“Quiet quitting”: fenômeno critica exaustão no trabalho e pode ressignificar o que é a boa performance

Movimento força equilíbrio entre carreira e vida pessoal e demanda das empresas mudança de postura na busca por resultados

Giovanna Sutto

(Getty Images)

“Você precisa fazer além do esperado”. Esse mantra repetido por gerações de trabalhadores não encontrou eco em 2022, ano em que as relações de trabalho passaram a ser chacoalhadas por um movimento que ganhou escala global: “Quiet Quitting“, algo como “Demissão Silenciosa”, em tradução a partir do inglês.

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Os adeptos desta nova faceta buscam limitar suas tarefas às responsabilidades estritamente necessárias dentro da descrição de seu trabalho para conter longas jornadas. O movimento pratica outro mantra: “trabalhar para viver e não viver para trabalhar”.

Com rápida tração nas redes sociais, sobretudo, no Tik Tok, usuários passaram a descomplicar a prática dando até dicas de como praticar quiet quitting. É o que faz Rafaelle Benevides ou Rafa do RH, como é conhecida na internet.

Dona de uma conta no Tik Tok, com 39 mil seguidores, ela explica os sinais que têm atraído os profissionais ao novo movimento. “Se você sente que se dedica, tem horas de trabalho extensas e não é reconhecido, talvez seja o momento de aderir [ao quiet quitting]”, diz ela, em um dos inúmeros vídeos sobre o assunto.

Rafa do RH recomenda que os profissionais procurem os departamentos de recursos humanos da empresa e peçam a descrição exata do cargo para avaliar se estão cumprindo integralmente com a função para a qual foram contratados. É importante, segundo ela, listar quais são as atividades obrigatórias e as colocar em prática de imediato.

Com esse novo foco, o quite quitting vem ganhando adeptos que estavam cansados de cumprir extensas horas de trabalho sem ter o reconhecimento nos rendimentos e na própria carreira. A frustração, dizem os adeptos, acabava sendo motor para ansiedade e burnout (estresse crônico associado ao local de trabalho que não foi adequadamente administrado).

Beatriz, cujo nome foi omitido a pedido, é gerente de produto e praticou quiet quitting até agosto deste ano na última empresa em que trabalhou, uma plataforma de anúncios. Ela diz que propôs mais limites às suas tarefas diárias, como: horário de entrada e saída e o volume de entregas das tarefas exigidas por período para não ficar sobrecarregada.

“A ideia era tentar me manter dentro do escopo da vaga, sem assumir tarefas que talvez eu não desse conta. Ao fazer isso, eu tive a possibilidade de praticar atividades não relacionadas ao trabalho, por prazer”, diz.

Ela começou a dedicar mais tempo ao violão e ao surfe, além de ter mais contato com os amigos, ações que antes tinha muita dificuldade de encaixar na rotina. “Eu me senti mais diposta e com mais energia para tudo o que eu fazia”, conta.

Como surgiu o quiet quitting?

O movimento de “demissão silenciosa” não é algo isolado. “É um sintoma das transformações pelas quais o mercado de trabalho e a sociedade passaram nos últimos dois anos”, afirma Glaucy Bocci, sócia da consultoria de recrutamento Korn Ferry.

A pandemia de Covid-19 levou, de forma forçada, as pessoas ao home office, e o volume de trabalho aumentou nos lares transformados em departamentos das empresas. Neste cenário, os profissionais passaram a trabalhar mais para provarem que estavam cumprindo com suas obrigações a distância.

“Essa sobrecarga só revelou uma falta de confiança nas relações de trabalho”, acentua Tonia Casarin, especialista em liderança socioemocional e mestre em educação para líderes pela Universidade de Columbia.

Outros elementos se somaram, como o novo status dado à burnout pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que a reconheceu como uma síndrome desencadeada pelo excesso de trabalho.

Beatriz, a gerente de produtos adepta do quiet quitting, diz que buscou reduzir a própria jornada de trabalho porque, no passado, já havia sido diagnosticada com burnout e enfrentado um ambiente tóxico nas empresas pelas quais trabalhou.

“Passei a olhar para o trabalho de outra forma, como parte da minha vida e não como prioridade dela. Meu objetivo é trabalhar dando meu melhor, mas sob essa nova ótica”, afirma a gerente de produto.

Com o recrudescimento da pandemia, a volta aos escritórios para muita gente representou um novo trauma, diz Paula Boarin, docente e mentora de carreira. “Nem todas as empresas tiveram uma transição moderada ao presencial e, em muitos lugares, esse retorno foi abrupto”.

Para Borin, a transição atabalhoada do trabalho remoto para o presencial foi, de certo modo “um prato cheio para o surgimento de movimentos como o quiet quitting“, afirma.

Um pouco antes do quiet quitting ganhar popularidade, milhares de profissionais passaram a não querer mais trabalhar ingressando com pedidos de demissão, dando corpo a outro movimento que ficou conhecido como a “Grande Renúncia”. Nos Estados Unidos, berço da prática, mais de 47 milhões de pedidos de demissão foram registrados em 2021.

O que chama a atenção das especialistas consultadas nesta reportagem é que os motivos que desencadearam a “Grande Renúncia” convergem com os que estruturam o “Quiet Quitting”. São eles: cultura tóxica nas empresas, insegurança, excesso de pressão e falta de reconhecimento.

“É uma mudança de mentalidade pautada em estabelecer limites do que é necessário para o sucesso no trabalho. São pessoas que cumprem com suas obrigações profissionais, mas não ‘vivem para trabalhar’. Elas acreditam que a vida delas é maior do que o trabalho e a identidade da pessoa é maior do que a identidade profissional”, aponta Tonia Casarin, especialista em liderança socioemocional.

Ainda para Casarin, o quiet quitting é uma forma de contestar a cultura da “produtividade a qualquer custo”. E essa preocupação, completa, vale para qualquer idade, ao rebater a ideia de que o movimento converge mais os jovens do que os profissionais das gerações anteriores. “Pessoas de todas as idades estão aderindo por uma reflexão mais aprofundada sobre o que é o trabalho na vida delas”, acrescenta Glaucy Bocci, da Korn Ferry.

Estresse no trabalho
Estresse no trabalho (Getty Images)

Quiet quitting sempre é a solução?

Quem discorda do quiet quitting aponta que este estilo de trabalho pode enfraquecer as entregas de seus adeptos, com perda de espaço e comprometimendo do desenvolvimento da própria carreira.

“O profissional não deve aderir ao movimento pensando em reduzir sua entrega ou a qualidade da mesma para protestar contra problemas identificados na empresa. Fazendo isso, vai aniquilar as chances de evoluir e nem sempre vai conseguir melhorar o ambiente em que trabalha”, avalia Rebeca Toyama, especialista em carreira.

Beatriz conta que, quando fez o quiet quitting, na última companhia em que trabalhou, notou que a sua chefe havia percebido a sua nova rotina.”Ela nunca me questionou diretamente sobre minha postura, mas me entregava um volume de trabalho que me obrigava a ficar mais tempo para entregar e acelerava os prazos. Ela não respeitou os limites que eu tentava praticar, mesmo eu me sentindo muito engajada”, conta.

Beatriz foi demitida em agosto e segue buscando uma nova oportunidade. Embora não tenha sido expressamente dito pela empresa, ela acredita que sua demissão teve relação com o quiet quitting. “Eu estava engajada, mas buscava priorizar as tarefas sem trabalhar além do que era estabelecido em contrato”, diz.

Então, a companhia pode demitir o profissional que pratica o quiet quitting?

“As pessoas seguem sendo avaliadas pela performance e suas competências. Se o profissional aderir ao movimento, e a empresa perceber e achar que a performance caiu e as competências já não mais atendem ao que se espera, a pessoa pode ser demitida”, afirma Glaucy Bocci, da Korn Ferry.

Nova postura da chefia

O quiet quitting busca, segundo as especialistas consultadas, uma nova postura da chefia e das empresas. A noção de urgência das entregas terá que passar por uma “reforma”, bem como outras rotinas.

Casarin lembra que quando o chefe não estabelece prioridades, mina a produtividade da equipe, que fica perdida diante de processos que poderiam ser melhores planejados.

Outro desafio, para tornar o ambiente de trabalho mais sadio e eficiente, diz respeito ao uso das ferramentas de comunicação. É dever da chefia avaliar: grupos de WhatsApp com o celular particular do funcionário são necessários?

Outro perigo é enxergar a mesma missão para todos os colaboradores. O caminho, diz Bocci, está no tratamento individualizado das trajetórias. “Nem todo profissional almejará ser o próximo CEO. Por isso, não adianta ter a mesma conversa com todos os profissionais de todas as áreas. Se a empresa não personalizar esse olhar para o funcionário e se adaptar, vai perder talentos”, diz.

Toyama acrescenta que as empresas têm encontrado dificuldade em lidar com essa situação porque foram “treinadas a olhar tudo como processo” e esqueceram de que as pessoas são o core do negócio.

“Daqui para frente elas [as empresas] precisarão pensar em reconhecimentos mais intangíveis, que são cada vez mais importantes aos profissionais, inclusive para quem adere ao quiet quitting: oferecer formatos que deem mais tempo de lazer e possibilidades de praticar hobbies, por exemplo”, acrescenta Bocci.

Sonhado equilíbrio

Especialistas defendem que é possível ser produtivo sem ser ‘sugado’ pelo trabalho. Exercicíos de autoconhecimento podem ajudar o profissional a alinhar expectativas sobre vida profissional e pessoal.

“Se a pessoa sabe quais são seus pontos fortes, seus talentos e acredita no seu potencial, o problema não é o excesso de trabalho. Na verdade, ela não está performando da forma mais produtiva”, diz Rebeca Toyama.

A ideia é direcionar determinadas habilidades para as tarefas correspondentes, fazendo uma gestão de tempo mais assertiva e focada, segundo a especialista em carreira.

Para desenvolver o autoconhecimento no âmbito profissional, a dica é fazer o chamado “inventário de competências” em três categorias: a de conhecimento (cursos e jornada acadêmica), a de experiência profissional (onde já trabalhou e suas conquistas) e o que é soft skills.

Esse mapeamento ajuda a entender em que ponto você está hoje na sua vida profissional e possibilita um planejamento futuro. Veja, abaixo, o que pode ajudar na busca pelo equilíbrio:

Giovanna Sutto

Repórter de Finanças do InfoMoney. Escreve matérias finanças pessoais, meios de pagamentos, carreira e economia. Formada pela Cásper Líbero com pós-graduação pelo Ibmec.