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Entenda como a reforma tributária pode mudar a rotina das startups

Novas alíquotas de IRPJ, tributação sobre a distribuição de lucros e priorização de valor de mercado estão entre as mudanças propostas pelo governo

Mariana Fonseca

Ilustração mostra oscilação no preço da energia elétrica

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SÃO PAULO – A segunda fase da reforma tributária apresentada pelo Governo Federal trouxe diversas mudanças na tributação. Os pontos mais discutidos foram a ampliação da tabela de isenção no Imposto de Renda sobre a Pessoa Física (IRPF), a taxação sobre os dividendos nas companhias abertas e o fim da isenção sobre fundos imobiliários (FIIs).

Porém, outros itens menos comentados devem afetar de maneira significativa a operação das empresas e de seus investidores. Algumas dessas mudanças impactam mais as startups, mesmo que o texto da reforma não faça menção especial aos negócios escaláveis, inovadores e tecnológicos em estágio inicial.

A reforma tributária ainda deve ser discutida e passar por adaptações no Congresso – o próprio governo já está avaliando algumas mudanças. Como preparação para as mudanças atualmente propostas, o InfoMoney conversou com especialistas em direito, contabilidade e tributação. Eles apontaram como a reforma tributária pode mudar o funcionamento das startups em curto e longo prazo. Veja o resumo abaixo:

Novas alíquotas de IRPJ

As empresas nos regimes de Lucro Real ou Lucro Presumido pagam hoje uma alíquota de 15% do Imposto de Renda sobre a Pessoa Jurídica (IRPJ), mais 10% sobre o que exceder R$ 20 mil por mês. Também existe a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que parte de 9%. Somados, esses tributos têm uma incidência de 34% dos ganhos.

A reforma tributária propõe que o IRPJ caia para 12,5% em 2022, e para 10% em 2023. A cobrança de 10% sobre os ganhos que ultrapassarem R$ 20 mil mensais continua, assim como a CSLL. Assim, os tributos terão incidência total de 31,5% em 2022 e de 29% em 2023.

Mas Thiago Medaglia, sócio na área tributária do escritório de advocacia TozziniFreire e membro do Grupo de Tributação da Associação Brasileira de Venture Capital e Private Equity (ABVCAP), ressalta que a nova taxação sobre os dividendos leva a um aumento na carga tributária final sobre os ganhos das empresas.

Imagine que uma empresa sempre lucre antes de impostos R$ 100 milhões por ano. Em 2021, sobrariam R$ 66 milhões (tributos de 34%, sem taxação de dividendos). Em 2022, os ganhos seriam maiores, de R$ 68,5 milhões, considerando a redução dos tributos para 31,5%. Mas então haveria a taxação de 20% sobre os dividendos, levando o valor para R$ 54,8 milhões. A tributação final ficou em 45,2%.

Uma situação parecida acontece em 2023. A empresa teria ganhos de R$ 71 milhões considerando tributos reduzidos para 29%, mas a taxação de 20% sobre os dividendos leva a um lucro de R$ 56,8 milhões. É uma tributação final de 43,2%.

“É um aumento efetivo de carga tributária de quase 33% em 2022 e de 27% em 2023”, diz o sócio da TozziniFreire.

Distribuição de lucros será tributada

A reforma tributária propõe a extinção dos Juros sobre o Capital Próprio (JCP) e a tributação de dividendos que ultrapassem R$ 20 mil mensais. Especificamente para startups, as mudanças afetam a distribuição dos lucros entre sócios. Isso porque é comum que empreendedores tenham um pró-labore modesto e boa parte da remuneração seja atrelada aos ganhos reais do negócio.

“O JCP era uma prática legal de remuneração de sócios que, de forma indireta, reduzia a carga tributária de uma startup optante do regime tributário do lucro real”, explica Machado. Uma situação similar acontece com os dividendos, lucros pagos por sociedades anônimas aos acionistas.

“Se existe uma tributação sobre essa distribuição de ganhos, as pessoas ou receberão menos ou tirarão mais dinheiro de forma a receber o mesmo valor”, explica Medaglia. “Tirando mais dinheiro da empresa, sobra menos para reinvestir no crescimento do negócio e da economia. Mais valor é retirado da sociedade e passado para o governo.”

Paulo Guedes, ministro da Economia, defendeu a alteração com o argumento de que o Brasil não segue os padrões da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O TozziniFreire compilou dados de tributação sobre as empresas em países da OCDE, que mostraram que o Brasil estaria de fato seguindo a média da organização ao taxar dividendos em 20%. Porém, tem uma tributação acima da média do Imposto de Renda sobre a Pessoa Jurídica (IRPJ) mesmo considerando a taxa anterior à proposta de reforma tributária.

Tributação de pagamentos feitos em ações

Pagamentos realizados mediante entrega de ações, incluindo algumas modalidades de stock options, dão o direito de obter ações de uma startup de forma proporcional ao seu tempo nela. Anteriormente, esses pagamentos eram dedutíveis pelas empresas.

Agora, só poderão ser deduzidos quando forem feitos a funcionários – fundadores e executivos com status de sócio poderão ser tributados. “A startup não deve mais ter benefício por remunerar seus executivos com bônus na forma de ações. Sendo assim, os contratos futuros devem passar por reformulações”, diz Machado. “Isso afeta a manutenção de talentos pelas startups”, completa Douglas de Oliveira, especialista em direito empresarial e sócio do escritório Oliveira, Vale, Securato & Abdul Ahad Advogados.

Tributação considerando valor de mercado

O ágio representa a diferença entre o patrimônio contábil de uma sociedade e o que é efetivamente pago em um evento de liquidez. Ou seja, é a distância entre o valor que consta nos balanços e o valor de mercado pelo qual a empresa é negociada (goodwill).

Caso determinadas condições sejam atendidas, essa diferença pode ser amortizada na contabilidade e reduzir o lucro tributável. Na proposta da reforma tributária, embora a amortização contábil continue existindo, a diferença não poderá mais ser usada para reduzir tributos incidentes sobre a renda da pessoa jurídica.

Medaglia afirma que a alteração das regras de ágio terá grande impacto especialmente nas startups. “Para quem compra a empresa, ágio é uma hipótese de retorno – ainda que em forma de futura redução de carga tributária. Assim, é muitas vezes considerado no momento da quantificação de um investimento. O projeto de reforma, ao simultaneamente vedar a amortização fiscal do ágio e restringir sua utilização no cálculo do ganho de uma operação subsequente, poderá não só influenciar o valor dos negócios, como o próprio apetite dos investidores.”

Medaglia dá como exemplo uma empresa que adquire uma startup que vale contabilmente R$ 20 milhões, mas seu valor de mercado é avaliado em R$ 100 milhões. “Temos até R$ 80 milhões de ágio. Antes, cumpridas as condições, a empresa poderia ir amortizando essa diferença na sua contabilidade, reduzindo o valor do IRPJ/CSLL ao longo dos anos. Sem essa possibilidade, corre o risco de ‘perder’ parcela do valor investido. Então, o potencial adquirente pode estar menos propenso a investir o valor originalmente negociado de R$ 100 milhões”, diz o advogado.

Ângelo Machado, contador parceiro da Conta Azul e CEO da assessoria contábil especializada em startups Comece com o Pé Direito, explica que a mudança do valor contábil para o valor de mercado gerará discussões sobre o real valor das empresas.

“Temos vários modelos de negócios que possuem intangíveis, como invenções. Essa mudança vai gerar grandes discussões quanto à real forma de aferir o valor de mercado, e isso poderá expor algumas startups a riscos tributários, uma vez que o Fisco poderá contestar tais avaliações de bens e direitos”, alerta Angelo.

Duas recomendações técnicas do contador: primeiro, destacar o item analisado em nota explicativa junto às demonstrações contábeis, a fim de dar máxima transparência aos interessados pela sociedade; e manter por ao menos cinco anos fiscais todo o histórico dos materiais técnicos usados na avaliação do valor de mercado do item.

Tributação de bens e direitos de ex-sócios

Segundo a reforma tributária, os bens e direitos da pessoa jurídica “entregues ao titular ou ao sócio ou acionista a título de devolução de sua participação no capital social serão avaliados pelo valor de mercado, exceto se o valor de mercado for inferior ao valor contábil. Na hipótese de a devolução ser realizada pelo valor de mercado, a diferença a maior em relação ao valor contábil dos bens ou direitos entregues será considerada ganho de capital, que será computado na determinação da base de cálculo do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza das Pessoas Jurídicas e da CSLL pela pessoa jurídica que estiver devolvendo capital.”

Um exemplo prático: se o sócio de uma empresa fornecer um imóvel como investimento ao formar a sociedade, ao sair da empresa deverá considerar o valor de mercado dessa propriedade.

“Entendeu-se que a diferença entre valor contábil e valor de mercado é uma receita para o sócio, e ele deverá pagar imposto sobre essa receita. Isso vale para qualquer empresa, mas especificamente nas startups existem cláusulas de saída dos fundadores e dos ativos que eles possuem, então pode ter um reflexo tributário”, explica Medaglia.

“Quando ocorrer uma devolução de participação no capital social envolvendo quaisquer bens ou direitos da pessoa jurídica, as partes precisarão levar em consideração o reflexo tributário dessa prática. O efeito fiscal vai afetar diretamente o custo dessa operação, além do resultado do negócio”, concorda Angelo.

A alteração vale apenas para a devolução de bens quando um sócio se retira total ou parcialmente da empresa. A regra é outra para a venda da participação acionária, por exemplo.

Tributação de ativos no exterior

Outros pontos da reforma tributária visam evitar a evasão fiscal de alguns contribuintes. Os artigos 17 e 21 falam respectivamente de transferência de patrimônio ao exterior e de venda do patrimônio brasileiro por meio de pessoa jurídica no exterior (“alienação indireta”).

Muitas startups montam estruturas fora do país, especialmente quando fecham um investimento estrangeiro. “A sociedade situada no exterior é conhecida popularmente como offshore company. São entidades em domicílio diverso dos componentes do quadro societário. Na maior parte das vezes, constitui-se uma offshore em regiões vistas como paraísos fiscais, nas quais a tributação é mais favorável. Para tentar alcançar essas operações, a reforma tributária prevê incidência de tributos sobre a transferência de patrimônio à entidade que estiver situada no exterior”, explica Felipe Dias Chiaparini, advogado na área tributária do escritório Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados (NELM).

A transferência de ativos agora deverá ter o valor de mercado como base, e não o valor contábil. A diferença será considerada um ganho tributável do contribuinte brasileiro. “Continua sendo possível, mas ficou mais caro. Então, uma eventual alavancagem da startup com investimento estrangeiro será prejudicada”, diz Medaglia. “Embora exista de fato uma prática abusiva de planejamento tributário internacional, a proposta de reforma se mostra muito aberta, ampliando demasiadamente o rol de transações sujeitas à tributação brasileira. Por mais que seja legítimo e salutar a definição de regras conta abusos mais sofisticadas, o projeto de reforma parece um tiro de canhão para matar uma formiga. A exceção deve ser tratada como exceção, e não como regra”, analisa o sócio da TozziniFreire.

Já a alienação indireta é definida e tributada caso o valor de mercado dos ativos localizados no país for maior do que 50% ou mais do que o valor do que foi alienado ou caso o valor do ativo for superior a US$ 100 milhões, sendo transferidos 10% ou mais da entidade. Veja mais sobre a tributação de ativos no exterior a partir da reforma.

Efeito em longo prazo: fuga de empreendedores e investidores

Para os especialistas consultados pelo InfoMoney, a reforma tributária nos moldes atuais pode desincentivar a criação de novos negócios. “Mesmo com advento do Marco Legal das Startups ainda há muita dúvida e insegurança em relação às práticas tributárias, contábeis e até trabalhistas quando o assunto envolve inovação, mudanças e novas práticas comerciais”, diz Machado.

“Não é apenas sobre pagar mais impostos, mas sobre a incerteza tributária. Quem investe startup aceita risco, mas riscos referentes ao negócio e não riscos sistêmicos. O jovem que tenha uma boa ideia e queira montar uma startup pode decidir arrumar um emprego, porque está mais difícil obter ganhos líquidos”, concorda Medaglia. “O governo atua como âncora, e não como motor de crescimento. A reforma tributária não foi feita para estimular empreendedorismo e inovação, mas para arrecadar mais para ‘financiar’ um aumento que já deveria ter sido feito há tempos na isenção do Imposto de Renda sobre a Pessoa Física. E a startup é o elo mais sensível do comércio, porque são ideias que dependem muito de capital e tempo.”

Os investidores também podem passar a procurar investimentos mais atraentes, sob o ponto de vista tributário. “O retorno do investimento em participações societárias serão impactados e merecerão uma avaliação de custo-benefício. As startups vão precisar demonstrar vantagens para aproximar investidores dispostos a pagar 20% de imposto quando das retiradas de lucros e/ou dividendos, ou até mesmo para diferir esses pagamentos com propostas de reinvestimentos dos valores mantidos em caixa”, diz Machado.

“A lógica de muitas startups é que um grupo de pessoas tem uma ideia de negócio e financiam sua execução com aportes de terceiros. Já o investidor sempre pensa em múltiplos de retorno, e escolhe uma startup porque o retorno é equivalente ao risco. Se vem uma regra que come uma parcela desse retorno, como a tributação sobre a distribuição de lucros, esse investimento se torna menos atraente e existe um desestímulo a investir nas startups”, concorda Medaglia.

O interesse dos investidores estrangeiros será especialmente afetado, na visão do sócio na área tributária do TozziniFreire. “Olhando para as economias da OCDE, a razão entre investimento externo recebido e realizado é muito diferente da relação do Brasil. O Brasil importa investimento, e por isso tem que ser atrativo ao investidor. Somos um país mais inseguro e instável do que outros, com leis em constante mudança. Não faz sentido agora colocar uma regra que faça investidores pagarem ainda mais impostos.”

Mariana Fonseca

Subeditora do InfoMoney, escreve e edita matérias sobre empreendedorismo, gestão e inovação. Coapresentadora do podcast e dos vídeos da marca Do Zero Ao Topo.