Como a Economia da Afinidade está remapeando o poder na mídia

Conversei com Evan Shapiro, uma das mentes mais influentes da indústria. Nesta exclusiva, ele desmonta a falência criativa da big media e alerta: “Quem não se adaptar ao vídeo social como nova norma da TV está consolidando sua irrelevância”.

Eduardo Mendes

Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

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Na prévia do videocast The Media Odyssey, divulgada na quarta passada por Evan Shapiro, ele e Marion Ranchet alertam para a “longa e conturbada história da Warner Bros. Discovery”, e por que ela deve servir de aviso à indústria da mídia.

“É o que acontece quando banqueiros, advogados e diretores financeiros passam a definir a estratégia de uma empresa”, resume Shapiro.

O comentário sintetiza o papel que Shapiro assumiu ao transformar o ruído do mercado em sinais úteis para quem opera dentro, reverberando “o tipo de coisa que ninguém quer mais dizer.”

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O post foi publicado com a localização “Guarulhos, São Paulo”, provavelmente quando o “cartógrafo da mídia”, um dos apelidos que costuma carregar, desembarcava pela primeira vez no Brasil. Ele veio como o convidado ilustre do Google para discutir as dinâmicas de consumo de entretenimento em TVs conectadas, em evento realizado na sede da empresa na Faria Lima, na quinta passada.

Shapiro costuma dizer que Hollywood e as grandes emissoras vivem um “déficit de imaginação”. Ao ser indagado por mim sobre a falência criativa da big media, ele voltou à década de 50, a era de ouro da TV, para explicar seu ponto.

Segundo o expert, o crescimento global da mídia tradicional entre 1950 e 2000 foi impulsionado pela expansão da TV paga nos EUA, que gerou margens extraordinárias para Disney, Warner, Fox e NBC.

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“Então a Netflix surgiu e mudou o modelo de negócio, e eles entraram em pânico. Ficaram sem ideias. Tudo o que veio depois foi: copiar, copiar, copiar.”

A crítica instigante sintetiza o tipo de análise que o tornou referência. Na quinta, em sua newsletter, Shapiro publicou um gráfico detalhado sobre as possíveis desvantagens no leilão da Warner Bros. Discovery. A peça é uma das suas colagens peculiares em PowerPoint, com o fundo azul característico e logos de conglomerados midiáticos, que ele define como “forma de arte”.

“Cerca de seis anos atrás, criei meu primeiro mapa do universo da mídia, e foi a maior experiência nesse caminho. Era para uma aula que estava lecionando na NYU. Parte da jornada para criar um estilo em infográficos e tabelas era manter meus alunos acordados, uma vez que as aulas eram à noite.”

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Shapiro rejeita rótulos como “cartógrafo”, “provocador” ou “consultor da nova mídia”. Prefere se definir como “artista, criador, primordialmente”.

Ex-executivo renomado da NBCUniversal e IFC & Sundance Channel, produtor premiado com Emmy e Peabody, ele combina repertório criativo e visão disruptiva rara no setor. Ao longo de sua trajetória, sua principal crítica foi à resistência sistêmica de que toda a indústria precisaria mudar.

Para ele, a próxima transformação da mídia passa pela creator economy, “uma massa de humanidade competindo com o mainstream”, em que a criatividade de fato acontece. Em contraste, a mídia tradicional “já atingiu o maior público possível, vendeu a maior parte da publicidade e continua repetindo o mesmo modelo”.

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“Cadê o Steve Jobs? Cadê o Walt Disney? Cadê os executivos visionários que criaram essas instituições?”.

Esta foi uma das provocações que emergiram no papo exclusivo de 50 minutos que tive com ele, a convite do Google, na véspera do CTV Summit.

Conversar com Shapiro é encontrar uma das mentes mais lúcidas e instigantes da indústria. E o desafio desta coluna hoje é traduzir essa masterclass sobre o novo mapa da mídia no contexto da economia da afinidade, do fandom e do poder do vídeo social, em uma perspectiva global e brasileira.

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O controle mudou de mãos

A maior transformação da televisão na última década, segundo Shapiro, foi a passagem de uma mídia de push para uma mídia de pull. O programador, o canal ou a plataforma já não controlam o que o público vê. Agora é o consumidor quem define  o que, onde, quando, quanto e até se quer pagar.

Essa inversão, diz Shapiro, “virou de cabeça para baixo todo o modelo econômico e industrial da televisão”. A mudança se intensificou com a popularização das TVs conectadas diretamente à internet.

“E, por sinal, no Brasil, a taxa de adoção da TV conectada é mais rápida do que a da própria internet”, observa.

A CTV já está presente em 64% dos lares conectados, e dois dos aplicativos mais assistidos no país são canais FAST (Samsung TV Plus e Pluto TV).

Dados da Kantar Ibope Media, mostram que o YouTube é o serviço mais consumido em TVs conectadas entre maiores de 18 anos, com 56% de participação.

Os números explicam por que Shapiro afirma que a criatividade “está viva” nas plataformas sociais, produzida por artistas e criadores independentes. Podcasts, comédia e formatos nativos das redes impulsionam um ecossistema que cresce enquanto a “mídia tradicional se torna uma monocultura.”

Recentemente, relatei aqui como os criadores estão empurrando seus conteúdos para canais FAST e CTV como argumento de venda para marcas. O fenômeno ganhou força em 2025 porque eles perceberam que o negócio vai além de monetização no YouTube. A presença na TV voltou a ser símbolo de escala.

“Saímos de uma era em que a concorrência era um, dois ou três canais de TV para outra em que a Globo compete com todo ser humano no Brasil”, resumiu.

A Globo ainda opera no modo antigo

A Globo soma 6,28 milhões de inscritos no YouTube. A maioria dos vídeos é composta por trechos de programas atuais e novelas antigas. O resultado é mais um empilhamento de conteúdo do que uma estratégia de relacionamento. Shapiro provoca:

“O relacionamento ainda é quase totalmente baseado no modelo de push. Eles têm muitos inscritos, mas, quando se observa sob o prisma do índice de paixão e da qualidade do engajamento, o resultado é um engajamento muito baixo.”

Em agosto, ele apresentou um novo conceito que tenta redefinir a lógica da indústria: a Economia da Afinidade. O modelo combina o que restou da mídia tradicional, a velocidade das big techs, a força do fandom e os principais elementos da economia dos criadores em uma estrutura voltada para a Era Centrada no Usuário.

Nessa nova economia, Shapiro propõe cinco métricas que substituem os antigos indicadores de vaidade da mídia tradicional (visualizações, assinantes, receita, CPMs e taxas de cliques) por um novo KPI central: o Índice de Paixão por Afinidade (KPIx), citado por ele para mensurar o baixo engajamento da Globo no YouTube.

  1. Engagement Quality (EQ)
  2. Fan Velocity (FV)
  3. Emotional Resonance (ER)
  4. Identification Adoption Rate (IDAR)
  5. Lifetime Devotion Value (LDV)

A transição de uma perspectiva de impressões para a economia da afinidade altera a lógica do negócio. O valor não está mais nas visualizações, mas no impacto direto:

“Você não está mais comprando impressões. Essa deixou de ser uma indústria de CPMs. Agora é uma indústria de resultados. Estou comprando downloads, vendas, endereços de e-mail, resultados específicos”, define Shapiro.

A teoria de Shapiro ganha corpo no modelo da CazéTV

Na semana passada, a GETV comemorou 10 milhões de inscritos em menos de 60 dias após o lançamento. A Globo aproveitou o marco para lançar uma pesquisa de satisfação.

O questionário, porém, é limitado. Se o usuário não tiver assistido a nenhum programa do canal nos últimos sete dias, a enquete é encerrada. Caso tenha, as perguntas se restringem à quantidade de conteúdos vistos no intervalo de uma semana, sexo e faixa etária. Nada sobre comportamento, engajamento ou percepção de marca.

Shapiro observa que os brasileiros estão mais engajados nas mídias sociais do que qualquer outra população que já analisou. O país lidera em engajamento entre todas as faixas etárias (jovens, adultos e idosos).

Diante deste cenário de hiperconexão, ele aponta para uma diferença fundamental entre engajamento real e audiência de massa genérica. É essa distinção que impõe um “novo jogo de regras econômicas” e exige que, nas palavras dele, “é preciso desaprender muito do que se ensina nas faculdades de administração.”

“É por isso que, em vez de ‘economia dos criadores’, eu chamo de ‘economia da afinidade’. É quando a mídia tradicional e a economia dos criadores colidem, se fundem e se transformam em algo novo.”

Sob essa ótica, a CazéTV coloca-se à frente da GETV na disputa pelo novo território digital do esporte no Brasil.

Há duas semanas, o canal fez uma comemoração surpresa de aniversário para Casimiro após o jogo entre Vasco e Fluminense. O analista Dawid Prokopowicz descreveu o momento no gramado do Maracanã como um “pós-jogo estendido” de uma “transmissão que nunca acaba”, que manteve 250 mil espectadores conectados por mais de duas horas.

Mais do que um lugar para transmissões gratuitas, a CazéTV tenta consolidar-se como uma plataforma de conversa esportiva contínua. Com uma casa de experiências já planejada para a Copa de 2026, o canal quer vender ao mercado a ideia de que “mídia agora se mede por relacionamento, não por audiência”.

Shapiro concorda: “Eles estão dizendo a mesma coisa que eu. Afinidade e fandom. Não importa quantas pessoas você alcança, mas o quanto elas são apaixonadas pelo conteúdo, e quão eficaz é a mensagem que você entrega.”

A fusão inevitável entre mídia e criadores

O conteúdo é o motor da paixão na economia da afinidade. É o que sustenta um fandom disposto a seguir indivíduos, consumir seus produtos e investir tempo e dinheiro em torno deles. É assim que Shapiro enxerga o novo campo de disputa: a mídia tradicional competindo com milhares de nichos hiperengajados.

“A ideia de simplesmente falar com as massas como modelo de negócios está praticamente encerrada.”

Por isso, ele aposta que a economia dos criadores e a mídia tradicional deixarão de ser facilmente distinguíveis.

“Quando você ligar sua televisão, o conteúdo vindo da mídia tradicional e o das plataformas de criadores começará a se misturar. Isso formará uma única e grande economia de afinidade do entretenimento.”

Os dados reforçam essa leitura. Em setembro, as plataformas de vídeo online responderam por 33,4% do consumo no Brasil, segundo a Kantar Ibope Media . O YouTube liderou com 20%, seguido por TikTok (4,6%) e Netflix (4,4%).

Shapiro observa que, no país, o consumo de vídeo entre todas as gerações já combina streaming e redes sociais. Embora a TV linear ainda concentre 66,6% da audiência, essa mistura representa, segundo ele, a fronteira entre a velha e a nova economia.

Nos Estados Unidos, dados da Nielsen compartilhados por Shapiro mostram que, em setembro, a participação do YouTube na visualização de TV aumentou 19% em relação a 2024. A da Netflix subiu 5%. O total do streaming cresceu 10%.

Diante dessa trajetória que parece irreversível, Shapiro anuncia uma revolução mais ampla:

“O YouTube foi o primeiro aplicativo de vídeo social a se tornar televisão, mas não será o último. O TikTok é o próximo. O Instagram vem logo atrás. Eles farão com a TV o mesmo que o YouTube fez, só que em uma escala ainda maior. E então o mercado vai se perguntar: o que fazemos agora?”

O YouTube como novo eixo da mídia global

Ao longo deste ano, Shapiro vem repetindo que, em 2026, o YouTube pode ultrapassar toda a TV aberta americana em participação de audiência. E os resultados do terceiro trimestre reportados pela Alphabet na semana passada sugerem que a previsão é realista.

A plataforma registrou US$ 10,3 bilhões em receita publicitária, alta de 15% sobre o ano anterior. Somando Google One, YouTube Premium, YouTube Music e YouTube TV, já são 300 milhões de assinantes globais. O analista Hernan Lopez estima que as assinaturas renderam US$ 2,6 bilhões em lucro operacional sobre uma receita total de US$ 15,6 bilhões, crescimento de 21%.

O avanço do YouTube vai além da narrativa da ‘nova TV’ e confirma a tese de Shapiro: a plataforma é a principal força por trás da reconfiguração do poder da nova mídia.

“Na minha leitura, o objetivo principal do YouTube é ser o maior facilitador de conteúdo de vídeo do mundo. Nós levaremos você ao seu público”, explica.

Para Shapiro, a dominância do YouTube não vem apenas do volume ou da gratuidade, embora ambos importem, mas da personalização radical que o define. “Não há outros players que realmente façam isso.”

Esse grau de customização, diz ele, precisa se infiltrar em todas as plataformas, porque o consumidor já passou a esperar esse nível de serviço em seu entretenimento.

A personalização, entretanto, também expõe fragilidades do ecossistema. Shapiro critica o colapso da descoberta no streaming e na TV tradicional, resultado da falta de cooperação entre plataformas em torno dos dados. “Esse é o problema central.”

O segundo entrave é a qualidade dos dados nas TVs conectadas. “É a principal razão pela qual mais verba publicitária ainda não migrou para a CTV. A audiência está lá, mas não consigo identificar quem está assistindo o tempo todo nem rastrear os resultados. Em algumas plataformas, como o YouTube, sim, mas não em compras cross-platform.”

Na semana passada, o analista Micheal Gross compartilhou dados que respaldam as críticas de Shapiro: a CTV já responde por mais da metade das visualizações de TV nos Estados Unidos, mas capta apenas 39% dos investimentos publicitários.

Um recado para a América Latina

Há dois anos, Helena Price traçou o perfil de Evan Shapiro em uma entrevista que destacava sua trajetória como exemplo de adaptabilidade, resiliência e capacidade de transformar rupturas em novas oportunidades. O subtítulo da postagem era sugestivo: o presente de perder o emprego e por que o desapego é bom para os negócios.

Shapiro sabe bem como é lidar com isso. Foi demitido inesperadamente de seu próprio laboratório de inovação na Comcast quando completava 50 anos.

Para Shapiro, a imagem de guru da nova mídia o enquadra como analista e consultor. Sua realidade, porém, é outra: hoje, “me pagam para ser o Evan Shapiro”, e ele não esconde que este é “o trabalho mais divertido que já tive”.

Neste papel de aconselhar, alguns de seus recados são incisivos. Como este, sobre a resistência à mudança vigente:

“Aqueles que se recusam a se adaptar ao vídeo social como a nova norma da televisão hoje estão basicamente solidificando sua irrelevância para a próxima vez.”

Antes de encerrar a conversa, pedi que deixasse uma mensagem para os executivos de mídia da América Latina. A resposta foi menos dura que suas críticas à Warner Bros. Discovery, mas igualmente contundente:

“Dois terços da população na América Latina são Millennials ou mais jovens. Setenta por cento da população mundial é Millennial. Se você está tomando decisões sobre seu negócio de mídia sem Millennials e Geração Z na sala, você está se prejudicando.”

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Eduardo Mendes

Eduardo Mendes é estrategista em conteúdo e novos modelos de negócio para esportes, mídia e economia criativa. Com quase uma década no jornalismo esportivo, hoje atua com inteligência estratégica e inovação. É cocriador das newsletters The Block Point e Creative Moves, e esteve à frente de projetos como o ecossistema digital do Atlético-MG e os primeiros colecionáveis digitais da T4F.