Ser mulher (e na pandemia) é encarar mais demissão, violência, esgotamento mental; saída passa por qualificação e independência financeira

A desigualdade de gênero no mundo do trabalho, historicamente grande, ganhou contornos mais complexos com a Covid-19

Suzana Liskauskas

Mulher trabalhando em Home Office

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Uma maioria que segue minorizada. É assim que Ana Fontes, empreendedora social, fundadora e presidente do Instituto Rede Mulher Empreendedora, define a situação das mulheres brasileiras no mercado de trabalho.

Ainda que as mulheres representem a maioria da população do país (51,8%), há uma luta diária contra a misoginia, o etarismo e o preconceito — explícito ou disfarçado. Embora o quadro, hoje, seja melhor que o de anos atrás, as dificuldades reduzem as oportunidades das mulheres de gerar renda, as afastam de cargos de liderança e as desencorajam de conquistar a independência financeira.

A desigualdade de gênero no mundo do trabalho, que historicamente sempre foi grande, ganhou contornos mais complexos com a chegada da pandemia de Covid-19. A PNAD Contínua indica que as mulheres atingiram taxa de desocupação de 13,9% ante 9% da dos homens, no quarto trimestre de 2021.

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Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), divulgados pelo Ministério do Trabalho e Previdência no ano passado, também mostram que elas foram mais afetadas nas demissões. Em 2020, o país perdeu cerca de 480 mil postos de trabalho com carteira assinada. Destes, cerca de 463 mil eram ocupados por mulheres.

Homens x mulheres

Janaína Feijó, pesquisadora do FGV IBRE, observa que, embora o mundo venha mudando estruturalmente, normas sociais ainda travam a ascensão feminina.

“Notamos que as gerações atuais são menos avessas à inserção da mulher do mercado de trabalho”, diz Feijó. “Mas, mesmo com tantas mudanças nos últimos 30 anos, ainda temos uma baixa taxa de participação feminina na força de trabalho comparada à dos homens [71,6% de homens contra 51,6% de mulheres em 2021]”.

As diferenças também se acentuam quando são analisados os níveis de escolaridade e qualificação. De acordo com Feijó, aproximadamente 21 milhões de mulheres, entre 20 e 59 anos, estiveram fora da força de trabalho em 2021. Destas, 51% não têm nem o ensino médio completo.

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“Nesta faixa de idade também temos em torno de 6,3 milhões de mulheres desempregadas, das quais 2 milhões têm fundamental completo e 3,3 milhões, médio completo. Os desafios para reinseri-las são consideráveis, pois a qualificação e as habilidades são cada vez mais requeridas no mercado de trabalho, principalmente, no contexto pós-pandemia. Elas precisam de ajuda”, afirma.

Para virar esse jogo, a pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da FGV (Fundação Getulio Vargas) aposta no empreendedorismo com qualificação.

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“Cursos que as ensinem o processo de formalização dos negócios e quais benefícios terão ao se tornarem microempreendedoras, como estipular os preços dos seus produtos, estratégias de marketing para divulgação nas mídias sociais, dentre outros, podem ajudar os negócios a sobreviverem”, diz Feijó.

Especialista em empreendedorismo social, Ana Fontes enxerga que o caminho para a mudança da sociedade passa por esforços não apenas das organizações civis. “É essencial levantar a bandeira da política pública”.

Ao investir em uma mulher empreendedora, ressalta Fontes, todo o núcleo familiar é positivamente impactado. “A mulher empreendedora investe recursos que ganha na educação dos filhos e no bem-estar da família. Ela, geralmente, contrata outras mulheres e gera um ciclo positivo”, observa.

“Formações que as ensinem a como se comportar em entrevistas, como elaborar um currículo, onde procurar vagas de emprego são muito importantes”, complementa Feijó, que também enfatiza que essas iniciativas precisam ser mais claras e monitoradas pelos governos.

Outro fator que reforça a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho é o etarismo, a discriminação geracional.

“A discriminação contra pessoas mais velhas pode ocorrer independentemente do gênero, mas, como as mulheres já estão inseridas em um contexto de discriminação de gênero, acabam sendo duplamente penalizadas”, ressalta Feijó.

Independência financeira

Durante a pandemia, o número de mulheres vítimas de violência cresceu, mostra a 3ª edição do estudo Visível e Invisível: “A vitimização de mulheres no Brasil”, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Datafolha.

Segundo a pesquisa, uma em cada quatro brasileiras acima dos 16 anos afirmou ter sofrido algum tipo de violência durante a crise sanitária — o que representa cerca de 17 milhões de mulheres.

“Um dos fatores que contribuem absurdamente para as mulheres saírem da situação de violência é a não dependência econômica e financeira do companheiro. Não é, obviamente, o único fator, mas é um dos mais relevantes para ela sair do círculo de violência. A mulher dona do seu dinheiro é a dona das suas próprias decisões”, diz Ana Fontes.

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Números da 6ª edição da pesquisa anual elaborada pelo Instituto e Rede Mulher Empreendedora, que ouviu 2.736 empreendedores acima de 18 anos, de todo o país (homens e mulheres), entre maio e junho de 2021, revelam que 34% das mulheres sofreram algum tipo de agressão em relações conjugais.

A boa notícia é que 48% dessas mulheres, também segundo o estudo, conseguiram sair desses relacionamentos abusivos porque resolveram empreender.

Juliane Borsa, doutora em psicologia e terapeuta em saúde emocional, afirma que ter o próprio dinheiro é ponto fundamental para a mulher. “Porque um dos principais dispositivos de controle sobre elas é o financeiro”, diz.

Mas o desafio não é individual, observa Borsa. “É preciso haver um movimento por parte de todos os agentes, do micro ao macro, porque as instituições têm os seus ranços estruturais também.”

Esse modelo, segundo a doutora em psicologia, pode afastar as mulheres do mercado de trabalho. “O horário do almoço apertado que não permite amamentar o filho, a quantidade de demanda que chega no seu e-mail no fim de semana vão inviabilizando outras áreas da vida e obrigando a mulher a ter que fazer escolhas, uma das questões que eu mais combato”, diz Borsa.

Esse cenário motivou a RME, segundo Fontes, a trabalhar também focada na recuperação da autoconfiança da mulher. Fontes comenta que, além de ensinar como ter um CNPJ e noções de gestão, a RME ensina a mulher como agir numa rodada de negociações, por exemplo.

“Não somos ensinadas a liderar, somos ensinadas a cuidar desde cedo. O tempo inteiro nos é ensinado que o território do dinheiro não nos pertence”, ressalta Fontes.

Hiperprodutividade x Saúde mental

Ana Carolina Peuker, fundadora e CEO da mental healthtech Bee Touch, observa que a crise pandêmica acentuou a preocupação com a hiperprodutividade feminina, que, segundo Peuker, é extremamente nociva à saúde mental.

“É preciso aprender a fazer pausas, parar e respirar. As mulheres tendem a absorver inúmeras demandas, acham que conseguem dar conta de várias coisas ao mesmo tempo. É a ideia de que a mulher tem que estar disponível para tudo o tempo todo e isso leva ao adoecimento mental. É preciso poder dizer não”, afirma Peuker.

A especialista defende o desenvolvimento de estruturas de compliance em saúde mental nas organizações, com políticas claras.

“A mulher pode precisar de um regime de horas mais flexível, que lhe permita, por exemplo, levar o filho à escola. Não basta oferecer auxílio para psicoterapia, quando a profissional só quer um transporte decente para ir para casa. Ela só quer chegar mais rápido em casa para, por exemplo, liberar quem ficou com o filho dela”, diz Peuker.

“Pelo menos, estamos discutindo mais. A equidade de gênero vai entrar nessa discussão também, pois ambientes diversos são mais produtivos. Estamos falando de segurança psicológica, da liberdade de as pessoas poderem assumir suas necessidades e produzirem de maneira mais feliz”, completa Peuker.

Para Janaína Feijó, do FGV IBRE, as discussões sobre flexibilização da jornada de trabalho e da possibilidade do trabalho home office para as mulheres precisam avançar. “Pois a flexibilização tem efeitos diretos sobre a permanência das profissionais no mercado de trabalho”, afirma.

Ana Peuker acentua a importância dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela ONU (Organização das Nações Unidas), como mais uma oportunidade de a igualdade de gênero ser conquistada.

“Ressalto o Objetivo número 5, que é um elemento central presente em todos os ODS. Ele diz que é preciso unir esforços, nos âmbitos público e privado, para combatermos os principais desafios: psicológicos, sociais e econômicos, relativos à equidade de gênero e, assim, alcançar a saúde e o bem-estar de todos”, diz.

E isso tem que ser antes de 2030. A ver!