Reforma da previdência é desafio, mas está longe de ser o único, diz economista

Para Zeina Latif, a recuperação da economia brasileira depende de uma agenda mais ampla

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A reforma da Previdência é vital para o país, mas apenas isso não garantirá a recuperação da economia brasileira. A análise foi feita por Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos, ao concluir um balanço dos primeiros 100 dias do governo de Jair Bolsonaro.

Na sua avaliação, a retomada depende de uma agenda ampla, que inclua melhorias no sistema tributário, no ambiente regulatório e na segurança jurídica.

Zeina acredita que o governo conseguirá aprovar a reforma, mas com um conteúdo menos ousado que o proposto pela equipe econômica, que prevê uma economia de cerca de R$ 1 trilhão em dez anos. Na sua avaliação, há um risco real de o impacto fiscal ser menor do que o estimado para a proposta feita durante a presidência de Michel Temer (cerca de R$ 690 bilhões).

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Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

IM – Quando o ano começou, havia uma expectativa de que o PIB cresceria em torno de 2,5%. Hoje, a estimativa média dos analistas do mercado financeiro está abaixo de 2%. Houve excesso de otimismo nas projeções?

ZL – A decepção começou em 2018. Com o ajuste da política econômica do governo anterior foi possível colher inflação e juros mais baixos. O ano passado era o momento de colher uma aceleração do PIB, mas isso não aconteceu.

Há diferentes leituras sobre isso. Para muitos, os responsáveis foram os choques que impactaram a economia, como a greve dos caminhoneiros e a crise argentina. Neste caso, superados os choques, haveria grande espaço para aceleração do crescimento em 2019.

Acho que o principal problema é de outra natureza e compromete o cenário deste ano. No caso da greve dos caminhoneiros, uma economia saudável não sofreria o baque que sofreu com a paralisação. Haveria uma queda, e, em seguida, uma compensação – o que não aconteceu. A economia apenas voltou ao patamar original.

A economia brasileira ainda está muito frágil, sofrendo as consequências da grave recessão. Parte do setor produtivo não conseguiu se beneficiar do corte da taxa Selic simplesmente porque ainda está em situação financeira complicada, com dificuldade de acesso ao crédito e ao mercado de capitais. Empresas em dificuldade financeira geram poucas vagas de trabalho. A taxa de desemprego pouco caiu. Portanto, o impulso do consumo é limitado.

Outro fator, mais importante, que eu não esperava que fosse se manifestar tão rapidamente: nosso baixo potencial de crescimento recuou. O comportamento da economia, e também da inflação, que deixou de recuar, sugere que temos um potencial baixo, provavelmente abaixo de 2%. A produtividade caiu no Brasil.

A razão são os equívocos de políticas públicas. Tivemos um problema sério de má alocação de recursos, em que construímos estádios em vez de aumentar nossa infraestrutura, em que houve intervencionismo estatal muito grande, com políticas como a de campeões nacionais, intervenção em preços de energia, e por aí vai.

Em função dos retrocessos institucionais, tivemos o setor produtivo investindo pouco. Há capacidade ociosa, mas que acho que a qualidade deve ser seja baixa. Trocando em miúdos, há empresas com capacidade ociosa, mas de máquinas depreciadas.

Temos desemprego elevado, mas uma massa de trabalhadores sem qualificação e treinamento. Há muita gente desempregada há mais de um ou dois anos, a capacidade de recolocação é complicada. Portanto, na minha visão, a agenda de crescimento é outra. Claro, a Selic baixa é o início da conversa.

IM – O Banco Central pode reduzir mais os juros?

ZL – Não vejo espaço para corte da Selic tão cedo. A inflação não está mais caindo, apesar da fraqueza da economia, o que reforça a avaliação de potencial de crescimento baixo.

Mesmo que haja corte da Selic, isso não vai fazer o país crescer 3% ou 3,5%. Há algo mais sério acontecendo na economia brasileira. Minha avaliação é que, mesmo que uma boa reforma da Previdência passe e o BC tenha condições de cortar juros, o quadro não vai mudar substancialmente. Até porque o próprio espaço para corte de juros nesse cenário também seria o que chamamos de sintonia fina. Não é que há um caminhão de juros para serem reduzidos.

A expansão da economia brasileira depende de diferentes fatores, e apenas a reforma da Previdência não vai resolvê-los. Não há como termos uma arrancada sem a definição de uma agenda econômica.

Hoje, o empresário convive com o “custo Brasil” e não sabe qual vai ser a carga tributária no ano que vem, como vai estar o ambiente econômico. Isso atrapalha as decisões. Sem contar que, se a reforma da Previdência demora tanto para ser aprovada, o país fica em compasso de espera.

Há outra agenda que precisamos ver: reforma tributária, ambiente regulatório, segurança jurídica. E não estamos vendo por ora o que vai ser daqui para frente. Muitos alegam que está cedo e o governo não está querendo gastar energia com outra coisa que não a Previdência. Tudo bem, vamos ter de aguardar, mas tem uma incerteza aqui.

IM – A expectativa de um crescimento mais baixo da economia mundial também preocupa. Quais podem ser os impactos desse cenário para o Brasil?

ZL – Pior do que crescer menos é não saber qual o piso, quando vai parar de desacelerar. Isso produz incertezas. Tudo isso impacta o Brasil, pelo canal do comércio, do fluxo financeiro e do crédito. E isso acontece num momento em que o Brasil está crescendo pouco. Crescimento baixo torna o país mais vulnerável a choques. O impacto das dificuldades externas no país é potencialmente maior.

O que ajuda é que começa a haver alguma divergência entre analistas, principalmente por causa da China. Há uma parcela crescente que vê que o pior já passou na China, e os sinais na margem são de uma economia que começa a ganhar tração, fruto das políticas de estímulos que estão sendo feitas desde meados do ano passado. Se isso for correto, vai ajudar o comércio mundial e conter a desaceleração mundial. Eu acho que está um pouco cedo para celebrarmos. Pode ser, mas temo que esses indicadores recentes sejam sinais ainda falsos. Indicador de curto prazo oscila, temo que ainda haja desaceleração por vir.

IM – Por outro lado, há sinais de que poderá haver acordo entre China e Estados Unidos em suas disputas comerciais. O que espera para esse imbróglio?

ZL – O que fica muito claro é que há uma guerra comercial que vai ter solução em breve. Não necessariamente rápida, no sentido de já estabelecer o desmonte das barreiras tributárias, mas se cria um cronograma. Há incentivos dos dois lados para uma solução: para Trump até pela questão eleitoral, e para China pelas razões óbvias, está machucando sua economia. Além disso, a China tem uma preocupação com risco de instabilidade social. Há uma geração de jovens que só pegou o país crescendo muito. Há uma preocupação de eles não lidarem bem com a desaceleração. A frustração pode ser muito grande.

Agora, uma questão de médio e longo prazo e que vai ter mais capítulos é a discussão tecnológica e do poderio político da China. O protagonismo que a China vem atingindo há um tempo é muito grande e há claramente um desconforto nos Estados Unidos.

IM – Ao fazer acenos aos Estados Unidos e dar declarações controversas sobre a China, o atual governo brasileiro está apostando no cavalo errado?

ZL – A julgar pelo que vemos de posicionamento da nossa diplomacia e especialistas, precisa prevalecer o pragmatismo e não podemos melindrar nossa relação com a China. Isso dói no bolso.

O Brasil, em nossa tradição diplomática, nunca foi de tomar lados. Fala-se muito da ideologia da esquerda, acho que teve influência, mas temos uma vocação de diálogo, de unir os que estão brigando e tentar ser aquele sujeito camarada que ajuda a fazer pontes. Acredito que esse pragmatismo vai prevalecer, mas em um ambiente de ruído.

InfoMoney – Muitos analistas esperam que a reforma da Previdência seja desidratada no Congresso. Qual é o tamanho do esforço fiscal que você imagina que seja possível aprovar?

Zeina Latif – É difícil dar essa resposta. Há um grau de incerteza razoável. Quando fizemos uma pesquisa com nossos clientes, a expectativa era de uma reforma entre R$ 700 bilhões e R$ 800 bilhões. Pessoalmente, achei muita coisa. Acredito que há um risco real de ser menos do que a do Temer, na versão que iria para plenário em 2017.

Há um quadro de queda da popularidade de Bolsonaro, que, apesar de inevitável, está chamando a atenção pela velocidade. Ela tem sido mais rápida do que o padrão dos antecessores. Isso pode impactar o ambiente político e atrapalhar a reforma.

Acho razoável isso ter acontecido. A campanha foi ruim. Tudo bem, não se negou a necessidade de reforma da Previdência, mas não existiu o candidato Bolsonaro de fato deixando claro que era algo essencial. Alimentou-se a crença da sociedade de que o combate à corrupção, que é necessário, já iria dar conta de melhorar a vida das pessoas. E isso não é verdade.

A vida das pessoas não melhorou, a taxa de desemprego não está caindo. Pelo contrário, as últimas leituras mostram um aumento [do desemprego]. Não temos um indicador para a qualidade dos serviços públicos, mas acho que é razoável imaginar que estão piorando e vão piorar antes de melhorar. Os estados estão em crise. A sociedade não sabe que aquilo é do estado, não do governo federal; ela vê que a vida não melhorou.

Vamos lembrar que o discurso de muitos era que, passada a eleição, veríamos aceleração de investimento, contratações, porque teria muita coisa reprimida. Isso não é verdade. O Brasil é um país com economia muito frágil. Não é porque passou a eleição que vai descongestionar planos de investimentos e contratações.

IM – A consultoria de risco político Eurasia Group trabalha com um cenário em que o gatilho para a perda de popularidade de Bolsonaro é justamente a piora na percepção sobre a qualidade dos serviços públicos.

ZL – O Christopher Garman [diretor para Américas da Eurasia] levantou um ponto que eu concordo, de um presidente que é muito sensível à opinião pública e às redes sociais. O Congresso também é sensível. Imagine votar a reforma da previdência no segundo semestre nesse contexto, em que o Congresso começa a olhar a agenda da eleição de 2020, em que o presidente está com popularidade em queda. Então, o risco de desidratação é ainda maior. E o jogo das negociações não começou ainda. Há diversas categorias do funcionalismo com capacidade de mobilização e de pressão no Congresso.

Infelizmente, há mais um elemento que me deixou surpresa: a proposta dos militares. Eu imaginava que os militares, com tanta participação no governo… Esse protagonismo vem junto com a responsabilidades. Eles precisavam ter aceitado uma reforma mais ambiciosa.

IM – Isso também pode contribuir para desidratar a reforma?

ZL – Sim, pelo efeito em cadeia. Esse efeito impacta em policiais militares e bombeiros – e portanto, atinge os estados. Mas tem mais. Richard Back, nosso analista político, levantou um ponto: outras categorias vão perguntar por que os militares puderam fazer a própria proposta e elas não. Poderá haver questionamentos de outros setores ligados à segurança, como agentes penitenciários, polícia civil, guarda civil. E por aí vai.

Eu até entendo que havia uma demanda muito forte para recomposição de remunerações, mas não deveria ser agora. Ainda mais que esse é um discurso que não sensibiliza a sociedade, porque a taxa de desemprego está em patamares recordes. Infelizmente, nesse quesito começou mal.

Fiquei muito bem impressionada com o time da previdência, acho que foi um tremendo acerto do Paulo Guedes. Para um time desses, só se podia esperar uma reforma de boa qualidade. Agora, o primeiro passo do presidente foi de enfraquecer. Portanto, acho difícil não haver uma desidratação grande. A política é fluida, mas hoje o retrato é de uma reforma desidratada.

Por outro lado, acho pouco provável um quadro em que nenhuma reforma é aprovada. O debate econômico avançou muito. Isso foi um legado do time anterior, que trouxe o tema para o debate público. Tanto é que no desentendimento entre Rodrigo Maia e Bolsonaro, a reação de parcela de lideranças do Congresso foi uma avaliação para deixar de lado a proposta de Bolsonaro e dar prosseguimento à do Temer. Mesmo que este seja um cenário pouco provável, ele é simbólico. Ninguém falou em não aprovar nada. Hoje existe uma consciência da classe política de que, sem reforma da Previdência, o país vai entrar em colapso. E no colapso, não há ganhadores.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.