigação tem vida própria: conforme se conseguem novas provas e surgem novas pessoas envolvidas, surge a necessidade de mais recursos. Como a PF não tem autonomia para gerir os recursos liberados a ela, às vezes nosso planejamento nessas grandes operações fica muito prejudicado”, criticou Garutti.

É nesse sentido que tramita na Câmara dos Deputados a proposta de emenda à Constituição de número 412, de 2009, enviada pelo ex-deputado Alexandre Silveira (PPS-MG). O texto prevê “autonomia funcional, administrativa e elaboração de proposta orçamentária” para o órgão, para dar maior previsibilidade e transparência às decisões sobre o repasse de recursos. Com isso, seria aberta a necessidade de se discutir em projeto de lei complementar as especificidades da mudança, que poderia dar maior poder à PF e menor dependência da pasta da Justiça à qual é subordinada. A ideia defendida pelos delegados é vincular o orçamento da Polícia a um percentual fixo do PIB (Produto Interno Bruto), assim como definir com maior clareza regras para os repasses no ano. “Quanto mais se vai subindo no escalão da hierarquia administrativa [que envolve a PF], rumo aos escalões mais políticos, eles não têm a verdadeira noção da necessidade dos recursos”, declarou o delegado.

Para Garutti, que já esteve à frente de importantes operações envolvendo o mercado financeiro — caso da Agente BR, um clube de investimentos falso que capturou milhões de reais em recursos de centenas de vítimas — a despeito das conquistas obtidas pela operação Lava Jato até o momento, teria sido possível descobrir muito mais em muito menos tempo, se os recursos necessários tivessem sido repassados no tempo certo. “Foi investido muito recurso, mas não acho que tenha sido suficiente para atender às demandas que estavam surgindo no trabalho investigativo. Poderíamos ter mais investimentos lá. Teríamos mais rapidez, um aproveitamento melhor de muitas provas, desdobramentos que vão sendo deixados para um segundo momento já poderiam estar em curso. Se tivéssemos mais recursos humanos e mais recursos materiais envolvidos, poderíamos fazer esses desdobramentos da Lava Jato de forma mais rápida, e evitando a perda de muitas provas”.

O delegado está orgulhoso dos trabalhos recentemente feitos pela Polícia Federal, mas não esconde sua preocupação sobre o futuro da corporação. Segundo ele, parte dos avanços experimentados se deve a investimentos importantes feitos 15 ou 20 anos atrás em equipamentos, estrutura e contratação de pessoal qualificado. Com os cortes dos últimos anos, o inverso pode acontecer no futuro próximo. “Se a gente quer manter uma PF atuante, forte, que investiga com isenção; se queremos manter esse tipo de Polícia para o futuro, temos que olhar para o que está sendo investido hoje. E quando olhamos para o investimento atual, ele está raro”, lamentou. Ele lembra que o atrito com o Executivo não se desenha nos cortes previamente anunciados para este ano, mas para o contexto mais amplo em que eles se inserem. “Estamos falando de uma situação que se arrasta desde 2007, que é a falta de investimento, contingenciamento, recurso disponibilizado a conta-gotas que atrapalha nosso planejamento para o uso do recurso. Não é deste ano de crise que estamos falando, mas de um processo gradual de desmonte. No médio prazo, vamos ter problemas seríssimos se continuar assim”, concluiu Edson Garutti em tom pessimista.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.