Publicidade
No meu artigo anterior, escrevi que os funcionários públicos não podem ser apontados como os únicos vilões do nosso sistema previdenciário, que é repleto de erros e injustiças.
Mas isso não quer dizer que o regime previdência dos servidores deva continuar como está. É necessário fazer mudanças, e elas são óbvias quando se faz uma análise mais detalhada sobre o tema. Apenas não são defendidas por quem quer manter uma situação de privilégio, em detrimento dos demais.
Vale lembrar que há desigualdades mesmo entre os funcionários públicos, e a reforma da previdência enviada pelo governo ao Congresso (PEC 06/2019) trata disso.
Continua depois da publicidade
Vamos aos fatos. A PEC 06/2019 propõe basicamente o seguinte em relação aos servidores:
i. Alíquota progressiva que variará entre 7,5% e 22%. A cobrança seguirá a sistemática do IR (alíquota marginal), fazendo com as alíquotas efetivas sejam crescentes atingindo o máximo de 17,79% para salários de R$ 39.000 e de aproximadamente 18% para remunerações superiores a esse valor;
ii. Fixação de idade mínima de 64 anos para homens e 62 para mulheres, com tempo de contribuição mínimo de 35 anos para homens e 30 para mulheres. A transição será rápida: em 2028 se encerrará para homens e em 2033, para mulheres;
Continua depois da publicidade
iii. Para manter a integralidade, quem ingressou no serviço público até 31/12/2003 deverá cumprir a regra definitiva (idade mínima final e tempo de contribuição). Para quem ingressou a partir desta data, será aplicado o mesmo critério do RGPS;
iv. Policiais civis e agentes penitenciários e socioeducativos terão uma idade mínima de 55 anos para homens e mulheres e 30/25 aos de contribuição;
v. Professores de ambos os sexos deverão ter 60 anos de idade (homens e mulheres) e 30 anos de contribuição para se aposentar;
Continua depois da publicidade
vi. Policiais militares e bombeiros serão regidos por legislação federal e semelhante à das Forças Armadas;
vii. Para os detentores de cargos eletivos, haverá um pedágio para os atuais eleitos e regras o RGPS para os futuros.
A PEC também dedica especial atenção aos regimes próprios dos entes subnacionais (estados e municípios) ao estabelecer que:
Continua depois da publicidade
a. Todas as novas regras valem para estados, município e distrito federal;
b. Na ocorrência de déficit atuarial, deverão elevar alíquotas para no mínimo 14%;
c. Há limitações de incorporações de gratificações aos benefícios previdenciários;
Continua depois da publicidade
d. Existe a obrigatoriedade de, no prazo de 2 anos, instituir a previdência complementar.
Trata-se de um conjunto de medidas que atingirão o âmago da crise fiscal decorrente da previdência dos servidores públicos. Mas a PEC 006/2019 não para por aí. Ela autoriza a instituição de alíquotas progressivas e a criação adicional de alíquotas extraordinárias para equacionamento do déficit. Como o acerto e a pertinência das medidas iniciais são evidentes, neste artigo me deterei sobre os dois últimos aspectos.
– Alíquota progressiva: a PEC define que a alíquota-base de contribuição será de 14%, mas variará de forma cumulativa e marginal segundo faixas de remuneração do servidor. Assim, para a parcela até 1 SM, incidirá a alíquota de 7,5%; na parcela acima desse valor até R$ 2 mil, incidirá a alíquota de 9% e assim progressivamente, até o limite de 22% para a parcela que exceder R$ 39 mil.
A questão importante aqui é: faz sentido haver alíquotas previdenciárias progressivas? E a resposta óbvia a isso é que sim, faz todo sentido. Tomemos dois casos de servidores contratados antes de 2003 – portanto submetidos às “velhas regras’ – e vamos admitir que nenhuma alteração proposta na PEC 006/2019 esteja em vigor, exceto a alíquota progressiva. Por simplicidade, vamos admitir que o primeiro servidor tenha remuneração constante de R$ 5 mil ao longo de todos os 35 anos de contribuição e que se aposente aos 60 anos. O segundo tem as mesmas condições, mas sua remuneração é R$ 20 mil.
Nas regras atuais o primeiro servidor terá feito contribuições – considerada aqui a parcela do empregador – no montante de R$ R$ 750 mil e deverá receber de aposentadoria o montante de R$ 1,330 milhão, abrindo um passivo de R$ 579 mil. Com a alíquota progressiva, o passivo será reduzido para R$ 572 mil, o que equivale a um pequena redução de apenas 2%. Já o segundo servidor acumulará contribuições no valor de R$ 3,403 milhões e deverá receber R$ 5,320 milhões, abrindo um passivo de R$ 1,916 milhão, nas regras atuais. Com a alíquota progressiva, seu passivo cairá para R$ 1,377 milhão, o que equivale a uma redução de 28%.
Em síntese, remunerações mais elevadas abrem passivos muito elevados e a alíquota progressiva faz com que, quanto maior o passivo, maior sua redução. Medida socialmente justa, porém, como se vê, insuficiente para equilibrar o sistema. As demais regras propostas na PEC se encarregarão de reduzir ainda mais esse passivo, mas não o eliminarão.
– Alíquota extraordinária: a PEC define que os entes poderão criar uma alíquota extraordinária visando equacionar o passivo atuarial de seu regime próprio. No texto da PEC fica explicito que a alíquota extraordinária incidirá sobre aposentadorias e pensões, ficando isento o primeiro salário mínimo. O Ente poderá estabelecer alíquota extraordinária progressiva, de modo a penalizar mais intensamente as aposentadorias e pensões de valores mais elevados.
Para que o leitor tenha ideia precisa da medida proposta é necessária alguma explicação: na legislação atual, a contribuição previdenciária do servidor aposentado ou pensionista incide apenas na parcela que exceder o teto do RGPS. Assim, por exemplo, se um servidor aposentado ganha até R$ 5.839,45, ele nada contribui. Se outro ganha R$ 10 mil, somente será aplicada a contribuição no valor de R$ 4.160,55 (10.000 – 5839,45 = 4.160,55). Considerando a alíquota atual da União (11%), isso significa, no exemplo, uma alíquota efetiva de 4,57%. E o servidor ativo que ganha os mesmos R$ 5.839,45 ou R$ 10 mil? Em ambos os casos contribui com 11% sobre a totalidade do vencimento, ou seja, 11%. Essa é sua alíquota efetiva.
Como informado anteriormente, são justamente os atuais aposentados e pensionistas e os ativos que entraram antes de 2003 que têm as regras previdenciárias mais benevolentes e que, consequentemente, abrem o maior passivo previdenciário dos regimes próprios. Aqueles que entraram depois de 2003 não têm integralidade, nem paridade. E aqueles que entraram depois de 2013 têm garantido apenas o teto do RGPS.
Equilibrar o sistema mantendo essa disparidade contributiva, além de ser injusto, implicaria em alíquotas superlativas para os mais jovens, justamente aqueles que abrem menor passivo! Se esses, com a reforma, terão que trabalhar mais tempo, terão alíquotas progressivas e valores de aposentadoria e pensão limitados, nada mais correto do que dividir o esforço de equilíbrio entre as várias gerações, estabelecendo alíquotas extraordinárias para aqueles que desfrutam de regras muito mais generosas.
Enganam-se aqueles que consideram que essa regra básica de justiça terá vida fácil no Congresso. São justamente os grupos de elite do setor público os mais diretamente afetados por essas duas medidas. São eles também que dispõem de capacidade argumentativa e de mobilização junto aos parlamentares para “mostrar a injustiça” das medidas, a “violação dos direitos adquiridos”, a “inconstitucionalidade” da proposta e mesmo o “caráter confiscatório” da alíquota progressiva e da alíquota extraordinária. Esquecem ou omitem, porém, que a contrapartida de seu privilegio é a sobrecarga tributária dos mais pobres. É a transferência líquida de recursos de pobres para ricos.
Quanto a isso faço um pequeno relato da verdadeira batalha jurídica que o estado do Rio Grande do Sul enfrentou quando, diante de um quadro fiscal já muito abalado, aprovou lei estadual que elevava a contribuição dos servidores públicos de 11% para 14%.
“[…] O Tribunal de Justiça daquele estado acatou Ação Direta de Inconstitucionalidade do reajuste da alíquota dos servidores para 14%, que foi proposta pelo procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Eduardo de Lima Veiga, que era o chefe do Ministério Público. Originalmente, a alegação de inconstitucionalidade foi provocada pela União Gaúcha em Defesa da Previdência Social e Pública, presidida pelo também presidente da Associação dos Juízes do RS (Ajuris), Giovani Pio Dresch. A alegação seria de que o aumento configuraria confisco, além da progressividade não ser autorizada pela constituição. Também foi alegado que não havia cálculo atuarial que justificasse a necessidade da medida.”
No STF, o Ministro Joaquim Barbosa revogou a liminar concedida pelo TJ/RS, autorizando a cobrança da contribuição de 14%. Em seu voto, após indicar analisar e discorrer sobre a matéria, conclui:
“[…] Se o estado-requerente não puder reduzir o déficit do RPPS com a solidariedade dos servidores públicos, esses valores serão cobrados de toda a sociedade.”