Reações do mundo jurídico ao uso das Forças Armadas por Michel Temer

A medida tomada pelo governo em resposta às manifestações ocorridas em Brasília se contraporia ao que estabelece a Constituição Federal e lei complementar que trata de tal uso da força

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A decisão do governo Michel Temer por convocar as Forças Armadas, para o período de uma semana, em resposta às manifestações ocorridas em Brasília nesta quarta-feira (24) representa uma afronta ao ordenamento jurídico vigente. Essa é a avaliação de juristas consultados pelo InfoMoney, na condição de anonimato. Para eles, o uso do dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem foi feito em desacordo com a constituição e lei complementar que trata da questão.

A determinação do governo apareceu em decreto publicado nesta tarde, em edição extra do Diário Oficial da União, e foi anunciada pelo ministro da Defesa, Raul Jungmann, que, em pronunciamento à imprensa no palácio do Planalto, disse que “em uma manifestação que estava prevista como pacífica, degringolou a violência, o vandalismo, o desrespeito, a agressão ao patrimônio público e a ameaça às pessoas”.

O titular da pasta informou ainda que tropas federais estavam nos palácios do Planalto e Itamaraty e que estariam chegando tropas para “assegurar que os prédios dos ministérios sejam mantidos incólumes”. Segundo Jungmann, a decisão veio após pedido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O parlamentar, por sua vez, disse que havia pedido a Temer o emprego da Força Nacional, não das Forças Armadas, e criticou o que entendeu como “excesso” de tempo determinado pelo governo para a medida — até 31 de maio.

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Abaixo a íntegra do decreto, com vigor imediato:

No parlamento, a oposição tentou mobilizar-se para anular a decisão. Houve briga, suspensão temporária da sessão e, por fim, a saída da oposição do plenário da Câmara — o que, na prática, acabou significando uma espécie de tiro pela culatra, por garantir maior tranquilidade ao governo na aprovação de seis medidas provisórias. No Senado, tentou-se, por questão de ordem, exigir convocação de sessão do Congresso para derrubar o decreto, além de mandado de segurança protocolado junto ao Supremo Tribunal Federal.

O que dizem os juristas

A medida tomada pelo governo em resposta ao que o ministro Raul Jungmann classificou como “violência, vandalismo, desrespeito, agressão ao patrimônio público e a ameaça às pessoas” se contrapõe ao que estabelece o ordenamento jurídico para o emprego das Forças Armadas, dizem os especialistas ouvidos por esta reportagem. Eis o raciocínio dos críticos ao decreto editado:

A Constituição Federal prevê (os grifos são desta reportagem):

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

A lei complementar que trata da questão é a de número 97, datada de junho de 1999, que determina (os grifos também são desta reportagem):

Art. 2º O Presidente da República, na condição de Comandante Supremo das Forças Armadas, é assessorado:
I – no que concerne ao emprego de meios militares, pelo Conselho Militar de Defesa; e
II – no que concerne aos demais assuntos pertinentes à área militar, pelo Ministro de Estado da Defesa.

§ 1º  O Conselho Militar de Defesa é composto pelos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica e pelo Chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.

§ 2º Na situação prevista no inciso I deste artigo, o Ministro de Estado da Defesa integrará o Conselho Militar de Defesa na condição de seu Presidente.

Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação:

§ 1º Compete ao Presidente da República a decisão do emprego das Forças Armadas, por iniciativa própria ou em atendimento a pedido manifestado por quaisquer dos poderes constitucionais, por intermédio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados.

§ 2º A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal.

§ 3º Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

§ 4º Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3º deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem.

§ 5º Determinado o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, caberá à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações, a qual deverá constituir um centro de coordenação de operações, composto por representantes dos órgãos públicos sob seu controle operacional ou com interesses afins.

§ 6º Considera-se controle operacional, para fins de aplicação desta Lei Complementar, o poder conferido à autoridade encarregada das operações, para atribuir e coordenar missões ou tarefas específicas a serem desempenhadas por efetivos dos órgãos de segurança pública, obedecidas as suas competências constitucionais ou legais.

Na avaliação dos especialistas consultados, a ação do presidente Michel Temer não respeitou o esgotamento de todos “os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, que trata a lei complementar e também o decreto de número 3.897, editado durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Sob esse ponto de vista, trata-se de uma violação das condições estabelecidas.

“Michel Temer usou um atalho institucional ilegal”, afirmou um jurista que não quis se identificar. Eloísa Machado, coordenadora do curso de Direito da Fundação Getulio Vargas foi além: “Medida autoritária, inconstitucional e ilegal. Uma afronta às liberdades públicas, claro crime de responsabilidade”. Seu colega Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional na mesma instituição e coordenador do Supremo em Pauta, classificou o episódio como um “flerte perigosíssimo com o estado policialesco sem limites”.

Em resposta às críticas, o ministro Raul Jungmann disse ao blog do jornalista Gerson Camarotti que o presidente editou o decreto porque as forças policiais não lograram controlar os atos de vandalismo — avaliação que foi discordada pelo governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg. “A Polícia Militar, ela não conseguiu conter o vandalismo, não conseguiu conter o incêndio nos prédios, inclusive provando risco a vida das pessoas. Nesse instante, compete à autoridade responsável que é o presidente da república tomar uma medida para restabelecer a ordem e garantir a vida das pessoas e o patrimônio público. E foi isso o que o presidente fez”, argumentou. “Eu, por exemplo, estou aqui no ministério há um ano e já tive que agir em oito casos empregando a garantia da lei e da ordem. Portanto, nada mais constitucional, nada mais democrático. Até porque não existe democracia sem ordem. A ordem é fundamental para democracia”.

No mesmo sentido, o presidente Michel Temer afirmou, por meio de sua assessoria, que “não hesitará em exercer a autoridade que o cargo lhe confere sempre que for considerado necessário”. Uma nota enviada pelo governo ao Congresso Nacional, em meio ao acirramento dos ânimos, dizia que o decreto teve “a única intenção de garantir uma manifestação pacífica e não destrutiva, buscando preservar a ordem pública e a segurança das pessoas”. A medida do peemedebista, porém, não é exclusiva. Em 2013, a ex-presidente Dilma Rousseff também recorreu aos militares para proteger o palácio do Planalto e os ministérios em resposta à onda de manifestações pela qual o país passava. De lá para cá, o dispositivo da Garantia da Lei e da Ordem foi usado em operações no Rio de Janeiro, a crise do sistema prisional no Rio Grande do Norte, o motim de policiais militares no Espírito Santo e eventos como a Copa do Mundo e a Olimpíada, dentre outras situações.

Para alguns, a iniciativa de Temer se aproxima de um prelúdio de Estado de Defesa informal — o que não seria possível afirmar pelas atuais ações. Para que tal mecanismo fosse usado, teriam de ser respeitados os requisitos de “ordem pública ou paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional”, conforme pontua o art. 136 da Constituição Federal. Nestes casos, estaria autorizada a suspensão de pontos sensíveis de liberdades individuais — como reuniões, sigilo de correspondência e sigilo de comunicação telefônica. O que não ocorreu. O mesmo dispositivo prevê que, para que o presidente possa fazer uso do Estado de Defesa, sejam ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, assim como submeter o ato ao Congresso Nacional dentro de 24 horas.

Eis o trecho citado na carta magna:

Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

I – restrições aos direitos de:

a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;

b) sigilo de correspondência;

c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;

II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.

Apesar de verem irregularidades nos atos do presidente, embora haja distância do último cenário aqui destacado, os juristas não têm posição unânime se tal medida configuraria crime de responsabilidade — o que, em tese, poderia embasar pedido de impeachment.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.