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Brasil pode ter, finalmente, o básico em saneamento

Com um marco regulatório que obriga empresas a investir, o país pode enfim sonhar em deixar de jogar esgoto em suas praias e rios, fazendo jus às suas belezas naturais
Por  Felippe Hermes -
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Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

“Saneamento Básico” é um daqueles filmes em que a comédia que dá nome ao gênero se estende para além do próprio roteiro.

Com Wagner Moura, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e Fernanda Torres, o filme retrata a história de uma vila na Serra Gaúcha que busca realizar uma obra de saneamento. O problema? A prefeitura não possui recursos para a obra, mas possui uma verba do governo federal para produzir um filme de ficção.

Você poderia dizer que essa situação esdrúxula em si constitui algo melhor do que as boas piadas do filme, mas como gaúcho não deixo de notar outra ironia: o filme é uma produção da “Casa de Cinema de Porto Alegre”, uma respeitada instituição da segunda capital com maior renda do país, mas onde esgoto tratado, o tal “saneamento básico”, é uma realidade para menos da metade da população.

Caso você esteja curioso, a capital com maior rendimento no país, de acordo com os dados do Imposto de Renda, é Florianópolis, que também possui menos da metade do seu esgoto tratado.

Há casos de exceção, claro. Na própria região Sul, temos Curitiba com 99% de cobertura de esgoto, contra 64% de Floripa, e 94% dele tratado, contra 48% da mesma Florianópolis.

Fato é que, honrosas exceções, saneamento é um problema que se estende de Norte a Sul do Brasil.

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Ao menos 49% dos brasileiros não possuem acesso à coleta de esgoto, e, do restante, 54% não possui esgoto tratado.

Poderia ser uma questão óbvia. Afinal, como tenho certeza de que você já ouviu por aí, de cada R$ 1 investido na área retornam para a sociedade R$ 4 em benefícios como saúde, produtividade no trabalho e assim por diante. É, de longe, um dos setores em que o investimento apresenta maior ganho social.

Ainda assim, patinamos em investimentos em uma área tão crucial. As consequências desse descaso são as mais diversas.

Um estudo da ONG Trata Brasil aponta um ganho médio de até 4,4% na renda do trabalhador com a universalização do saneamento.

Na prática, estamos falando de algo como R$ 35 a mais em renda mensal para cada trabalhador em São Paulo, ou até R$ 113 no Amapá. Na soma do país, falamos ainda de R$ 42 bilhões em ganhos salariais decorrentes do aumento da produtividade.

Trabalhadores de São Paulo ganhariam ainda 0,24 anos de estudo, enquanto os fluminenses ganhariam 0,36 anos de estudo.

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Os ganhos se estendem ainda para o setor imobiliário. Na média, os imóveis poderiam ganhar 13,3% de valorização, registrando um impacto de R$ 176 bilhões. Note, porém, que esse impacto ocorre essencialmente em imóveis de regiões periféricas, mais afetadas pela ausência de saneamento, o que implica dizer que estamos falando de um ganho diretamente para a população mais pobre do país.

O custo de tudo isso? R$ 508 bilhões, ou cerca de 40 anos do investimento médio que o país tem feito.

Pode parecer muito, mas se colocado em perspectiva, o valor anual é relativamente baixo, ainda que façamos a conta por duas e não quatro décadas.

O valor equivale a menos de 20% do desembolso médio do BNDES durante a farra dos campeões nacionais. Equivale, por exemplo, a 80% só gasto do Bolsa Família, ou 0,4% do PIB.

Em suma, trata-se de um investimento ínfimo e de retornos praticamente garantidos.

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O que então trava esses investimentos? Há algumas respostas possíveis.

O financiamento deste tipo de obra é sem dúvida uma questão relevante. Grandes projetos de infraestrutura possuem retorno ao longo de décadas, o que torna seu financiamento algo complicado. É preciso um mercado de capitais robusto, ou um banco público disposto a investir.

Estamos vendo um forte avanço do primeiro ponto, o que pode significar um alívio importante para o setor. Com juros em queda (a despeito das altas recentes da Selic, ainda temos taxas de juros negativas), setores de infraestrutura têm ganhado apelo por conta dos retornos estáveis e melhores do que os juros pagos por títulos públicos.

Ainda assim, é importante ressaltar que este setor é, em essência, um setor chamado de “monopólio natural”. Na prática, significa dizer que é inviável ao consumidor escolher qual prestador de serviços deseja.

É bem verdade que outros setores antes considerados monopólios naturais sofreram disrupção e ganharam concorrência, como a energia, que hoje pode ser gerada de maneira autônoma por valores competitivos. Mas esse não parece ser o destino do setor de saneamento.

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Portanto, há duas questões colocadas na mesa: temos um setor que demanda investimentos pesados e que se pagam apenas no longo prazo, e não temos competição durante a prestação de serviços. Como conciliar essa questão?

A resposta mais simples e direta é: um contrato bem feito, com metas e que seja passível de regulação.

Esse é, em essência, o objetivo do Marco do Saneamento, aprovado no último ano. Sabendo ser inviável gerar competição na prestação do serviço, o marco regulatório puxa a concorrência, fator crucial para melhoria de qualquer serviço, para a escolha do concessionário.

Essa é uma questão importante quando falamos do cenário no Brasil, pois ainda hoje a maior parte do setor está entregue a empresas estatais que não disputam licitações e não se comprometem com metas.

Sem meta de investimento e sem prazos, o setor fica largado à própria sorte. O investimento em saneamento se torna quase um “favor”, como se fosse uma conquista dos governos estaduais e não uma obrigação de uma empresa que cobra, e caro, por isso.

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Vivemos assim em um paradoxo. Temos estatais de saneamento altamente lucrativas, mas sem obrigação de investir, sem metas a cumprir, e assim, sem grandes resultados entregues.

Ao contrário do que sugerem os opositores, o marco do setor em momento algum fala em privatização ou concessão. O que é abordado é justamente a meta: universalizar o saneamento básico em 2033.

Isso por si só já tem gerado alvoroço. Cientes de que não têm capacidade de investir para atingir tal feito, algumas empresas têm buscado justamente elevar o prazo, para 2043, garantindo assim a extensão das concessões e um atraso na universalização de um serviço que, como o próprio nome já diz, é básico.

Outras, porém, têm buscado o óbvio: formar parcerias com o setor privado.

Esse é o caso da estatal do Rio Grande do Sul, que formou uma Parceria Público Privada que deve injetar R$ 9 bilhões em investimentos na Região Metropolitana. No Ceará, a prática é similar. A estatal local deve licitar em 2022 um projeto para agregar outros R$ 6,4 bilhões em investimentos. Em Pernambuco, o processo foi feito em 2013, e agora a Compesa sonda o mercado para fazer um IPO, e assim atrair ainda mais investimentos.

No caso recente, a CEDAE protagonizou o maior leilão de concessão (não privatização), de saneamento na história do país.

O processo em questão obriga as empresas a investir até R$ 33 bilhões em melhorias no setor. Trata-se de um enorme avanço, capaz de fazer com que o Rio de Janeiro, ironicamente, se aproxime de Niterói.

A cidade vizinha, que possui uma concessionária privada desde 1999, tem a maior cobertura de saneamento do estado.

Veja: essa nem de longe é uma questão entre público e privado. A questão aqui é mais ampla e fundamental: qual modelo queremos para cuidar de algo fundamental para nossa saúde, educação e renda?

Um modelo que tenha exigências e metas é, sem sombra de dúvidas, um modelo melhor. É preciso que as empresas, sejam públicas ou privadas, obedeçam a critérios e entreguem o serviço (o que inclui também a tarifa social, que deve subir de 0,5% para 5% no caso da Cedae, e reajustes previsíveis).

Sem o medo de perder a concessão por falha na entrega do serviço, uma empresa não tem os incentivos corretos para entregar os serviços. Com isso, perdemos todos.

Que tenhamos neste momento um marco regulatório que avance nessa questão é um feito importante. Cabe lembrar que o primeiro neste sentido foi aprovado em 2007, meros 14 anos atrás.

Aos poucos seguimos avançando rumo aos padrões básicos de boa gestão e entrega de serviços essenciais. Que venham mais leilões e disputas para sabermos quem entregará antes a universalização do saneamento.

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Felippe Hermes Felippe Hermes é jornalista e co-fundador do Spotniks.com

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