Como estão as finanças de El Salvador após a adoção do Bitcoin

Apesar de inovadora, a medida prejudicou a economia do pequeno país da América Central

Lucas Gabriel Marins

(Alex Peña/Getty Images)

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El Salvador adotou oficialmente o Bitcoin (BTC) como moeda de curso legal em setembro de 2021.

Nesse meio tempo, o presidente do país e idealizador da proposta, Nayib Bukele, também comprou e incluiu no tesouro nacional 1.801 unidades da criptomoeda (US$ 68,8 milhões, o equivalente a 2% das reservas da nação) e ventilou para o mercado que planeja emitir títulos públicos de US$ 1 bilhão lastreados no criptoativo.

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Com essas medidas ousadas e inéditas, o mandatário disse que queria atrair o interesse de investidores internacionais e dar assistência à população sem acesso aos serviços bancários. A realidade, pelo menos por enquanto, passou longe da expectativa do político, e ainda colocou em risco as finanças do país.

Desde que colocou a primeira criptomoeda do mundo no centro da economia, El Salvador recebeu forte apoio da indústria de criptomoedas, que vê como inevitável a adoção da moeda digital por países soberanos à medida em que rouba valor de mercado do ouro.

Em entrevista recente ao InfoMoney, o CEO da corretora Binance, Changpeng Zhao, disse que, daqui a 10 ou 20 anos, “veremos os benefícios de se adotar uma moeda muito mais forte”.

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Por outro lado, o país, que também tem o dólar como moeda oficial, foi criticado por pesos-pesados da economia global, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e viu seus bonds (títulos) e avaliações de risco desabarem.

Isso não seria um problema se o pequeno país com cerca de 6,5 milhões de habitantes fizesse parte de um mundo paralelo – como um metaverso privado – e não dependesse de recursos externos para se manter em pé e pagar as contas. Não é o caso.

Cenário

Os títulos de El Salvador com vencimento em 2023 perderam 23% de seu valor desde junho de 2021 (mês em que a Lei do Bitcoin foi proposta) e a nação luta com um risco de inadimplência de 35%. “Eles estão em uma espiral da morte”, disse o economista Steve Hanke, professor da Universidade John Hopkins, em um tuíte publicado na quinta-feira (27).

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Já a dívida externa de El Salvador está na casa dos US$ 24 bilhões, o que representa 89% do PIB, e deve chegar a 96% das riquezas até 2026, segundo o FMI, se nada for feito. O déficit fiscal projetado para 2021, de acordo com a organização, é de quase 6% do PIB, e de 5% para 2022.

A organização internacional pediu para El Salvador deixar de usar o BTC como moeda de curso legal, e citou os “grandes riscos associados ao uso do Bitcoin na estabilidade financeira”.

Segundo Isac Costa, consultor em regulação financeira e professor do Ibmec SP, El Salvador não é um país industrializado. Pelo contrário, falou, é uma nação periférica no cenário econômico mundial com uma realidade fiscal frágil – ou seja, com elevados déficits do setor público e elevados graus de endividamento.

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“Então quando você compra e tem no caixa do seu tesouro nacional um ativo extremamente volátil, como o Bitcoin, você faz com que uma nação que já não tem uma realidade fiscal boa fique ainda mais frágil”, disse.

“O Bitcoin está sofrendo uma queda vertiginosa, e desde sua máxima de novembro perdeu metade de seu valor. Como as primeiras compras de BTC de El Salvador foram em períodos de alta, o Estado registrou perdas no balanço patrimonial das contas públicas e ficou mais pobre”, completou.

De setembro até janeiro, Bukele investiu quase US$ 90 milhões do caixa em 1801 BTC. Conforme a cotação desta sexta-feira (28), esse montante vale hoje apenas US$ 65 milhões. Ou seja, em cinco meses o prejuízo foi de 27%.

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O problema dos títulos lastreados em Bitcoin

Costa ainda falou que a emissão de títulos lastreados na criptomoeda, como sugerido por Bukele, também é arriscada e pode afetar a pequena nação. De acordo com ele, quando alguém emite dívidas lastreadas no valor do Bitcoin, e precisa pagar obrigações no futuro, pode ter que lidar com movimentos de preços contrários.

“Vamos supor que o governo de El Salvador prometa pagar uma determinada valorização do Bitcoin, e não faça a gestão adequada das finanças públicas, e o preço da criptomoeda suba muito, a chance de ele não honrar o pagamento daqueles títulos é muito elevado”, falou.

Risco-país

Todo esse cenário incerto reverberou nos indicadores de risco de calote do país. O Credit Default Swap (CDS) – instrumento para avaliar a capacidade de uma nação pagar suas dívidas, também conhecido como risco-país – de cinco anos de El Salvador quadriplicou desde setembro, batendo em 1945.29 na semana passada, o segundo maior da América Latina, conforme dados da Bloomberg compartilhados com o CoinDesk.

O CDS é um título do mercado financeiro que funciona como um seguro para evitar a inadimplência; quanto maior, maiores as chances de o devedor não conseguir honrar os pagamentos. O CDS do Brasil, para efeito de comparação, é 229.9, e o dos Estados Unidos é 13.56. O da Argentina, a nação mais “arriscada” da região, é de 3587.48.

Marcelo Botelho da Costa Moraes, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP), disse, no entanto, que esse aumento do risco-país não deve ser creditado apenas ao Bitcoin, apesar de os títulos atrelados à criptomoeda terem assustado o mercado:

“No geral, esse crescimento é decorrente da piora da estrutura economia do país. Quando o governo corre risco de não pagar, é porque está arrecadando mal e gastando muito, e passa dificuldade porque precisa pegar dinheiro emprestado. Portanto, esse aumento do risco-pais é mais reflexo desse problema econômico de gestão do que o fato de o Bitcoin ser uma moeda oficial ou não”.

Críticas e adesão da população

Figuras do mercado financeiro que nunca foram com a “cara” da criação de Satoshi Nakamoto aproveitam a baixa do mercado para criticar a política do mandatário do país América Latina.

“O experimento de El Salvador com Bitcoin é um desastre absoluto: quem detinha o BTC perdeu 50%, o spread do país está no teto e o (título) soberano está perto da falência. Deviam fazer o impeachment desse palhaço @nayibbukele, um presidente criminoso que está levando o país à falência”, escreveu Nouriel Roubini, um dos principais críticos do BTC, no domingo (23).

No início deste mês, o economista Peter Schiff, defensor do ouro e adversário feroz do BTC, disse que Bukele está destruindo o país.

“Graças a @nayibbukele a nação pobre de #ElSalvador agora está ainda mais pobre depois de gastar milhões em #Bitcoin. El Salvador ocupa a 94ª posição no Índice de Liberdade Econômica. O jovem presidente de El Salvador deve dar liberdade ao seu povo, não a participação forçada em um esquema de pirâmide!”.

A população também não conseguiu se acostumar com a criptomoeda. Segundo pesquisa divulgada em janeiro pelo Instituto Universitário de Opinião Pública (IUOP), da Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, de El Salvador, 74% dos cidadãos salvadorenhos nunca usaram o Bitcoin.

Moraes, da FEA-RP/USP, acredita que o BTC não teve adesão em massa porque a tecnologia ainda é um assunto complexo, em especial para as pessoas sem recursos. “A população mais pobre e mais carente tem maior dificuldade em acessar exchanges, ter computador e celular. Além disso, criptomoeda não é um conhecimento tão trivial que o indivíduo aprende e já sai por ai operando e utilizando”, falou.

Mais BTC e meme

Apesar da baixa adesão da população e das críticas, o presidente Nayib Bukele continua firme em sua posição pró-Bitcoin, e inclusive comprou mais criptomoedas nesse momento de baixa.

Já em resposta ao FMI, que pediu para o país tirar o status de moeda de curso legal do Bitcoin, o político, em vez de publicar um comunicado oficial ou fazer algum pronunciamento sério, preferiu tweetar um meme em seu perfil nesta semana.

No post, ele inseriu uma cena da série Simpsons, com o ícone do Bitcoin e a seguinte frase: “Eu vejo você, FMI. Isso é muito simpático”.

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Lucas Gabriel Marins

Jornalista colaborador do InfoMoney