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Na quinta-feira seguinte ao título brasileiro do Flamengo, Otto chegou ao escritório por volta das 10h. Na agenda, gravações para Heinz e Cacau Show. Dias antes, ele e o time haviam entregue em 24 horas um publi para o YouTube: Otto preparando um porco inteiro para pagar uma aposta ligada à derrota do Palmeiras.
Toda a operação acontece na sede da Cheff Otto, em um prédio comercial próximo à Berrini, em São Paulo. O espaço de 160 m² concentra escritório e dois estúdios. Nove pessoas trabalham presencialmente, com outras seis remotas. Para 2026, o plano prevê a entrada de mais 11 colaboradores.
Entre os objetos do ambiente, uma mala prateada chama atenção: a placa do YouTube pelos 10 milhões de inscritos alcançados no mês passado.
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É uma estrutura empresarial. E explica por que o criador define a Cheff Otto como um hub de gastronomia que opera como empresa de mídia, com mentalidade de startup.
“Percebi que um time constrói algo muito maior do que eu conseguiria sozinho. Hoje não sou eu. A Cheff Otto é uma empresa de mídia, de conteúdo, de projetos e de novos negócios.”
Até o início deste ano, essa estrutura não existia em São Paulo. Os conteúdos eram produzidos em Sorocaba, cidade natal de Otto, com o suporte de dois amigos que cresceram com o negócio. Leonardo Oliveira, diretor de negócios, e Filippo Rolim, diretor de produção, acompanharam a escalada até o canal se tornar o maior de gastronomia do país.
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Antes da mudança, um terceiro pilar foi incorporado: Marcelo Filho, editor-chefe. Ele deixou o mercado tradicional para assumir uma engrenagem central da operação. Hoje, o canal recebe 25 milhões de espectadores mensais só no YouTube. No total, são 110 milhões de views e média de 3,5 milhões por conteúdo, alcançando 18 milhões de seguidores entre YouTube, Instagram e TikTok.
A ida para São Paulo foi bem planejada. Além de estruturar a marca como plataforma de mídia e negócios, a proximidade com o mercado publicitário aceleraria parcerias. Já são mais de 20 campanhas com marcas como Latam, Bimbo e McDonald’s. Há conversas em andamento para a Copa de 2026 com a CazéTV.
Para alguém que há cinco anos fazia vídeos curtos e viralizou no TikTok ensinando receitas práticas, a ascensão meteórica não ilude. Na posição de CEO, Otto recebe um salário de R$ 9.000 para manter capital de giro na empresa e disciplina financeira. Mora em São Paulo com a noiva, Giovanna Gabriotti, e descreve uma rotina sem luxos.
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A maturidade com que lidera o startup de mídia contrasta com a idade: Otto havia completado 23 anos na semana anterior à minha visita ao estúdio.
Nas 2h30 que passei ali, pude ver na prática como as ideias defendidas por Sean Atkins, ex-presidente da MTV, se materializam no mundo dos criadores. Em texto recente, Atkins elencou o que a TV linear não conseguiu transferir para esse novo ecossistema: menos camadas de aprovação, menos culto à marca e menos confusão entre tempo de carreira e expertise.
“Um jovem de 22 anos que já conquistou 10 milhões de seguidores sabe algo que eu nunca vou entender completamente.” Exceto pela idade, Atkins poderia estar falando de Otto.
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É a partir desse ponto que a história avança para explicar por que a próxima onda da mídia será construída na intersecção entre criadores e players tradicionais dispostos a reaprender. Atkins chama isso de pivot: sair de criadores como distribuidores alugados para criadores como arquitetos de narrativa e comunidade.
A Cheff Otto sintetiza bem essa transição: Marca + Criador → Narrativa → Público → Comunidade.
De criador a comunicador; do shorts à TV
Embora esteja no centro da Cheff Otto como criador, Otto se define como comunicador. A forma como organiza o discurso entrega isso. Ele pausa, escolhe palavras e estrutura ideias como quem pensa em audiência.
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“Para ser um bom comunicador, preciso ser um bom contador de histórias, um bom escritor.”
Otto está imerso em um livro denso sobre roteirização, indicado pelo pai de um amigo que já esteve no negócio de mídia.
Seu discurso transita entre referências culturais, como o premiado La vita è bella de 1997, e a dinâmica prática do mercado, citando cases como Casimiro, PodPah [maddisonbr.substack.com] e Grupo Primo. Otto gosta de analogias, e usa uma delas para explicar sua guinada estratégica dos vídeos curtos para conteúdos longos e produzidos.
Leia mais: O fim da mídia como a conhecíamos: por que Casimiro virou tese de venture capital
“É como a rádio em 1920. Daí veio a TV, depois a internet, o podcast… Podcast é rádio de novo. Está fechando o ciclo. Todo mundo migrou para o curto. Só que o mercado hoje demanda conteúdo para sentar e assistir, com slow pace, na TV. Tanto que o YouTube hoje é maior que a Netflix.”
Como alguém que “estuda os outros mercados”, Otto domina os números. Cita de memória o share da Nielsen, com o “YouTube “em torno de 12% contra 8% da Netflix”. Nos dados mais recentes, o YouTube manteve 12,9% e a Netflix recuou para 8,3%.
Esse domínio da TV explica por que as plataformas sociais avançam sobre a sala de estar. Na semana passada, o Instagram lançou o app Instagram for TV nos EUA, focado em Reels.
Mas Otto não quer apenas replicar os Reels na TV. Seu objetivo é mais ambicioso e reflete uma mudança de prioridade: 70% de sua audiência já consome o conteúdo pela TV.
“Estamos começando a fazer conteúdos que poderiam ir para a TV, só que a gente passa e vincula isso em um canal do YouTube”, explica.
O movimento acontece em um mercado que entrou em fase de maturação. Como já mostrei ao longo deste ano, a creator economy gerou cerca de US$ 250 bilhões em 2024, quase 10% da receita global de mídia e entretenimento. Até 2030, deve ultrapassar US$ 600 bilhões, segundo Doug Shapiro.
Otto enxerga a lacuna nesse crescimento. Para ele, há espaço claro para “conteúdo de qualidade para TV em gastronomia e entretenimento”, justamente porque poucos estão dispostos ou preparados para entregar nesse nível.
É daí que vem a ambição declarada, sem rodeios:“Nós vamos ser a próxima TV de gastronomia.”
A obsessão por “perseguir atenção” e a premissa de testar, falhar e escalar em público
No evento anual do YouTube de 2025, Otto foi citado como exemplo da nova geração de “startups de entretenimento”. A lógica por trás disso aparece em uma de suas leituras recentes, Apaixone-se pelo Problema, Não Pela Solução, de Uri Levine, que ele usa para diferenciar startups, mídia tradicional e criadores.
“Startups perseguem problemas. Empresas de mídia e criadores perseguem atenção. O criador resolve a sensação de assistir algo bom.”
É uma visão que remete à essência do que ele produz: entretenimento. Neste ano, Otto lançou a primeira temporada de Pimentados. Ali, os convidados experimentam as pimentas “mais ardidas do mundo” do portfólio de produtos de sua marca Astro Foodz. O canal acumula mais de 82 mil inscritos.
“O Pimentados é gastronomia? É um programa de entrevista com comida, mas é entretenimento.”
Na disputa por atenção, Otto avalia que a TV segue lucrativa, mas presa a estruturas e fórmulas pouco adaptáveis. Enquanto criadores operam de outra maneira: testam em público, erram rápido e ajustam em tempo real.
Leia mais: Como a Economia da Afinidade está remapeando o poder na mídia
“O que os criadores fazem é empírico. É marketing básico: testa, aprende, ajusta. Quem constrói empresa como creator está aprendendo um mercado novo enquanto opera.”
Essa mentalidade também redefine a forma de medir resultados. Em entrevista recente a Kaya Yurieff & Jasmine Enberg, Kim Larson, head global de criadores do YouTube, reforçou o mesmo ponto:
“Você não espera ROI positivo imediato em todas as campanhas de marketing. Com criadores, o caminho também é testar e aprender.”
Velocidade de aprendizado como vantagem competitiva
O ciclo de testar e aprender na creator economy é acelerado pela própria dinâmica do meio. Sean Atkins chama isso de “velocidade de aprendizado”. Na mídia tradicional, a iteração acontece antes de ir ao ar. Entre criadores, ela ocorre em público, com retorno imediato e em escala.
No início deste mês, a Cheff Otto publicou o sexto e último episódio da série Em Busca da Melhor Comida do Brasil, em parceria com a Latam. Em 12 dias, o conteúdo de quase 18 minutos filmado no Amazonas acumulava 481 mil visualizações e mais de 2.200 comentários no YouTube. No total, os seis vídeos longos já atingiram mais de seis milhões de views.
O projeto foi criado em 2024 pela equipe de Otto e aprovado pela Latam em 2025. Passou por seis meses de pré-produção e envolveu 12 profissionais do time interno e outros seis de uma equipe externa de roteiro e produção.
“Não é necessário que sejam seis meses”, pondera Otto. “A marca ainda está acostumada a trabalhar com TV. É um conteúdo televisivo. O cliente Latam é maravilhoso, foi fácil trabalhar, mas ainda exigiu um alinhamento necessário.”
Com controle total da operação, ele afirma que os seis episódios poderiam ser produzidos em dois meses.
“Fazemos isso com cerca de um décimo do custo da TV. Somos rápidos, ágeis, eficientes. Não temos desperdício. A TV é inflacionada e ineficiente. Nós não.”
Publicidade paga a conta, mas o futuro é uma holding de mídia
A publicidade ainda sustenta a Cheff Otto. Sem divulgar números, Otto afirma que 2025 foi um ano recorde, com faturamento quase duas vezes maior que o de 2024.
“Hoje, ainda somos majoritariamente uma empresa de mídia e publicidade.”
Os molhos da Astro representam uma fatia pequena do negócio, entre 5% e 8%. Isso deve mudar. Para 2026, estão previstos o lançamento de uma linha de utensílios domésticos e a criação de um braço de franquias.
Em um horizonte de cinco anos, a operação de mídia da marca Chef Otto deve responder por apenas 5% do faturamento da holding. O crescimento virá dos produtos e dos novos negócios.
Otto fala em holding de forma literal. A tese converge com uma tese que analisei em abril: a evolução de marcas pessoais para HoldCos de criadores.
No modelo sugerido pelo investidor Aaron Miller, os ativos são organizados sob uma entidade-mãe ( uma LLC ou C-Corp ) que centraliza a governança, a estratégia e a captação de capital. Cada unidade de negócio (uma marca de produto, uma franquia, um canal) opera com autonomia, podendo ter equipe e captação próprias.
Otto, porém, faz uma leitura própria sobre capital. Ele não busca diluição via aporte financeiro tradicional. A aposta é em media for equity.
“A nossa moeda é mídia. Nosso valor é alto, conseguimos negociar participações relevantes e acelerar empresas”, diz. “Isso já foi feito antes. O Edu Guedes construiu esse modelo com um nome menos sofisticado, sendo sócio de empresas das quais ele é o rosto.”
No fim, a mídia é um mero “negócio de fachada”
Em junho de 2024, Jeffrey Housenbold, investidor de risco e ex-sócio-gerente da SoftBank Investment Advisers, assumiu como CEO da MrBeast, a referência global da creator economy e um caso observado de perto por Otto.
Menos de nove meses depois, Housenbold disse à Bloomberg que cortaria cerca de US$ 100 milhões em custos para tornar a operação lucrativa já no ano seguinte, com projeção de US$ 300 milhões em lucro.
Era uma leitura de que o entretenimento passaria a funcionar como canal de venda para outros negócios. Videogames, bebidas e bem-estar estariam no centro da estratégia.
Relatei esse movimento em março ao conectar o caso à análise de Brian Morrissey sobre o desalinhamento histórico entre capital de risco e mídia. A experiência recente mostra que venture capital e negócios de conteúdo raramente se encaixam bem.
Como resume Morrissey, mídia tende a operar como um “negócio de fachada”, usado para alimentar verticais com economia superior ou objetivos adjacentes.
A projeção de Housenbold reforça essa tese. Até 2026, a receita de mídia deve representar apenas 20% do faturamento da Beast Industries. A Feastables, marca de chocolates, deve triplicar de tamanho no mesmo período.
Os planos de Otto seguem a mesma direção, mas em outra escala. A holding em construção trata a mídia como motor de aquisição, distribuição e validação, e não como destino final do negócio.
Essa convergência sustenta a ambição de internacionalizar a marca. “2026 será um ano de inflexão”, diz Otto. “Vamos sair de dezoito milhões para cerca de trinta milhões de seguidores em frentes que não dependem só do meu rosto. Isso diversifica a receita e dá estabilidade ao negócio.”
Assim como MrBeast, Otto entende um ponto que ainda escapa a boa parte do mercado: audiência só não basta. Negócios de mídia exigem conteúdo, distribuição e monetização atuando como um mecanismo integrado. A diferença é que, agora, esse sistema está sendo desenhado por criadores que aprenderam rápido demais para repetir os erros da velha mídia.