Guerra na Ucrânia expõe dependência brasileira por fertilizantes importados

"Precisamos fomentar a produção aqui dentro", diz Ricardo Tortorella, diretor executivo da Anda

Estadão Conteúdo

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Em 30 anos, o Brasil passou de uma safra de 100 milhões para quase 300 milhões de toneladas de grãos. Consolidou-se como um dos mais importantes produtores e exportadores agrícolas globais, uma potência em segmentos como soja, milho, café, cana-de-açúcar e laranja, entre outras culturas. Mas a capacidade de produção de fertilizantes não acompanhou esse salto. Na verdade, até recuou – em 2017, o País produzia 8,2 milhões de toneladas, número que caiu para 6,5 milhões em 2020.

Para sustentar o avanço das lavouras, foi necessário ampliar a importação dos fertilizantes. Segundo dados da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda), em 2020 o mercado brasileiro consumiu 40,6 milhões de toneladas. Desses 32,9 milhões (81%) vieram de fora. Uma boa parte disso, da Rússia. E, com o mercado russo fechado por causa das sanções provocadas pela guerra na Ucrânia, o Brasil tem um problema de razoáveis proporções para ser resolvido.

“Precisamos fomentar a produção aqui dentro”, diz Ricardo Tortorella, diretor executivo da Anda. “O governo está anunciando um plano nacional de fertilizantes, pois temos o insumo debaixo da terra, mas precisa de muita coisa para colocar esse produto no mercado, como logística, regras e licenças. O plano é oportuno, mas foi desenhado para os próximos 30 anos (leia mais abaixo). Não é a solução para o problema que temos agora.”

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Segundo ele, o Brasil vai precisar de 10 milhões de toneladas de cloreto de potássio para a próxima safra, e a expectativa é de que 3 milhões venham da Rússia. “Se não vierem, vamos ter de comprar de outros países, como o Canadá. O problema é que o mundo inteiro se abastece na Rússia, e muitos países vão procurar alternativas, não só o Brasil.”

Segundo dados da associação, o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes, atrás da China, da Índia e dos Estados Unidos, mas é o maior importador mundial desses insumos – basicamente nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K). Isso se explica pela composição dos solos brasileiros, pobre em nutrientes, devido à sua característica tropical, principalmente na região do cerrado, onde se concentra a maior produção de grãos.

RISCOS. Para a safra atual, por conta dos preços, que já vinham altos antes mesmo de começar o conflito no Leste Europeu, os produtores não anteciparam as compras de fertilizantes no volume de anos anteriores. “O que os agentes do mercado comentam é que a antecipação foi em torno de 30% este ano”, disse Tortorella. “No ano passado, na mesma época, estava acima disso. E a guerra pode impor riscos para a próxima safra. Se o conflito acabar de hoje para amanhã, os fluxos de insumos da Rússia para o Brasil vão continuar. Se demorar até três meses, temos de buscar soluções que ajudem nossa safra a manter seu ritmo, que tem sido crescente.”

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Para o especialista em questões globais do agronegócio e sustentabilidade, Marcos Jank, faltou investimento nas últimas décadas na produção nacional de fertilizantes. “Houve muitos projetos que não foram aprovados por falta de licenciamento. Nos tornamos o maior importador mundial.”

Leia mais: Possível escassez de fertilizantes sem Rússia e Belarus é monitorada de perto pelo mercado agro nacional

Ele lembrou que o avanço na produtividade de grãos do País implicou maior consumo de adubos. “Passamos a fazer duas safras anuais, a ter mais produtividade sem aumento de área, a fazer a integração pecuária-agricultura, tudo com um consumo maior de fertilizantes. Só que não houve política para aumentar a produção interna e, sem esse incentivo, ficava mais caro produzir aqui. Era mais fácil importar, e o Brasil passou a recorrer ao mercado externo, gerando a dependência que temos hoje.”

Jank não vê possibilidade de reversão desse quadro em um prazo curto. “O pessoal está falando que agora precisa ter o plano nacional de fertilizantes, mas isso não vai resolver o problema imediato”, disse. “Nessa altura, a melhor solução é diversificar a importação para não depender de um mercado só, como acontece com a dependência da Rússia.”

Plano do governo deve sair neste mês

O governo prepara o lançamento do Plano Nacional de Fertilizantes, que deve ser apresentado por meio de um decreto presidencial até o fim de março. O principal objetivo do programa é diminuir a dependência externa de adubos do País, atualmente em 85%, por meio da ampliação da produção local.

O texto já vinha sendo preparado internamente pelo governo e ganhou força depois da guerra da Ucrânia, que traz incerteza sobre o fornecimento dos produtos para o País.

A Rússia é um dos maiores produtores de fertilizantes. É o segundo maior exportador mundial de nitrogenados e terceiro maior exportador global de fosfatados e potássicos, contribuindo com 16% dos adubos exportados no mundo. Os russos são os principais fornecedores de adubo ao Brasil, com cerca de 20% do volume utilizado anualmente.

“O decreto vai apresentar as bases e diretrizes do plano”, disse ao Estadão/Broadcast o diretor de Programas da Secretaria Executiva do Ministério da Agricultura, Luis Eduardo Rangel. Ele representa a pasta da Agricultura no Grupo de Trabalho Interministerial que discute o tema no governo.

REDUÇÃO. Segundo Rangel, o plano está pronto do ponto de vista técnico e já foi apresentado informalmente ao presidente Jair Bolsonaro. O projeto está sendo desenvolvido desde o fim de 2020, em parceria com outros órgãos do governo. A meta é reduzir a necessidade de importação de adubos dos atuais 85% para cerca de 60% em 30 anos e, consequentemente, a exposição do setor a oscilações externas.

O plano inclui objetivos e orientações de curto (5 anos) e médio prazos (10 anos) em relação à redução gradativa da dependência do País de fornecedores internacionais, de acordo com a necessidade de cada nutriente. Estão previstas revisões anuais para o plano. “As metas são muito sólidas”, avaliou.

O plano deve ser dividido em quatro grandes grupos de adubos: nitrogenados, potássicos, fósforo e cadeias emergentes (como adubos biológicos). Cada um deles conta com metas específicas no plano e também com um mapeamento da oferta nacional, mundial e do potencial brasileiro. “São metas específicas porque o grau de dependência varia e também o potencial de produção local, assim como o diagnóstico de cada cadeia”, disse.

Adubo orgânico pode ser saída para reduzir dependência da exportação

O produtor Paulo Montenegro Fachinni está substituindo o adubo químico pelo fertilizante orgânico composto em sua plantação de cana-de-açúcar, em Bocaina, no interior de São Paulo. Ele é de uma família que há mais de 120 anos cultiva cana e em 2016 aderiu ao uso do insumo, fabricado a partir da compostagem de lodos do tratamento biológico de esgotos e resíduos orgânicos agroindustriais.

“Comecei aplicando de 7,5 a 10 toneladas por hectare diretamente no sulco de plantio. Nessas operações, raramente faço complementação com fertilizantes minerais, mas, quando acho necessário, reduzo a aplicação do adubo mineral a 50% do recomendado”, disse.

O Brasil pode reduzir a dependência de adubos importados de países como a Rússia investindo mais na produção de fertilizantes orgânicos, produzidos a partir de subprodutos das atividades agrícolas, pecuária, agroindustrial e de saneamento urbano, ou seja, resíduos que normalmente são descartados. O adubo orgânico não substitui o uso do fertilizante químico, mas pode reduzir em até 50% sua aplicação e ainda melhora a produtividade da lavoura. O insumo natural facilita a absorção do fósforo pela planta, evitando que esse mineral se perca no solo e acabe contaminando os mananciais.

De acordo com o engenheiro agrônomo Fernando Carvalho Oliveira, da Tera Ambiental, especializada em reciclagem de efluentes e resíduos orgânicos, a produção de fertilizantes orgânicos no Brasil ainda está se organizando, mas tem grande potencial para crescer. Em 2020, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Tecnologia em Nutrição Vegetal (Abisolo), o setor faturou R$ 334 milhões, 44,5% de crescimento em relação a 2019. “Com base nesse faturamento, é possível estimar que a produção seja de 1,5 milhão de toneladas ao ano”, disse.

A tecnologia mais usada pelo setor é a compostagem termofílica (micro-organismos que gostam do calor). “A produção vem numa crescente no Brasil nos últimos cinco anos, devido à satisfatória evolução do marco regulatório que orienta o segmento. As unidades fabris atualmente instaladas estão buscando aumentar sua produção ao nível máximo e ainda deve ficar aquém da demanda”, disse. Segundo o especialista, os fertilizantes orgânicos não substituem os minerais, mas contribuem para seu aproveitamento no solo, reduzindo as taxas de aplicação com ganhos de produtividade.

PRODUÇÃO. É o que o agricultor Fachinni já verificou na prática. A partir do primeiro corte da cana, ele reduziu a adubação orgânica para 5 toneladas por hectare e a adubação mineral em 40% do recomendado. Em algumas áreas que já tiveram cinco anos de aplicações sucessivas do orgânico, a redução é ainda maior. “Com essa estratégia, aliada aos demais tratos culturais, tenho alcançado produtividade acima da média regional e entendo que, com a adubação orgânica, estou investindo na qualidade do solo de minha fazenda.”

Atualmente, o preço dos fertilizantes orgânicos varia entre R$ 200 a R$ 450 a tonelada, dependendo da distância da área agrícola. A tonelada de adubo químico já custa mais de R$ 2 mil, embora a quantidade aplicada por hectare seja menor.

BENEFÍCIOS. A capacidade dos fertilizantes orgânicos de auxiliar na absorção do fósforo pela planta representa outro ganho para o ambiente. Segundo a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), análises da água coletada no reservatório de Barra Bonita, no Rio Tietê, nos últimos cinco anos, revelaram a presença de fósforo em níveis que favorecem o crescimento de algas, prejudiciais à qualidade da água. Favorece também o crescimento de plantas aquáticas, a exemplo dos aguapés que se acumulam em barragens dos reservatórios.

Reportagem do Estadão na sexta-feira mostrou a presença de algas e aguapés cobrindo grandes trechos do Rio Tietê numa extensão de 300 quilômetros, desde Anhembi, mais próximo da capital, até o reservatório da hidrelétrica de Promissão, no centro-oeste paulista.

De acordo com a Cetesb, o fósforo das águas dos reservatórios tem origem na carga difusa gerada em bacias onde predomina o uso agrícola do solo, cujo manejo envolve o uso de fertilizantes e adubos fosfatados. A aplicação desses insumos em meses chuvosos facilita o transporte do material para o Tietê.

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