Reforma tributária pode ser aprovada mesmo sem o governo, diz Bernard Appy

Autor de uma das propostas em discussão no Congresso, economista critica idas e vindas do governo, mas vê ambiente inédito para mudanças

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – As idas e vindas do governo Jair Bolsonaro no debate tributário têm contribuído para um atraso na tramitação das propostas sobre o assunto no Congresso Nacional, mas não devem inviabilizar avanços ainda em 2020.

Para o economista Bernard Appy, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal), think tank autor de uma das proposições em discussão, há um ambiente político inédito no país, que favorece profundas mudanças no sistema tributário, mesmo que o Executivo assuma papel de coadjuvante no processo.

“O governo tem mudado de posição ao longo do tempo, então é difícil saber exatamente qual vai ser a posição [final]“, diz, em entrevista ao InfoMoney (assista à íntegra no vídeo acima).

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“Acho que [a proposta] avança, mesmo se o governo não entrar. Obviamente, fica mais fácil com o governo entrando. Mas tem uma possibilidade de aprovar mesmo se o governo ficar fora da discussão. Só que, neste caso, o governo vai ser atropelado, porque vão ser feitas mudanças que vão afetar não só estados e municípios, mas também a União.”

O perfil reformista do parlamento, o surpreendente apoio dos governadores e empresários e a evolução das discussões ao longo dos anos, diz o economista, criaram um clima apropriado para que uma reforma tentada há décadas enfim possa sair do papel.

Pelos seus cálculos, se os legisladores aprovarem a PEC 45/2019, versão da qual participou da construção, o PIB (Produto Interno Bruto) potencial do país poderá aumentar até 20 pontos percentuais em 15 anos, seja por ganhos de eficiência na produção e na alocação de recursos, seja a partir da redução de custos burocráticos e contenciosos tributários.

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Para Appy, a criação de uma comissão mista, composta por deputados e senadores, deve contribuir na construção de consenso para que a reforma tributária ganhe tração para seguir tramitação nas duas casas legislativas.

Por se tratar de proposta de emenda constitucional, o texto precisa passar por comissão especial e dois turnos de votação na Câmara dos Deputados, com necessidade de apoio de 3/5. No Senado, a proposição precisa passar pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) e, também, por dois turnos de votação em plenário, com a mesma proporção de votos da outra casa.

O economista acredita que os governadores deixaram de representar o principal obstáculo à reforma – “no agregado, estão todos perdendo”, diz. Ele argumenta que seria um erro se a preocupação em não se avançar com a discussão motivasse uma restrição do debate a uma reforma apenas de impostos federais.

Na avaliação de Appy, o desafio maior está em superar as resistências de setores específicos da economia, que se veem prejudicados pelas mudanças a serem implementadas. “Há questões setoriais que vão aparecer. Acho que essas vão ser as que vão exigir maior trabalho para poder viabilizar aprovação, mais até do que as federativas”, afirmou. A entrevista foi feita na quinta-feira (13).

Confira os principais assuntos tratados:

1. Ambiente favorável 

Há uma conjunção de fatores políticos que ajuda na aprovação da reforma tributária: 1) É um Congresso claramente reformista, que assumiu a reforma tributária como uma de suas prioridades; 2) Uma das maiores dificuldades no passado foi a posição dos governadores. Hoje, temos os 27 secretários estaduais de Fazenda apoiando uma reforma que substitui o ICMS pelo Imposto sobre Bens e Serviços de base ampla, sem benefícios fiscais, cobrado no destino. 3) Quanto mais passa o tempo, mais os empresários brasileiros percebem que nosso sistema tributário está impedindo o país de crescer; 4) Do ponto de vista técnico, há um amadurecimento das propostas. A nossa, por ter duas transições (uma de 10 anos, para os contribuintes, e outra de 50 anos, para a distribuição das receitas aos entes federados), facilita a aprovação, porque dilui o impacto de mudanças nos incentivos ao investimento em relação ao sistema atual e faz com que isso ocorra de forma suave ao longo do tempo.

2. Por que começar no consumo? 

Temos quatro principais categorias de tributos: 1) consumo ou tributos sobre bens e serviços; 2) renda; 3) folha de salários; 4) tributos sobre propriedade. No Brasil, a agenda deveria envolver todas, principalmente as três primeiras, que são as mais relevantes em termos de arrecadação. As razões para começar com a tributação do consumo são duas: é a discussão mais madura porque já vem há décadas e vem amadurecendo ao longo do tempo; e, do ponto de vista de impacto sobre potencial de crescimento do país, é claramente mais importante. No caso da PEC 45/2019, estamos falando em um aumento do PIB potencial que pode superar 20 pontos percentuais em 15 anos, se aprovada. Não é [um impacto] todo de curto prazo, mas no longo prazo é enorme.

3. Diferenças entre as propostas

Há diferenças que são questões de escopo. A PEC do Senado (110/2019) tem um escopo maior que a da Câmara (45/2019). Ela também alcança alguns tributos patrimoniais, propõe tributar IPVA sobre lancha, jato, e tem mais tributos incluídos no IBS. E quanto mais tributos, mais alta vai ter que ser [a alíquota do] o imposto, mas essa é uma decisão que vai ter que ser tomada.

Há ainda diferenças de prazos de transição e diferenças do ponto de vista federativo. A PEC do Senado tem várias alíquotas, mas elas são fixas no Brasil inteiro e não dá autonomia aos entes da federação. Na PEC da Câmara, há uma alíquota uniforme para todos os bens e serviços, mas os entes da federação têm autonomia de mudar sua parte.

Na comissão especial [a ser instalada no Congresso Nacional], vai acabar havendo uma convergência entre as duas propostas. Acho positiva essa ideia da comissão mista – ela facilita, embora não seja formal.

4. O papel do governo

O governo vem mudando de posição ao longo do tempo, então é difícil saber exatamente qual vai ser a posição [final]. Primeiro estava o Marcos Cintra, que defendia uma mega CPMF – aparentemente essa ideia foi, pelo menos temporariamente, abandonada. De vez em quando, ela volta, é uma ideia zumbi.

Há pouco tempo, tinha a ideia de fazer um IVA federal, só para o lugar do PIS/Cofins. Ontem (quarta-feira), Paulo Guedes estava falando em um IVA dual: um federal e outro subnacional. Agora vamos ter que esperar para ver, mas no geral todas [as propostas] convergem para a ideia de ter um imposto com características de um bom IVA. Se vai ser um imposto ou dois, é uma questão ainda em aberto, mas o fato de o governo não ter entrado antes na discussão atrasou. Se o governo tivesse entrado antes, provavelmente já estaria mais avançada.

Acho que [a proposta] avança, mesmo se o governo não entrar. Obviamente, fica mais fácil com o governo entrando. Mas tem uma possibilidade de aprovar mesmo se o governo ficar fora da discussão. Só que, neste caso, o governo vai ser atropelado, porque vão ser feitas mudanças que vão afetar não só estados e municípios, mas também a União. Do ponto de vista da distribuição federativa de receita, há questões que estão dentro da reforma que vão acabar afetando a União.

5. Reforma sem estados? 

A grande questão é que há um ambiente político para fazer uma reforma que alcance estados e municípios. Vinte e sete secretários de Fazenda estão apoiando uma reforma que acabe com ICMS. É coisa que nunca aconteceu no Brasil, desde a Constituição de 1988. É muito estranho perder essa oportunidade dizendo ser difícil incluir estados na reforma, quando eles estão querendo entrar, explicitamente. Os próprios estados perceberam que a guerra fiscal não está adiantando mais para eles, virou um jogo de perde-perde. Além disso, o que é possível mudar no Brasil com uma reforma que trata só de tributos federais? Vale a pena todo o custo político para resolver só 10% do problema, quando existe ambiente para resolver 95%?

6. Apoio dos governadores: até que ponto? 

Acho que é para valer. Dizem que São Paulo perde receita – nossa estimativa é menos que esses R$ 21 bilhões [estimados por estudo feito pelo Ipea] –, mas ganha enormemente com o aumento potencial de crescimento do país e com o fim da guerra fiscal. O [secretário Henrique] Meirelles tem apoiado a proposta claramente. Então, existe, do ponto de vista dos estados, um ambiente favorável para avançar com a reforma tributária. É uma oportunidade que seria um grande erro ser perdida.

Há uma discussão específica que os estados mais pobres reclamam de perder a possibilidade de benefício fiscal. Tem uma demanda por um Fundo de Desenvolvimento Regional, mas isso estava desde o começo colocado como parte da reforma. Tem a questão da Zona Franca, que também talvez exija um tratamento diferenciado.

Há também alguma preocupação dos grandes municípios com relação ao impacto da reforma, já que eles são mais afetados pela mudança da tributação para o destino. Mas é uma discussão de como fazer um modelo de compensação de perdas, que acho que dá para equacionar essa questão.

Portanto, do ponto de vista federativo, a chance hoje de conseguir aprovar uma reforma tributária é bastante grande. Há questões setoriais que vão aparecer. Acho que essas vão ser as que vão exigir maior trabalho para poder viabilizar aprovação, mais até do que as federativas.

7. Desoneração da folha 

A mudança na tributação da folha é importante, mas não uma desoneração linear como o governo tem proposto. O bom modelo de tributação da folha é um em que se cria uma relação unívoca entre tributação e benefício. Você paga sobre a folha e está financiando o benefício.

8. CPMF

O financiamento é outra questão. Pessoalmente, acho que existe uma possibilidade de o financiamento ser feito via mudança no Imposto de Renda, mas essa é uma questão que tem que ser colocada, talvez não esteja totalmente madura no Brasil, mas não precisa de uma CPMF para financiar. A CPMF é um imposto distorsivo, que funciona bem com alíquota baixa e juro alto e muito mal com alíquota alta e juto baixo.

O Brasil hoje está com juro baixo, muito mais baixo do que quando tínhamos CPMF. O custo tributário de desintermediação para não pagar esse imposto, no passado, era muito alto, que é a perda de rentabilidade em um país que tinha juro muito alto. Hoje ele está muito mais baixo. Quanto mais baixo o juro, maior o incentivo que a CPMF promove para a desintermediação financeira. Seria um incentivo para desorganizar a economia, fora todos os problemas de incidência cumulativa. Quem tem CPMF hoje é Argentina, Venezuela. É nesses países que queremos nos inspirar para montar o sistema tributário brasileiro?

9. Regressividade 

O modelo que está na PEC 45 reduz a regressividade. Hoje, a tributação como proporção do consumo é basicamente flat (equilibrado) entre família de baixa renda e alta renda. Família de baixa renda paga menos imposto por causa da desoneração da cesta básica e família de alta renda paga menos imposto por consumir mais serviços (e serviços pagam menos impostos do que mercadoria no Brasil).

Na proposta da PEC 45, será adotada alíquota uniforme para tudo, mas será devolvido às famílias mais pobres o imposto incidente sobre seu consumo, com limite. Em vez de desonerar a cesta básica, cobra-se imposto sobre tudo (inclusive a cesta básica). Neste caso, a família pobre apresenta o CPF no momento da compra e é devolvido, no mês seguinte, via crédito no cartão dos programas sociais ou crédito em conta, o imposto incidente no seu consumo com um limite.

Dependendo de como se calibra esse limite, na prática é possível aumentar em 5 pontos percentuais o poder de compra dos 10% mais pobres ou mais. Na proposta que fizemos, isso é decrescente até os 40% mais pobres, e para os 60% mais ricos, seria um aumento minúsculo da tributação para financiar esse modelo.

Essa mudança seria mais progressiva do que o modelo atual. O resto da discussão sobre progressividade ou regressividade passa por outras categorias de tributos. Acho que vamos ter que enfrentar essa discussão de tributação da renda, tributação da folha e tributação do patrimônio. Nessas três áreas, há mudanças importantes para fazer que têm um impacto muito forte sobre a progressividade do sistema tributário brasileiro.

10. Tributação sobre investimentos 

A discussão sobre tributação sobre a renda ainda está muito verde. Não sei se há condições de fazer conjuntamente com a discussão da tributação sobre o consumo agora. Há muitas ideias, mas uma coisa é importante: quando fizer uma mudança [no sistema tributário], tem que ser bem feita, porque uma das características de um bom sistema tributário é estabilidade. Quando mudar, mude de uma vez para não ter que ficar mexendo depois. No caso de renda, ainda falta uma boa discussão sobre o que deve ser feito no Brasil.

11. Imposto sobre FIIs

Acho que FII é uma distorção. Qual é a renda de uma pessoa que compra uma cota de FII? É uma cota de aluguel. É uma pessoa física recebendo aluguel de um imóvel. Se a pessoa física recebe direto, ela vai pagar 27,5% de imposto. Se ela monta uma empresa de lucro presumido, vai pagar de 11,3% a 14,5% de imposto. Se recebe através de um FII com cota negociada em bolsa, vai pagar zero. Desculpa, está errado. Do ponto de vista econômico, é preciso decidir quanto aluguel paga de imposto. Não pode ser 27,5%, 14% ou zero, dependendo do jeito como você recebe aluguel.

É parecido com [a situação envolvendo] PJ e CLT. Em um bom sistema tributário, se a pessoa tem renda de R$ 10 mil, R$ 20 mil por mês, ela tem que pagar o mesmo imposto, seja PJ (pessoa jurídica), seja pessoa física, autônomo ou empregado. O sistema tributário não pode favorecer uma forma de organização em detrimento de outra. Isso é ruim do ponto de vista distributivo e do ponto de vista de eficiência econômica. Seria mais eficiente ter uma empresa com empregados do que ter um monte de PJ atuando autonomamente. Só que o Brasil empurra a ter um monte de PJ por razões tributárias. Para economizar imposto, as pessoas se organizam de uma forma que pode ser menos eficiente e reduzir o potencial de crescimento do país.

O PIB industrial no Brasil está caindo? Sim. O valor agregado na indústria é muito mais tributado do que o valor agregado em serviços, por exemplo. É um sistema que induz você a agregar valor em um setor que pode ser menos eficiente que outro. O sistema tributário não deveria distorcer esse tipo de alocação. O bom sistema tributário é neutro, não distorce a forma como a economia se organiza.

12. Distorção no sistema 

Tem de tudo. No simples, tem gente que ganha R$ 10 mil por mês e está pagando uma alíquota efetiva de 1,4% no Imposto de Renda – na soma do que paga no simples e o que paga na pessoa física. Há pessoas no lucro presumido que pagam 7% no Imposto de Renda recebendo R$ 50 mil por mês. É óbvio que temos distorções que precisam ser corrigidas, quando um empregado formal que ganha mais de R$ 5 mil está pagando 27,5% na margem.

13. Críticas 

As pessoas que criticam não apresentam nenhuma solução. Do ponto de vista de tributação sobre o consumo, a PEC 45 resolve o problema, porque adota uma regra uniforme e extremamente simples. O consumo de qualquer intangível que se faz pela nova economia vai ser tributada com alíquota padrão.

Hoje, quando uma pessoa está comprando um software pela internet ou algo pela Amazon ou o Alibaba, a complexidade do sistema tributário brasileiro torna quase impossível para o vendedor no exterior cumprir com a obrigação no Brasil. A simplificação da PEC 45 permite tributar a economia digital na tributação do consumo.

A discussão que está tendo internacionalmente da tributação da nova economia está se dando na tributação da renda. Neste caso, há problemas complexos que o mundo não conseguiu resolver ainda.

14. Combustíveis 

A discussão da reforma tributária vai abrir uma oportunidade para discutir tributação em geral, inclusive sobre os combustíveis. Pessoalmente, acho que não faz sentido nenhum uma tributação menor para combustível do que para outros bens e serviços. O mundo todo discute como tributar mais combustível fóssil para poder ter menos emissão de gás efeito-estufa e estimular mais o transporte público e aqui estamos indo na contramão.

15. Calendário

O meu trabalho é de apoio técnico, não cuido da política. Mas, se o presidente da Câmara está dizendo que é possível aprovar neste primeiro semestre… Ele entende muito mais de política do que eu. Então, acredito que seja possível. É uma questão de construção política. Mas essa pergunta é para ser feita para os políticos, não para mim. Meu trabalho é ajudar que o que saia do Congresso seja o melhor possível, do ponto de vista técnico.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.