Mercado ilegal de receitas tem forte crescimento nas redes sociais; entenda o esquema

Grupos organizados usam Telegram, bots e perfis falsos para comercializar documentos médicos e drogas controladas, colocando a saúde em risco

Victória Anhesini

(Imagem de Tung Lam/Pixabay)
(Imagem de Tung Lam/Pixabay)

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A venda de atestados, laudos, receitas de medicamentos controlados e outros documentos falsos se tornou um problema sério para profissionais de saúde e agências reguladoras. Em um levantamento feito pelo g1, há diversos grupos clandestinos com esse propósito, feitos prioritariamente através de redes sociais. Os canais aceleram a disseminação da prática, funcionando como marketplaces digitais, usando bots e perfis falsos para driblar a fiscalização.

O pediatra João Batista, de 72 anos, foi um dos alvos do esquema. Segundo ele, recebeu do Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo notificações sobre atestados atribuídos a seu nome sem que tivesse atendido os pacientes. Em entrevista concedida ao g1, o pediatra afirmou que foram emitidos quase 10 documentos para a mesma pessoa, sem nunca ter visto a paciente, e que não sabe como seus dados foram obtidos. Porém, não houve um choque para o médico, uma vez que ele já tinha sofrido esse tipo de fraude anteriormente.

Grupos, principalmente no Telegram, vendem medicamentos, receitas, atestados, laudos e requisições de exames falsos, utilizando nomes e registros de médicos reais, muitos dos quais sequer sabem que estão sendo usados.

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Crescimento

A quantidade de anúncios de medicamentos e documentos médicos falsos no Telegram aumentou mais de 20 vezes desde 2018. Naquele ano, foram 686 publicações. Hoje, já passam de 15 mil por ano no Brasil. O g1 obteve os dados de um levantamento feito por Ergon Cugler, pesquisador do CNPq no Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV).

Além disso, o alcance dos anúncios tem grande impacto: somente em 2025, até julho, esses anúncios receberam quase meio milhão de visualizações. É possível ver cada número individual, pois cada post exibe o total de acessos. Além disso, mais de 27 mil pessoas participam ativamente de grupos e comunidades dedicados à venda desse tipo de material.

Vale frisar que essa prática não é algo improvisado; a comercialização é organizada, com bots automatizados, perfis falsos e marketplaces estruturados tornam o processo mais seguro para quem vende e mais difícil de rastrear. O pagamento acontece rapidamente, e o acesso ao conteúdo é liberado na hora.

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O que é vendido

Há três tipos de receitas que são oferecidas pelos grupos:

Nesses documentos, há nomes e registros de médicos reais. O esquema é profissionalizado, com instruções detalhadas sobre impressão e uso, incluindo orientações para evitar grandes farmácias e assinar sobre o carimbo.

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Igualmente, há vendas de atestados médicos, em que o comprador define os dias de afastamento, o CID e as recomendações médicas. Também são vendidos medicamentos controlados, como tarja-preta, abortivos e inibidores de apetite, com o processo feito sem receita pelos golpistas.

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Plataformas digitais como o Google, Meta, X e TikTok são os principais locais onde se encontram os anúncios dos esquemas. Conforme a apuração feita pelo g1, tanto Google como Meta chegaram a receber publicidade paga para dar visibilidade a esses canais.

Já no TikTok, vídeos detalham como conseguir os documentos, enquanto nos comentários vendedores anunciam os produtos. No X, usuários encontram listas completas de opções para compra.

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Tentativas de controle e regulação

O Conselho Federal de Medicina (CFM) tentou implementar um sistema digital para rastrear a emissão de atestados médicos, de forma que profissionais confirmem ou não documentos emitidos com seus nomes. A ferramenta inclui biometria, assinatura digital e integração com plataformas de prescrição.

Porém, a Resolução do CFM que criou a plataforma foi suspensa por decisão do TRF-1, após ação do Movimento Inovação Digital (MID), que questionou a concentração de controle e a ausência de integração com outros sistemas. O CFM recorreu, e o processo está em segunda instância, com parecer favorável do Tribunal de Contas da União (TCU). O conselho afirma que a plataforma será gratuita para médicos, pacientes e empresas que validarem atestados.

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Em posicionamento, o Movimento Inovação Digital (MID) disse ao InfoMoney que reconhece a importância da expansão da digitalização como forma de combater a falsificação de documentos de saúde. “O MID defende o fortalecimento e aprimoramento de forma conjunta com a sociedade e seus atores envolvidos nas soluções já existentes, como o Validar ITI. Assim, discorda da proposta do Conselho Federal de Medicina (CFM), por invadir a competência do Ministério da Saúde e por não ser razoável frente às alternativas já existentes; à ausência de diálogo com a sociedade e; inclusive, aos riscos de proteção de dados envolvidos”, diz a nota.

“Tudo isso especialmente porque, da forma que a proposta está, resulta na centralização de milhões de dados de saúde da população brasileira pelo CFM, com possibilidade de acesso pago por terceiros – atividades que não são necessárias para garantir a autenticidade dos documentos”, completou.

Desde julho deste ano, a Anvisa passou a testar um novo sistema nacional para emitir e controlar números de receitas de medicamentos de uso restrito. A ideia é funcionar como um “cartório” digital: cada número de receita é criado pela Anvisa e ligado diretamente a um médico. Assim, é possível confirmar se a receita realmente existe e se foi emitida por um profissional autorizado.

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Na fase de testes, o sistema já está conectado a programas de prescrição digital. Isso permite que haja autenticação automática no momento em que a receita é emitida e a checagem em tempo real pelas farmácias.

Riscos à saúde pública

Especialistas alertam que o avanço desse mercado ilegal representa risco real à saúde, já que pacientes conseguem o acesso a medicamentos controlados sem orientação, se automedicam e ficam expostos a efeitos adversos.

Ao g1, Marun Cury, diretor de Defesa Profissional da Associação Paulista de Medicina, disse que o exercício ilegal da medicina e a banalização das receitas afetam toda a sociedade, comprometendo a confiança nas instituições e expondo vidas a riscos graves.