“Venezuela é extraordinário alerta contra novo governo de esquerda no Brasil”, diz professor da UnB

Em entrevista ao podcast da Rio Bravo, Eduardo Viola explica como Venezuela chegou a tal estado de degradação e faz crítica à esquerda brasileira

Lara Rizério

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SÃO PAULO – A situação política na Venezuela está cada dia mais degradante e tem gerado reações dos países vizinhos e, inclusive, dos Estados Unidos. Neste mês, o presidente americano Donald Trump ameaçou intervir na Venezuela, fala que foi amenizada pelo vice-presidente do país, Mike Pence. Enquanto isso o Mercosul, só decidiu suspender a Venezuela do bloco após a votação da Assembleia Constituinte em 30 de julho. Para falar sobre a grave situação do país, o Podcast da Rio Bravo (ouça clicando aqui) entrevistou  Eduardo Viola, cientista político e professor titular da Universidade de Brasília. 

O Mercosul se mexeu, aponta Viola, mas a medida não terá o efeito esperado exatamente por ter sido tomada muito tardiamente. “A situação na Venezuela já está muito degradada”, observa. Ao falar a respeito dos partidos de esquerda brasileiros que hesitam em rever o apoio a Nicolás Maduro, o professor faz uma forte crítica à esquerda nacional e aponta que “a realidade material da Venezuela é um extraordinário antídoto contra as forças anticapitalistas no Brasil” e vai além: “a degradação extrema da Venezuela é um extraordinário alerta contra um novo governo de esquerda no Brasil. Então, quando mais o PT apoia o regime de Maduro, mais se queima como alternativa de poder no Brasil, porque o colapso da Venezuela é muito ostensivo”, aponta. Confira a entrevista abaixo:

Rio Bravo – O que a votação na Venezuela diz a respeito do país no tocante à manutenção da Constituição e do cuidado para com o Estado de Direito?

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Eduardo Viola – A votação na Venezuela da Assembleia Constituinte é simplesmente mais um passo no sentido do estabelecimento de um regime autoritário de características cada vez mais duras, mais ditatoriais. Basicamente, se não pensarmos na classificação da ciência política, a Venezuela era, no momento em que foi eleito Chávez no fim de 1998, uma democracia de baixa qualidade.

O projeto de Chávez, do que rapidamente se constitui como a Revolução Bolivariana, é um plano de perpetuação no poder e de erosões do regime democrático.

De algum modo, entre 2002 e 2005, produz-se a transição de um regime democrático de baixa qualidade para um regime híbrido. O regime é híbrido porque tem algumas características (alguns chamam também de semidemocrático) do regime democrático. Por exemplo, tem eleições, mas elas não são plenamente competitivas, porque há um uso massivo da máquina do Estado pelo partido no governo para ganhar o pleito. Há o uso massivo tanto em termos de compra, usando recursos financeiros estatais para isso, além de corrupção e também intimidação.

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Uma coisa importante é que se vão formando as estruturas paralelas, como o coletivo chavista e a milícia bolivariana. Esse é um processo gradual, mas o chavismo tem toda uma tomada de ideia de poder, de socialismo do século 21. Então entramos num regime híbrido. Podemos dizer que esse regime dura até que foram destituídas a autoridade, o parlamento. Em 2005, era um regime híbrido mais perto da democracia. Em 2015, era um regime híbrido muito perto do autoritarismo. E a partir disso nós entramos definitivamente num regime autoritário e agora estamos aprofundando o regime autoritário, mas com uma especificidade. Na Venezuela existe de um lado toda uma implantação de um regime autoritário, mas de outro lado uma falência crescente do Estado. É um Estado semifalido.

Há regimes autoritários que têm um forte monopólio da violência legítima, como é o caso de Cuba, enquanto a Venezuela é um regime autoritário que não tem o monopólio da violência legítima. Assim, há grupos armados de diversos tipos apoiando o regime e, cada vez mais, há violência armada. Com o processo da eleição da Constituinte, isso é mais um passo, mas ainda vão encontrar pessoas dizendo: “Não, agora é que, por causa da Constituinte, terminou o regime autoritário”. Sendo estrito do ponto de vista da ciência política, o regime democrático terminou já faz 12 anos.

RB – Essa transição do regime híbrido para o autoritário pode alcançar plenamente uma ditadura na Venezuela?

EV – Acredito que não. É pouco provável, porque nós temos na Venezuela uma desorganização generalizada da economia e fragmentação do tecido social. Uma ditadura é um regime que tem como base a ordem. Só que na Venezuela o que nós estamos tendo é uma crescente desordem, anarquia. É um autoritarismo em cima de crescente desordem política, sendo uma situação muito extrema, muito grave. O nível de instabilidade de um regime desse tipo é muito alto e o potencial de violência generalizada é muito alta.

Há uma queda da renda per capita: a Venezuela foi a renda per capita mais alta da América do Sul na década de 70, 80 e parte de 90 e depois declinou, teve oscilações. Durante o chavismo, como teve o super boom da commodity via petróleo, houve de novo um momento de crescimento da renda per capita. No chavismo, há simultaneamente um processo importante de distribuição de renda, diminuição da desigualdade e ao mesmo tempo de destruição dos fundamentos do capitalismo e da iniciativa privada. Ou seja, as condições de produção da riqueza: distribui-se a riqueza que não é produzida. É uma riqueza artificial, porque é gerada pelo aumento exponencial do preço do petróleo, ou seja, sobre o qual Venezuela não tem o menor controle, é um fenômeno internacional. Isso que em parte aconteceu aqui no Brasil, lá aconteceu em uma escala gigantesca, porque lá é uma só commodity e teve mais variações. Além do fato de a própria PDVSA [estatal de petróleo venezuelana] ter sido profundamente sucateada. A PDVSA produz menos hoje do que produzia há 15 anos.

Assim, o cenário que nós temos na Venezuela é de crescente anarquia, mas ao mesmo tempo combinado com um Estado cada vez mais ditatorial e repressivo. Isto é, há crescente violência e crescente criminalidade. Há inclusive o fatiamento do aparelho de Estado em grupos de poder que são uma combinação de uma nova burguesia bolivariana, militares e forças de segurança, narcotráfico, contrabandistas e toda uma estrutura cuja base fundamental é o ilícito nacional e transnacional.

RB – Como o presidente Nicolás Maduro conseguiu fazer com que o país chegasse a essa situação? Como ele perdeu as condições de manter o país sob as rédeas, sob controle?

EV – O fator mais importante é o fator petróleo, o preço do petróleo. O super boom da commodity começa em 2004, com um crescimento exponencial do preço do petróleo, para depois haver um momento de quebra que vai do último trimestre de 2008 ao primeiro semestre de 2009. São oito meses mais ou menos, não muito mais do que isso, subindo exponencialmente de novo e muito alto até meados de 2014. Então, o que acontece? Chávez viveu no super boom das commodities basicamente. Já Maduro assumiu a presidência ainda no super boom das commodities, mas no fim do ciclo. Assim, a erosão das condições de governabilidade por parte do Maduro teve como primeiro fator fundamental o sistema internacional. A economia internacional, ou seja, está absolutamente fora do controle da Venezuela. O segundo fator importante é: Chávez era uma pessoa carismática, de alta capacidade em dois sentidos. Havia, de um lado, a capacidade de comunicar com vastos setores da população que se sentiam abandonados no fim do regime anterior da democracia cada vez mais oligárquica, cada vez mais corrupta, e daí surgiu o Chávez.  

Chávez era um oficial do Exército que tem carisma junto ao exército, à população e tem capacidade de articular interesses diferentes da coalizão do regime, que vai constituir o Partido Socialista da Revolução Bolivariana. Ele tinha uma capacidade de articular interesses, o que permitia que tivesse durante todo o seu período na presidência um apoio oscilante sempre entre 50 e 60% da população. Com Maduro, não tem carisma popular e ele também representa só uma facção do chavismo. Tudo bem, Chávez escolheu um herdeiro, mas ele não era um líder do chavismo. Ele era uma tendência do chavismo. Então se começou a ter toda uma série de conflitos internos.

O momento decisivo da deterioração ocorre a partir de junho de 2014, em que ele já estava um tempo no governo e houve uma queda drástica do preço do petróleo. Durante um bom tempo foi muito baixo, inclusive, depois subiu um pouco. Essa queda drástica do preço do petróleo faz cair a renda per capita da sociedade, e no contexto, os anos anteriores já tinham sido anos de destruição da força produtiva da sociedade venezuelana. Ou seja, [destruição da] iniciativa privada e o próprio sucateamento da PDVSA, havendo uma situação extremamente difícil. Na verdade, a situação anterior era artificial. A sociedade vivia de uma renda extraordinária do petróleo, mesmo com a produtividade do petróleo na Venezuela caindo. Quando isso se acaba, o rei fica nu.

RB – Qual é a sua análise a respeito da posição recente do Mercosul, que no último fim de semana suspendeu a Venezuela do bloco por rompimento da ordem democrática?

 EV – O ponto fundamental é o seguinte. Os regimes kirchnerista e de Lula e Dilma apoiaram o sistema Chavismo e de Maduro. Isso é ostensivo, permanente, inclusive fazendo campanha eleitoral. Lula fazia campanha eleitoral ao lado de Chávez e a máquina do PT, marqueteiros do PT, agiam na Venezuela. A relação do kirchnerismo com a Venezuela também foi fortíssimo, inclusive porque o chavismo ajudou o kirchnerismo nos seus anos bons. São dois regimes que se apoiam totalmente.

O que acontece? Não podemos dizer que o Brasil, particularmente, contribuiu para a consolidação do Chavismo como um regime híbrido crescentemente autoritário e posteriormente o de Maduro. O Brasil, e aí não é só o PT, tem outra questão fundamental. Todo o setor do empresariado brasileiro fechou os olhos para crises e para o que estava acontecendo na Venezuela durante todo o processo crescente do regime, porque estavam vendendo mais. Na época do super boom das commodities, foi um crescimento extraordinário das exportações brasileiras para a Venezuela, substituindo exportações da Colômbia e dos Estados Unidos para a Venezuela. E agora teve uma queda gigantesca. Nesses anos, todo o setor empresarial apoiou, isso pela característica do capitalismo de compadrio como o capitalismo brasileiro. Então esse é mais ou menos o quadro.

Quando se dá uma mudança? Quando Macri assume a presidência na Argentina em 2015, quando há o impeachment de Dilma aqui e o governo Temer, que passam de uma posição de apoio para uma posição de crítica. Mas uma crítica moderada. Na verdade, agora declaram o fim da ordem democrática, mas a ordem democrática já acabou lá faz muito tempo. Se houvesse cumprido a carta democrática estritamente do Mercosul e da OEA, a Venezuela teria que ter sido suspensa da OEA e do Mercosul, faz uns seis, sete anos. Isto aqui chega, digamos, vários anos tardiamente, quando uma situação onde o impacto disso sobre a dinâmica na Venezuela é baixíssimo. A situação na Venezuela já está muito degradada.

RB –  Na esteira dessa condição de muita degradação na Venezuela, na América Latina existem atores políticos com legitimidade o bastante para tentar restabelecer o processo democrático naquele país?

EV – Primeiro, sempre para restabelecer o processo democrático em um país, depende-se da existência de importantes forças democráticas organizadas. Isso é geral na lei da ciência política e interferências externas podem contribuir muitíssimo. Obviamente como foi no caso por exemplo de uma guerra contra regimes autoritários, ocupações militares do Japão, da Alemanha Ocidental…. Assim, a reconstrução da democracia tem forças internas, mas tem forças externas.

No caso da Venezuela, existem forças democráticas? Sim, muito. Mas qual é o problema da Venezuela? As armas, os métodos de coerção, estão todos do lado do regime. O regime tem as forças armadas, a milícia bolivariana, que é poderosa e muito leal, porque são aproximadamente 150 mil homens, que inclusive tem tanques de armas mais pesadas, e os coletivos chavistas. Os coletivos chavistas são estruturas paramilitares descentralizadas que combinam militantes chavistas com criminosos comuns. Por isso, inclusive, a taxa de criminalidade é altíssima na Venezuela. As armas estão todas deste lado. O Chavismo tem hoje apoio aproximadamente de 20% da população, ou seja, oitenta porcento contra. Se não é mais, 90% contra. Porém, os poucos que apoiam têm todas as armas. Os outros não têm armas e podem iniciar uma resistência armada, mas isso não é promissório, porque as armas estão do outro lado.

Uma saída seria o seguinte caso: o regime tem que ter sempre um setor significativo do regime que derrube o núcleo do regime, e isso se alia com a oposição, ou pelo menos com a oposição mais moderada, porque uma posição mais radical não vai querer se aliar com um setor do regime. Esta convergência é muito difícil, porque o regime cada vez mais está com essa posição pela capacidade da inteligência, inteligência no sentido da força, basicamente cubana. Todas as forças armadas têm o comissário do povo, controlando. Em qualquer batalhão ou pelotão de Venezuela, há a estrutura militar e, em cima dela, toda uma estrutura de comissários do povo vigiando.

O regime vai depurando, vai olhando com precisão e sempre golpeando potenciais desertores, e ao mesmo tempo cooptando todo mundo. O ponto importante é o seguinte: cada vez mais, o setor do regime propenso na negociação é muito frágil, quase inexistente. 

 RB – Os Estados Unidos têm força neste instante para tentar estabelecer algum tipo de pressão junto à Venezuela?

 EV – Os Estados Unidos, com Obama na presidência, tinha legitimidade para tentar construir uma coalizão americana, uma coalizão do Canadá até a Patagônia, digamos. Estados Unidos, Canadá, México, Brasil, Colômbia e Argentina seriam colíderes de uma coalizão democratizante. Poderia, porque Estados Unidos de Obama poderiam convergir com o resto da região. O problema é que com o Trump isso muda muitíssimo. Primeiro porque, para Trump, esta seria a última coisa que pode interessar. São medidas puramente reativas. Pode encontrar uma ou outra errática, mas não há nenhum interesse em formar uma coalizão. E por outro lado, a ação dos Estados Unidos sobre a Venezuela não terá legitimidade na América Latina. Há na Venezuela uma situação ruim em que tudo se deteriora numa presidência com a característica da presidência de Trump. As condições são menos favoráveis para uma ação legítima de ação coletiva no hemisfério ocidental.

 RB – Os partidos de esquerda do Brasil, salvo algumas exceções bastante pontuais, têm hesitado para dizer o mínimo em apontar os problemas da presidência de Nicolas Maduro na Venezuela, sobretudo nessa fração de tempo com Assembleia Constituinte. Na sua avaliação, essa autocrítica vai ser feita em algum momento?

EV – A lógica da esquerda brasileira, cujo núcleo é o PT, tem sido de dobrar a aposta nos erros, exceto no momento em que Dilma foi reeleita nomeando [Joaquim] Levy como ministro da Fazenda, mas que acabou não funcionando. Em geral, em todas as áreas, e depois do Impeachment, a lógica é dobrar a aposta. Em tudo. [Para a esquerda], a corrupção é tudo conspiração da mídia, da burguesia, da oligarquia, do imperialismo. Não há nenhum reconhecimento da realidade, nenhum reconhecimento dos erros. É uma degradação extraordinária da esquerda brasileira. Não era condenado historicamente a ser assim. Cada vez mais é um sistema de crenças fechado, não é aberto ao contraste com a realidade. É como se tornasse uma religião. É terrível para a democracia brasileira, mesmo que tenha diminuído muito o seu contingente, a sua base.

Este é o primeiro ponto. Daí deriva o outro ponto, que é totalmente investido no apoio ao Chavismo. Claro que alguns setores do PT falavam “não pode, não tanto”. Mas o fundamental é dobrar a aposta. Ou seja, em vez de autocrítica, é um caminho de continuar investindo no caminho que dá errado, que degrada a economia, e isso aconteceu no Brasil. E acontece em relação ao apoio ao regime de Chávez, o que é muito favorável para a democracia brasileira. A degradação extrema da Venezuela é um extraordinário alerta contra um novo governo de esquerda no Brasil. Então, quando mais o PT apoia o regime de Maduro, mais se queima como alternativa de poder no Brasil, porque o colapso da Venezuela é muito ostensivo. É uma desorganização total. Um negócio é apoiar Chávez quando há o super boom das commodities. Houve melhor distribuição da renda, a população estava melhor, então era uma narrativa que tinha uma base na sociedade brasileira. A realidade material da Venezuela é um extraordinário antídoto contra as forças anticapitalistas no Brasil. Isso é favorável à economia de mercado e à democracia no Brasil. 

 

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Lara Rizério

Editora de mercados do InfoMoney, cobre temas que vão desde o mercado de ações ao ambiente econômico nacional e internacional, além de ficar bem de olho nos desdobramentos políticos e em seus efeitos para os investidores.