Repatriação pode se tornar o maior programa de lavagem de dinheiro da história, diz procurador

"Já que o dinheiro é lícito e o beneficiário está muito seguro disso, qual problema haveria de ele informar de onde veio se ele for provocado pelo Estado?", provoca Peterson Pereira

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – O projeto de regularizar e eventualmente repatriar ativos de brasileiros não declarados mantidos no exterior veio em momento inapropriado e pode trazer sérias consequências do lado da impunidade, sobretudo pela forma como o texto foi costurado. O pessimismo com os efeitos de uma das grandes esperanças do governo para melhorar o nível da arrecadação e implementar o ajuste fiscal está manifesto na fala do procurador Peterson de Paula Pereira, secretário de relações institucionais da Procuradoria Geral da República, que assinou, na semana passada, uma nota técnica fortemente contrária ao texto final de conversão do projeto de lei 2960/2015, relatado pelo deputado Manoel Júnior (PMDB-PB), previamente entrevistado por este portal.

Para ele, o projeto de anistia – agora ampliada para outros crimes além de sonegação fiscal e evasão de divisas – vai de encontro com as iniciativas internacionais de colaboração via troca de informações sobre correntistas que mantém recursos não declarados fora de seus países. Além disso, desmoraliza o processo de democratização do direito penal, oferecendo subterfúgios a uma categoria da sociedade pelos crimes que cometeu, em detrimento a outros que respondem por irregularidades. “Quando se chega lá, o Estado acaba encontrando mecanismos para proteção desse tipo de infração penal. Para nós, isso não é adequado”.

Para além do tratamento diferenciado a segmentos mais empoderados, Pereira faz duras críticas à impossibilidade de investigação sobre as declarações espontâneas previstas no projeto, o que, segundo ele, mitiga o trabalho do Ministério Público e da Polícia Federal e abre a porteira para uma forte onda de lavagem de dinheiro proveniente de crimes graves. O procurador teme que o Estado patrocine uma calamidade em um momento de grande perplexidade da população com “a quantidade de dinheiro fruto de corrupção”, descoberto por operações como a Lava Jato e a Zelotes recentemente. Em entrevista exclusiva ao InfoMoney, Peterson Pereira explicou melhor suas posições. Confira os destaques da conversa:

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InfoMoney – Sua posição contrária à repatriação, manifesta em documento recente, refere-se ao projeto original ou àquele relatado pelo deputado Manoel Júnior (PMDB-PB)?
Peterson de Paula Pereira – No Ministério Público Federal, existe um entendimento de que não há óbice do ponto de vista constitucional. É uma medida de política fiscal e criminal que o Executivo pode encaminhar ao Congresso Nacional e ele deliberar. O problema está no texto em si, que tem algumas brechas. Se não tivermos cuidado, ele pode se tornar o maior programa de lavagem de dinheiro patrocinado pelo Estado, em um momento inoportuno.

Temos consciência da necessidade de arrecadação do governo federal. Ele está em uma situação muito delicada, mas essa medida pode ter um custo ético muito significativo para o país. Ele pode ser positivo do ponto de vista da arrecadação, mas também pode trazer um desequilíbrio do lado econômico, com aquisição de empresas e a incursão desse dinheiro nos ativos financeiros. Isso sem entrarmos na discussão entre o lícito e o ilícito.

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IM – O senhor disse que existem brechas no relatório. Isso vem do início da discussão ou foi sendo aberto com a evolução do projeto?
PP – Ele foi ampliado no Congresso. Era mais restrito. Mas, de qualquer modo, o grande problema em uma proposição dessa natureza é que você tem que permitir ao Estado o acesso a essas informações para que os procedimentos de fiscalização detectem se esses valores trazidos ao país ou que permaneçam no exterior não tenham sido fruto de atividades criminosas, porque, na atual configuração do projeto, é suficiente que o beneficiário emita uma declaração dizendo que a origem desses recursos é lícita.

Portanto, é necessário que os órgãos de fiscalização possam ter acesso a essas informações. Essa é a recomendação de organismos internacionais como o GAFI (Grupo de Acção Financeira Internacional). Esse grupo de fiscalização das atividades financeiras ligadas à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo, em suas recomendações, observa a necessidade de se tornar transparente esse tipo de informação para que não se permita que problemas dessa natureza acabem sufragando a lavagem de dinheiro e toda a atividade criminosa que está por trás disso.

IM – O que o senhor entende por momento inoportuno?
PP – O momento está relacionado com as operações Lava Jato e Zelotes, em curso no país. O Ministério Público Federal, junto com seus parceiros – a Polícia Federal, o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), a Receita Federal – já conseguiu o repatriamento de R$ 1,6 bilhão e o bloqueio nacional e internacional de R$ 2 bilhões de bens e ativos. Isso ainda está no começo e resulta do melhor aparelhamento das instituições estatais. O MPF, pelo procurador geral da república, criou a Secretaria de Cooperação Internacional, instrumento para avançar esse trabalho de parceria internacional com diversos países para que possamos detectar movimentações financeiras suspeitas e consigamos acelerar o processo de repatriação desses valores externalizados de maneira ilícita.

O momento é inoportuno, porque a sociedade brasileira está perplexa com a quantidade de dinheiro fruto de corrupção. E não só essas duas operações. Existem outras menores que potencialmente poderão vir a público.

IM – O projeto promove anistia a crimes maiores, na medida em que proíbe o repasse das declarações à Polícia Federal e Ministério Público, não?
PP – No sentido original, o projeto torna-se coerente quando propõe anistia aos crimes de sonegação e evasão de divisas, que são os tipos penais próprios de quem remeteu ativos ao exterior de maneira não declarada. Mas, na medida em que se amplia em demasia os tipos penais, você começa a criar problemas para a investigação criminal. Pressupõe-se que a origem dos recursos seja lícita. Mas é difícil admitir isso. Boa parte desses recursos nos faz crer que são produto de atividade criminosa não descoberta ainda pelo aparelho estatal, e que é passível de descoberta na medida em que avançamos no compartilhamento de informações preconizado pelos organismos internacionais. Hoje há um acordo com os Estados Unidos, por exemplo. Os órgãos de investigação e persecução poderão ser informados, fazer investigação e conseguir o bloqueio de valores cujos beneficiários sejam do Brasil.

O projeto se dá em um momento em que começamos a avançar para a localização e identificação desses bens, e o aparato estatal reage de outro modo e acaba protegendo esse tipo de crime. No momento em que há uma democratização do direito penal, há uma seletividade e o Estado assina uma proposição que, na prática, pode permitir a lavagem de dinheiro de bilhões e bilhões. Quando se chega lá, o Estado acaba encontrando mecanismos para proteção desse tipo de infração penal. Para nós, isso não é adequado.

IM – Levando em consideração sua experiência no Ministério Público, quais seriam as principais práticas criminais que poderiam ser beneficiados dessa lei de repatriação?
PP – O crime de corrupção, crimes ligados ao tráfico…

IM – Por mais que eles não contem com anistia prevista na lei?
PP – Foi ampliada a previsão de não punibilidade para sonegação fiscal em contribuições previdenciárias – crime que ocorre principalmente na atividade empresarial –, descaminho, falsificação documental… A associação criminosa é perigosíssima: geralmente, caminha com outros tipos penais que não estão incluídos aqui. A lavagem de dinheiro também é gravíssima. A ampliação desses outros tipos penais irá criar embaraços e criar um problema grande para a prossecução penal e para a investigação.

IM – O professor Heleno Torres defende que a única diferença entre quem remeteu recursos de maneira irregular para o exterior e quem sonegou mas manteve o dinheiro no país – ilícito que pode ser regularizado com uma declaração espontânea e pagamento de multa e impostos – é a existência de uma fronteira no primeiro caso. Não seria razoável? Existe alguma maneira de se fazer uma repatriação justa?
PP – Penso que seria uma repatriação justa se fossem observados os parâmetros de transparência e que os órgãos de fiscalização tivessem a possibilidade de acionar e investigar toda essa cadeia de operações.

Já que o dinheiro é lícito e o beneficiário está muito seguro disso, qual problema haveria de ele informar de onde veio se ele for provocado pelo Estado? Haveria disponibilidade estatal para a checagem dessas informações, porque, do contrário, podemos permitir um amplo programa de lavagem de dinheiro.

Um agente público localizado na topologia do Estado, se comete um crime de corrupção e recebe US$ 100 milhões que estão em uma conta do exterior, basta que ele declare para as autoridades fazendárias do Brasil que o valor é lícito e ele vai poder movimentar esse dinheiro internamente. Isso vai ser assegurado pelo sigilo que está previsto no projeto de lei. É inadmissível. Não há como permitir isso.

IM – Com o FATCA seria necessário um projeto de anistia para que recursos de brasileiros no exterior fossem repatriados?
PP – Não. A partir desse compartilhamento das informações, com valores depositados por beneficiários brasileiros que não estejam declarados em seus impostos de renda, é possível abrir procedimento de investigação. Hoje, os mecanismos internacionais estão apertando cada vez mais. Não tenho dúvida que, tendo a boa vontade do Estado e acelerando nosso trabalho, tendo menos burocracia, vamos facilitar a repatriação desses valores que foram para o exterior de maneira ilícita, por prática de crime.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.