O fantasma da crise passada

Bolsa, dólar e juros já se acalmaram, mas as lições dos tempos farra fiscal não podem ser esquecidas.

Renato Santiago

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Texto publicado enviado aos assinantes da newsletter do Stock Pickers no sábado (03). Desde então, Rodrigo Maia e Paulo Guedes fizeram as pazes, a Bolsa recuperou parte do que havia caído, mas a lição permanece válida, como o FMI não nos deixa esquecer. Para se inscrever e receber a newsletter semanalmente, inscreva-se aqui.

“Uso a corrente que fiz em vida”, disse o Fantasma. “Eu a fiz elo por elo, metro por metro; eu a prendi por vontade própria e por vontade própria a uso.”
— Jacob Marley, em “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens

Caro leitor, o nome de Ebenezer Scrooge lhe soa familiar?

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Scrooge é o personagem principal do livro “Um Conto de Natal”, de Charles Dickens (e de dezenas de adaptações para o cinema e TV). Ele é um velho solitário, ranzinza e sovina que só pensa em si e não aprendeu com seus próprios erros.

No livro, que se passa em uma véspera de Natal na Inglaterra vitoriana, Scrooge é atormentado por quatro fantasmas.

O primeiro é o do seu antigo sócio, Jacob Marley, que viveu a mesma vida de egoísmo e maldade de Scrooge. Após sua morte, ele vaga pelo mundo atormentado, carregando uma corrente que ele fez e colocou em si mesmo. Para sempre.

O segundo é o Fantasma do Natal Passado, uma figura angelical que mostra para o velho todos os erros que ele cometeu e fatos do passado que o transformaram nesta pessoa ruim que ele é hoje.

Já foram cinco parágrafos e você pode estar se perguntando onde queremos chegar falando de um livro publicado em 1843.

Simples: na segunda-feira o Brasil, como Scrooge, recebeu a visita de seu Fantasma do Natal Passado, disfarçado de anúncio do programa Renda Cidadã.

Antes do pesadelo

Desde quando o auxílio emergencial começou a ser distribuído, o governo vem falando em uma mudança no Bolsa Família, que seria rebatizado de Renda Brasil. Depois de algum atrito no governo, boatos de volta da CPMF e de saída do ministro da Economia, Paulo Guedes, o presidente Jair Bolsonaro proibiu que sua equipe falasse no assunto novamente.

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Talvez impulsionado pelo aumento de sua popularidade por causa dos repasses do auxílio emergencial (a aprovação do presidente subiu de 29% para 40% entre dezembro e setembro), o presidente resolveu falar de novo no assunto e na segunda-feira, 28, era anunciado o Renda Cidadã.

O Fantasma da Crise Passada

No anúncio do programa, o senador Marcio Bittar, acompanhado de Bolsonaro e do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, anunciou que a conta do Renda Cidadã seria quitada limitando os pagamentos de precatórios a 2% da receita líquida do governo e usando dinheiro do novo que chegar ao Fundeb (fundo destinado à educação básica, que não conta para o teto de gastos).

Ebenezer Scrooge em adaptaçãoEbenezer Scrooge em versão de animação para o cinema.

Ao todo, a manobra geraria R$ 70 bilhões ao Renda Cidadã, nas contas do governo. E como o uso do Fundeb poderia tirar todo esse valor do teto de gastos, mais R$ 35 bilhões se abririam ficariam livres e dentro dos limites.

Foi como se o fantasma da contabilidade criativa da era Dilma Rousseff se materializasse na nossa frente. Não apenas o governo propunha pagar uma nova despesa deixando de quitar dívidas (que é o que os precatórios essencialmente são), como tentava driblar o teto de gastos, o mais significativo avanço fiscal do país.

“Estamos no tempo do Guido Mantega, do Arno Agustin e da Dilma mais uma vez? A era das pedaladas fiscais voltou?”, perguntou Guilherme Abbud, da Persevera, no Coffee & Stocks do dia seguinte.

Obviamente comparação à política econômica de Dilma não é elogio. Em seu governo perdemos o grau de investimentos e tivemos dois anos de recessão, com o PIB caindo 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016, e a taxa de desemprego chegou a 13,7%, ou 14,2 milhões de pessoas. Sua contabilidade criativa levou às pedaladas fiscais, usadas para melhorar o resultado fiscal do governo, e ao pedido de impeachment.

Uma reunião esdrúxula

Rapidamente o mercado demonstrou o que achava do plano da maneira que sempre faz: derrubando a Bolsa (-2,4%) e apreciando o dólar (+1,48%). E o pior é que o governo não entendeu.

Ainda naquela tarde, o deputado Ricardo Barros participou de uma reunião por Zoom com mais de cem representantes de grandes instituições financeiras, e, segundo alguns dos presentes com quem conversamos, estava “totalmente perdido”.

Barros entrou na reunião com a certeza de que a resposta negativa do havia acontecido por que uma nova CPMF não havia sido anunciada. Sabemos que o mercado espera sim uma reforma tributária, mas não me parece sensato imaginar que um novo imposto seria comemorado.

A reunião continuou em tom amigável e formal, apesar de certa estranheza, já que não era o ministro da Economia ou alguém de sua equipe falando. Quando algum dos presentes explicou que a questão dos precatórios havia soado como calote, ele justificou que, mesmo se fosse esse o caso, seria “apenas em Estados e municípios”.

Em seguida, em um apelo que eu interpretaria como um incentivo populista para o mercado, Barros disse que o Renda Cidadã era importante para manter alta a popularidade do presidente, e assim aprovar reformas profundas, como a tributária e a administrativa.

Sabemos que popularidade ajuda, mas a qualquer preço, pode até comprometer uma reforma. O estrago já estava feito e a reunião, considerada esdrúxula por quem foi, terminou sem que alguém mudasse de ideia.

O Fantasma da crise futura

O Renda Cidadã também trouxe suas consequências para a renda fixa, em um movimento que parecia a chegada do Fantasma do Natal Futuro que também atormentou o senhor Scrooge.

Ainda na segunda-feira, as taxas dos títulos públicos dispararam e o Banco Central acionou seu circuit breaker, fechando o mercado. O prefixado 2026 chegou a 7,39% ao ano, contra 6,91% na sexta-feira (28). O mesmo papel com juros semestrais e prazo em 2031 subiu de 7,35% para 7,76% ao ano.

Apenas nesse movimento a dívida brasileira deve ter aumentado alguns bilhões. É o mercado mostrando para o Brasil, assim como o Fantasma do Natal Futuro mostrou para o senhor Scrooge, que repetir os erros do passado vai custar caro e será doloroso.

Spoiler

Após receber as visitas dos quatro fantasmas (o quarto é o do Natal Presente), o senhor Scrooge toma jeito na vida, muda suas atitudes, deixa de ser a pessoa ruim que era e passa a ter uma vida feliz e cheia de paz. Esperamos que o Brasil use a visita de seus fantasmas para fazer o mesmo.

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Um abraço,

Renato Santiago
Fundador e Apresentador do Stock Pickers

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Renato Santiago

Renato Santiago é jornalista, coordenador de conteúdo e educação do InfoMoney