Marco Legal das Garantias permite uso de imóvel para contrair mais de um empréstimo; saiba como funciona

Medida, segundo especialistas, poderá reduzir juros, mas inadimplência é risco

Maria Luiza Dourado

(Getty Images)

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Sancionado na noite desta segunda (30), pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Marco Legal das Garantias muda normas para facilitar a retomada da garantia pelo credor em caso de inadimplência do devedor e, assim, reduzir o custo do crédito.

Especialistas consultados pelo InfoMoney entendem que, em teoria, o texto tem potencial para estimular a redução dos juros em operações de crédito e expandir o acesso ao home equity (empréstimo com imóvel dado como garantia) no Brasil no longo prazo, mas deixam o alerta: o dinamismo do setor deve ser monitorado para que não se traduza em mais inadimplência.

De relatoria do senador Weverton, do PDT do Maranhão, o Projeto de Lei 4.188/2021, chamado de Marco Legal das Garantias de Empréstimos, desembarcou na Câmara em 2021, ainda no governo de Jair Bolsonaro (PL), foi aprovado pela Casa em junho de 2023 e enviado ao Senado, que promoveu alterações — a maioria delas acatadas pela casa de origem, a Câmara, no início de outubro.

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O uso da mesma garantia para mais de um empréstimo e a possibilidade de a intimação eletrônica ser suficiente para o início da execução de dívidas estão entre as principais medidas que o Marco das Garantias traz.

Além disso, Lula vetou a possibilidade inédita de execução extrajudicial para recuperar dívidas ligadas a veículos automotores alienados fiduciariamente — excluindo a possibilidade de credores (como bancos ou seguradoras) acionarem de forma extrajudicial Detrans pelo país para acelerar o processo de retomada de um veículo.

Como o Marco das Garantias pode baixar os juros?

O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu a aprovação do Marco das Garantias que, segundo ele, busca diminuir os custos operacionais para as instituições financeiras, estimulando a redução das taxas de juros, além de elevar as alternativas de crédito.

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Os juros incididos sobre o valor de um empréstimo são calculados, a partir da percepção de custos e riscos da instituição financeira em relação ao pagamento do valor emprestado. Quanto maior o risco percebido, maior os juros, e vice-versa.

No Brasil, a velocidade de recuperação de um bem dado como garantia é um grande risco percebido pelos bancos. Segundo dados do Banco Mundial, o país tem uma das menores taxas de recuperação judicial de garantias do mundo, de 18,2%, parcela menor que a média dos países emergentes, que é de 42,5%.

“É esse cenário de percepção de risco que alimentam o alto spread bancário no país. Você mede a qualidade da garantia pela qualidade do ativo e a rapidez em que é possível recuperá-lo, em caso de inadimplência. É nesta etapa que o marco auxiliaria, trazendo mais segurança jurídica e celeridade para o processo de recuperação de garantias”, afirma Rubens Sardenberg, economista-chefe da Febraban.

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Intimação eletrônica valendo

Uma das principais medidas que o Marco traz é a adoção da intimação eletrônica, mecanismo que dispensa a intimação presencial, como ocorre hoje.

Para Daniel Gava, CEO da proptech Rooftop, a medida representa um avanço. “Há devedores que se escondem, para que não sejam considerados intimados e acabam adiando ao máximo a execução da dívida, que se torna um processo caro e oneroso para os bancos no Brasil, que tem grande despesa com custos relacionados à inadimplência. Essa correção melhora a percepção das instituições sobre a concessão de crédito”, pontua.

Segundo o texto agora sancionado, o devedor deverá ser intimidado eletronicamente 15 dias antes da intimação editalícia (presencial) feita pelo oficial de Justiça.

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Depois deste prazo, caso o devedor não seja encontrado nem no local do imóvel dado em garantia nem no último endereço fornecido pelo oficial de Justiça, o tabelião de protesto poderá utilizar meio eletrônico ou aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para enviar as intimações.

Uma mudança importante: a intimação será considerada cumprida quando houver confirmação de recebimento da plataforma eletrônica (como a confirmação de recebimento apresentada pelo WhatsApp). A partir deste ponto, com o Marco Legal das Garantias, o rito para a recuperação da garantia por parte do credor se inicia.

Oficiais de justiça como agentes de inteligência processual

Outro ponto que trabalha em prol da rápida recuperação das garantias de empréstimos é a determinação de que oficiais de Justiça atuem como agentes de inteligência processual. Isso significa que a categoria passaria a ter acesso aos sistemas eletrônicos de pesquisas e constrição disponíveis ao Judiciário, para localizarem bens e pessoas com mais velocidade e precisão – para finalmente fazer cumprir execuções, sejam elas cíveis, penais, prisões ou apreensão de pessoas e bens.

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“A tendência é o processo ganhar celeridade, porque não haverá mais as idas e voltas com decisões judiciais determinando, frequentemente, a indicação de novos endereços ou de novos bens diante da frustração de diligências anteriores”, afirma o site oficial do Senado.

Cada tribunal oferecerá capacitação para atuação dos oficiais de Justiça como agentes de inteligência processual. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentará o acesso direto dos profissionais aos sistemas eletrônicos de pesquisas e constrição disponíveis ao Judiciário por convênios ou outros instrumentos.

Imóvel como garantia em mais de um empréstimo

Um dos pontos mais importantes – e polêmicos – do Marco Legal das Garantias é a possibilidade inédita no país de um imóvel servir como garantia para mais de um empréstimo, de bancos diferentes.

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As transações feitas com bens imóveis (como casas e apartamentos) dados como garantia já existem no Brasil. A modalidade chamada de ‘home equity’ movimenta US$ 14 bilhões por ano no país, segundo dados recentes da Abecip (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança).

Devido à garantia real e palpável, por meio da alienação fiduciária, que transfere a propriedade do imóvel para o credor até o fim do pagamento do empréstimo, as operações de crédito desse tipo têm juros mais baixos – em torno de 15% a 20% ao ano, contra os 91% do crédito pessoal não consignado, que não depende de apresentação de garantias, ou dos 440% do rotativo do cartão de crédito.

A rigor, atualmente, um imóvel pode servir de garantia para um único empréstimo, de até 60% do seu valor de avaliação. Com o Marco Legal das Garantias, essa porcentagem subiria e – aqui uma das mudanças mais relevantes do texto — poderia ser dividida em mais de uma operação em mais de um banco.

“Essa é uma ação que possibilitará uma importante expansão de acesso ao crédito no Brasil – aos moldes do que já acontece em outros países”, afirmou Sardenberg, da Febraban.

Outro ponto de mudança seria a possibilidade de que a redução do saldo devedor de um empréstimo autorizasse novas operações com a mesma garantia. “Cada parcela que eu, tomador de crédito, pago do meu empréstimo é mais uma parte do meu imóvel que retorna para mim como possibilidade de garantia para um novo empréstimo, inclusive com outra instituição financeira. Isto é o que se propõe o marco: que a redução do saldo devedor autorize novas operações”, explica Alberto Ajzental, especialista em setor imobiliário e professor da FGV.

Dinamismo x Risco

Em um cenário otimista, o Marco Legal das Garantias de Empréstimos pode gerar um círculo virtuoso dentro do sistema financeiro, segundo o advogado José Medina. “Se temos um sistema de garantias que viabilize o alcance mais rápido do bem dado como garantia para o empréstimo pelo credor, em caso de inadimplência por parte do tomador (que se torna devedor), isso traz uma percepção de mais segurança, ou menos risco e, consequentemente, os juros cobrados na operação tendem a ser menores. Além disso, o cenário aumentaria a concorrência pelo tomador de crédito entre as instituições, aumentando as variações de produtos oferecidos”, diz.

Ainda assim, Medina pontua que o sistema financeiro tradicionalmente se pauta em percepções, projeções e expectativas, e que a legislação não define ações visando a diminuição do spread bancário ou aumento de linhas de crédito. “Essas são as expectativas dentro do cenário ideal a partir das mudanças que o marco traria. As ações efetivas ficam a critério dos agentes do sistema financeiro, ou seja, dos bancos”, complementa.

Para além das promessas que o Marco Legal das Garantias deixa no ar, a inexistência de preocupação com o nível de inadimplência do tomador no projeto de lei preocupa o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. “O texto todo é pautado no poder de consignação e não na capacidade de pagamento – em um país com índices de inadimplência recordes. Já vemos casos graves de pessoas que não conseguem honrar empréstimos em que deram imóveis de garantia e que contraem outros empréstimos, muito mais caros, para não perderem o imóvel”, conta a coordenadora de serviços financeiros da entidade, Ione Amorim.

Segundo dados do Banco Central, no crédito livre – que abarca financiamentos e empréstimos com taxas estipuladas pelos bancos – a inadimplência atingiu 4,9% em agosto, com ganho de 1 ponto percentual desde agosto de 2022. Dentro deste universo, no crédito livre às famílias, a inadimplência chega a 6,1% – superando os 5,6% de um ano antes. Os dados compõem o cenário de superendividamento no país: 47,8% das famílias endividadas com comprometimento de renda de 27,6%.

A Febraban admite o que o risco cresce em um mercado mais dinâmico, com maior acesso ao crédito – como no caso em que um tomador use o mesmo imóvel para mais de uma operação – mas defende que a inadimplência seja controlada de outras formas que não sejam a amarração do mercado. “Em sistemas mais dinâmicos, há mais risco. Mas há maneiras de mitigá-los, com inteligência e dados, na hora da análise de crédito”.

Na mesma linha, Aline Andrade, head da unidade de Home Equity da fintech Franq, defende que a possibilidade de expandir o acesso ao crédito não deve preceder a análise de crédito, que já é feita pelas instituições, e que vem sendo aprimorada com o Open Banking (compartilhamento de dados entre bancos). “Tem que haver planejamento financeiro por parte do tomador, para que o pagamento do empréstimo seja crível com sua realidade”, completa.

Maria Luiza Dourado

Repórter de Finanças do InfoMoney. É formada pela Cásper Líbero e possui especialização em Economia pela Fipe - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas.