Mandetta: “Hoje, 410 mil vidas me separam do presidente”; veja os destaques da oitiva na CPI

Em mais de 7 horas de depoimento, ex-ministro diz que Bolsonaro contrariou recomendações científicas e que conduta teve "impacto" no agravamento da pandemia

Marcos Mortari

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta em oitiva na CPI da Pandemia (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

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SÃO PAULO – O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta inaugurou, nesta terça-feira (4), a fase de oitivas da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado Federal, que investiga ações e omissões do governo federal no enfrentamento à Covid-19 e o uso de verbas federais na crise sanitária.

Dentre os principais pontos abordados no depoimento, que durou mais de 7 horas, o ex-ministro fez avaliações sobre o comportamento adotado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a pandemia, apresentou detalhes sobre sua relação com o mandatário e com outros membros do governo, defendeu o respeito à ciência e avaliou condutas adotadas no enfrentamento da crise.

Durante a fala, Mandetta salientou as divergências entre ele e o presidente, sobretudo em temas como as políticas de distanciamento sociais – usadas mundo afora como instrumento para frear a transmissão do vírus Sars-CoV-2 – e o uso de medicamentos com eficácia não comprovada para tratar a Covid-19.

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Em suas palavras, o comportamento de Bolsonaro causou “impacto” no agravamento da pandemia no país e pode ter motivado um aumento no número de mortes causados pela doença. “Em tempos de epidemia, você tem que ter fala única. O raciocínio não é individual, esse vírus ataca a sociedade como um todo”, salientou.

O ex-ministro criticou a ausência de uma campanha nacional de comunicação sobre o novo coronavírus, disse ter alertado inúmeras vezes Bolsonaro sobre a gravidade da pandemia (inclusive com apresentação de estimativas de óbitos até dezembro de 2020) e lamentou a descontinuidade de iniciativas lançadas durante sua gestão à frente da pasta.

Em um dos momentos destacados do depoimento, Mandetta narrou uma reunião convocada por Bolsonaro em que se especulou a possibilidade de se alterar, por decreto, bula da cloroquina para que o medicamento passasse a ser indicado no tratamento da doença. O movimento, contudo, teria sido debelado pela resistência do próprio ministro e do diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) Antônio Barra Torres.

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Segundo o depoente, Bolsonaro contava com uma espécie de assessoramento paralelo, muitas vezes com recomendações que iam de encontro ao que era preconizado pelo próprio Ministério da Saúde. Durante a sessão, foram relatados, inclusive, episódios que denotam a participação ativa dos filhos do presidente na tomada de decisões envolvendo a crise sanitária.

A participação de Mandetta na CPI marcou uma busca pela conciliação entre a defesa da ciência e posicionamentos políticos. Desde que deixou o Ministério da Saúde, seu nome tem sido alvo de constantes especulações quanto à possibilidade de disputar as eleições de 2022.

Questionado pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA) sobre uma repentina mudança de postura tão logo foi demitido da pasta, afirmou: “Hoje, 410 mil vidas me separam do presidente”.

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Veja as principais falas por temas:

1. Busca por tratamento apenas em caso de sintomas severos
“Isso não é verdade. Nós estávamos no mês de janeiro, fevereiro, não havia um caso registrado no país. O que havia naquele momento eram pessoas em sensação de insegurança, de pânico, porque viam no mundo inteiro situações, a televisão passando, hospitais sendo construídos na China, a própria Itália com seu lockdown, e as pessoas procuravam hospitais com o intuito de fazer testes. 99,9999% dos casos eram de outros vírus, e os 0,0001% eram indefinidos. Nós só fizemos transmissão comunitária depois do dia 24 de março. No momento de virose… Viroses a orientação sempre foi que você observe e não vá imediatamente ao hospital porque aglomera, e se houver lá um paciente positivo, ele vai contaminar na sala de espera. Tenho visto essa máxima ser repetido e tenho percebido que é mais uma guerra de narrativa. Todas as orientações são para dar entrada pelo sistema de saúde”.

“Quando temos uma doença viral, há alguns princípios. Alguns princípios primeiros são: temos vacina? Não temos. Temos medicamento retroviral? Não temos. Como vamos conduzi-la? Vamos observar o paciente, vamos vê-lo, vamos cuidar do paciente. Ontem, fui ver qual era a recomendação da OMS e do Ministério da Saúde. Ela é exatamente: ‘entre em contato com o seu provedor de saúde imediatamente se você sentir os sinais de perigo: dificuldade de respirar, perda da capacidade de fala, confusão, dor no peito’. De cada 100 pessoas, 85 vão evoluir bem, vão ter formas leves, muitas vezes de espirro ou assintomáticas. E vão sair tomando chá, da maneira como a gente trata. 15% vão ter algum grau de complicação. Deles, você vai ter um número de aproximadamente 90% que vão ser forma modera, e 5% que vão evoluir para intubação com ou sem medicamento”.

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2. Estratégia no ministério
“Tivemos, em determinado momento, um caminho traçado pelo Ministério da Saúde, para testagem, para a utilização da atenção primária, para regularizar… Tínhamos um caminho, sabíamos para onde iríamos. Tínhamos claramente que íamos testar, bloquear o máximo possível os contágios, identificá-los cedo e iríamos tratar via atenção primária e ampliar nossa rede de atendimento hospitalar. Era a maneira como focávamos. Não tomamos nenhuma medida que não tenha sido pela ciência. E a ciência é essa. Agora, a posteriori vimos pararem muitas coisas e não colocarem outras no lugar. A testagem é uma delas”.

“Parece que a P1 apareceu no dia do doente. Uma das coisas que tinha que ter sido feita eram os inquéritos epidemiológicos e o mapeamento. Nós paramos de fazer. Essa cepa foi captada no Japão, por seis japoneses que visitaram Manaus (AM) e voltaram para o Japão. Porque nós não fizemos a testagem. Provavelmente essa cepa estava ali dentro em processo de expansão. Ela não começa assim ‘começou hoje, amanhã acabou o sistema’. Ela vai pegando ar”.

3. Vacinas
“Não [não havia empresas com resultados promissores de vacinas]. Naquele momento, tínhamos uma lista de iniciativas, a OMS dava publicidade a isso. Nós tínhamos a perfeita convicção de que doenças infecciosas a vírus a humanidade enfrenta com vacina desde a varíola, passando por pólio, por todas elas. A porta de saída era vacina. Nós monitorávamos, mas elas estavam ou no momento de concepção ou na fase 1”.

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“Havendo necessidade, o SUS é o melhor sistema para aplicar as vacinas, basta tê-las e basta ter os insumos. Fazendo com organização, temos histórico de megacampanhas de vacinação, onde conseguimos vacinar o fundo de vale do Amazonas, as favelas, o Pantanal, o Jequitinhonha, a avenida Paulista. O SUS é muito bom, basta colocar os insumos. Nós nunca tivemos dificuldade em abastecê-lo”.

4. Isolamento social
“Seria adequado [autoridades sanitárias adotarem o isolamento social em março de 2020]. Por causa do índice de transmissão do vírus. O vírus era muito competente. Nós estávamos com um sistema, naquele momento, que não tinha condição de responder. Essa doença infecciosa… Nós sempre aprendemos que doença infecciosa viral é prevenção, nós não temos outra maneira. Não é possível fazer gestão de doença infecciosa sem separação. E por que era importante naquele momento? Primeiro, porque tínhamos baixo número de casos. Segundo, porque essa doença entrou, diferente de outras doenças infecciosas, pelos ricos. Era uma doença que no início estava no [hospital Albert] Einstein, no Sírio [Libanês], que estava no Leblon, na Barra da Tijuca, em Ipanema. Ela não estava no povão. Quando ela entrasse nas pessoas que estão nas áreas de exclusão e essas pessoas viessem em direção ao Sistema Único de Saúde, esse sistema tinha que ser preparado e redimensionado. Naquele momento, era fundamental que se fizesse uma fala una de prevenção de todos os brasileiros e se fizesse o isolamento [social]”

“O que vi foi o que todos viram. Nós fizemos as recomendações em três pilares: 1) ‘vamos preservar a vida’ – essa doença, quem não valoriza a vida em primeiro lugar tem dificuldade com ela; 2) SUS, para poder fazer isso como meio, com as inúmeras ações que fizemos; e 3) ciência. Eu vi vários que ficaram fora desse tripé e que acabaram conspirando a favor…”.

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“O Ministério da Saúde foi o primeiro a criar o conselho interministerial. A posteriori, foi criado um conselho sob a coordenação da Casa Civil, do ministro Braga Netto. Foram feitas reuniões de ministros, com a presença do presidente. Em vários momentos foi explanada e reexplanada (a importância do isolamento social). E eu, no dia 28 de março [de 2020], achei por bem escrever uma carta pessoal ao presidente da República. Eu pedi uma reunião específica, que foi feita no Palácio da Alvorada, dentro da biblioteca, com a presença de todos os ministros. Entreguei em mãos deles esta carta”.

“Ali o que havia era um mal-estar. Nós seguíamos o que tínhamos de seguir, as recomendações que tínhamos em nossas mãos e o que presenciávamos – e que era público, não é nenhuma novidade para ninguém – é que havia, por parte do presidente [Jair Bolsonaro] um outro olhar, uma outra decisão, outro caminho que ele decidiu do seu convencimento, não sei se através de outros assessores e pessoas que não estavam ali no Ministério da Saúde. Mas do Ministério da Saúde nunca houve nenhum assessoramento no sentido de embasar aquelas medidas [de isolamento vertical]. Muito pelo contrário, era muito constrangedor para um ministro da Saúde ficar explicando se estamos indo para um caminho e o presidente para outro”.

“O Brasil não fez nenhum lockdown. O Brasil fez medidas depois do leite derramado, depois que a gente chega e diz ‘vai entrar em colapso o sistema de saúde’, ‘então, fecha’. ‘Vai acabar o remédio’, ‘então, fecha’. Nós fomos sempre um passo atrás desse vírus em relação à questão do lockdown. Aqueles que fizeram preventivo pela técnica foram muito poucos. A própria Araraquara (SP), que fez, fez depois do leite derramado, depois que o sistema está sendo atacado pelo vírus. Aí não é que você faz porque você vai decidir, é o vírus que impõe. Esse vírus não negocia nada com ninguém. Não negocia com microempresário, com grande, com pobre, com rico, com torcedor do Bolsonaro, do Lula, do Palmeiras e ou do Corinthians. Ele é fato. Ele está aí e vai pegar carona, é só dar mole para ele”.

5. Medicamentos sem eficácia comprovada
“Nós, médicos, não temos problema nenhum com as drogas terapêuticas. Se não as respeitarmos, como vamos usar morfina, que é um medicamento duro de ser usado? Usar quimioterapia, cai cabelo, machuca a pessoa. Existe um princípio: lhe prescrevo porque tem um benefício, vou correr o risco para atingir o benefício. Se você sabe o risco mas não sabe o benefício, você cai no princípio filosófico da medicina de Hipócrates, que é non nocere, não se pode ser mais nocivo, sem essa relação risco/benefício, não se prescreve”.

“A única coisa que o Ministério da Saúde [sob minha gestão] fez em relação à cloroquina, após consulta ao Conselho Federal de Medicina e a todos os conselheiros do ministério era para uso compassivo, utilização que se faz quando não há outro recurso terapêutico para os pacientes graves em ambiente hospitalar. Mesmo porque a cloroquina é um medicamento que, para uso indiscriminado e sem monitoramento, sua margem de segurança é estreita. Não é aquela coisa ‘se bem não faz, mal também não faz’. Ela tem uma série de reações adversas e uma série de cuidados que têm que ser feitos. A automedicação com cloroquina e outros medicamentos poderia ser muito, muito perigosa para as pessoas”.

“Aqui é ciência, aqui é estudo. Eu jamais, na minha vida, tomei decisões sem estudar. E a gente, quando estuda, tem que acreditar nas bases dos seus estudos. Aqui há advogados, engenheiros. A base da medicina é ramo da filosofia, é Hipócrates. Ali ela diz que, sem diagnóstico, não há tratamento – parece uma coisa simples, mas quanta gente erra isso mundo afora. Ali ela diz non nocere, não pode sem risco/benefício. Do mesmo modo que bate na tecla da cloroquina, existem pessoas que preconizam ivermectina, também sem fundamento científico. Ela é inerte? Tem que estar comprovado, tem que estar dentro da agência, tem que estar dentro da bula. (…). A autarquia federal responsável de se fazer a proteção da sociedade a isso são os conselhos. O conselho deveria ter dado o parâmetro. Os médicos ficaram cada cabeça uma sentença. Há ozonioterapia intrarretal sendo preconizada. Eu vi cloroquina sendo usada como nebulização partindo de comprimido com talco. Essa via inalatória é uma via com margem de segurança muito menor do que a gastrointestinal. Espero que alguma substância funcione. Se tem uma pessoa que espera muito da ciência sou eu. Agora, alguém tem que ser racional”.

“Tem que ter a decisão de estar do lado da ciência. Isso é o que tínhamos. Falar de tratamento seria, naquele momento, criar um kit ilusão. (…) Foi assim que perdi amigos. Eu perdi tantos amigos que tomavam medicamentos prévios e falavam para mim ‘se der problema, eu tomo isso aqui’. Eu tenho um amigo que não vacinou pai e mãe, de 95 e 90 anos”.

“Se a gente sair da ciência, a gente quebra o nariz e quebra o nariz das pessoas junto. E as pessoas entram nesse transe de que elas precisam aquilo ali. Tem interesses comerciais grandes”.

“Havia consciência do fato de que se fazendo uma indução à utilização [dos medicamentos] mesmo sem evidência científica? Sim. Eu disse textualmente: não se pode fazer propaganda de algo que não tem consistência. Aguarda o estudo e se renda ao estudo. (…) Isso foi consciente [por parte do governo]”.

“Esse negócio de tratar como ‘jogue isso para a população’ foi muito complicado. Acho que muita gente tropeçou no destino, no mínimo o princípio da cautela, que é um dos princípios da medicina, foi roto”.

“Dez dias antes de eu ser demitido, na reunião, todos sentamos, eu cheguei, sentei e havia um papel em branco, mas sem papel timbrado, sem nada, à frente de todos da reunião, que era uma sugestão de minuta. Eu perguntei ao ministro Jorge Ramos, eu falei ‘mas, ministro, isso daqui é um decreto para quem? Para o presidente?’. Ele falou: ‘não, não, não. Isso aqui pensaram, mas está fora de questão, já falei que juridicamente não existe’. Mas existia. Alguém teve essa ideia, eu não saberia dizer quem”.

“Inclusive, parecer dentro da AGU que trabalhava comigo é que, quando um ministro vai fazer a compra de qualquer item, ele tem que passar pela Conitec, que a comissão de incorporação técnico-científica. Eu não posso, como ministro, decidir comprar um remédio qualquer porque eu quero. Eu preciso passar por um comitê técnico, e esse medicamento não passava no comitê, porque o primeiro item dele é onde está a evidência científica. Esses gastos todos [com produção de cloroquina] foram feitos sem passar pela incorporação na Conitec. Portanto, minha AGU colocou claramente que aquilo não seria correto, do ponto de vista da probidade administrativa”.

6. Alertas ao presidente
“Como há variáveis, eu pedi três cenários. No cenário otimista, imaginando que o Brasil fosse uma ilha, como a Nova Zelândia, que tivéssemos um colchão social, que tivéssemos condição de fechar… O cenário até 31 de dezembro de 2020 traçado pelo Gabbardo veio de 30 a 40 mil óbitos. Ao secretário Wanderson [Oliveira], pedi o cenário realista, com as dificuldades do Brasil, as dificuldades de isolamento (…). Ele me trouxe um cenário de 80 a 90 mil óbitos. E ao infectologista Júlio Croda pedi o cenário se não fizermos testagem, não tivermos performance técnica e se a questão social falar mais alto, se for muito complexo… Ele me deu 180 mil óbitos até 31 de dezembro de 2020. Eu levei, expliquei. 180 mil óbitos para quem tinha na época menos de 1.000 era um número muito difícil. Acho que ali ficou dúvida, porque havia ex-secretários de saúde, parlamentares que falavam publicamente que a doença não teria 2 mil mortos, que ia durar de 3 a 4 semanas. Havia uma construção de pessoas que falavam absolutamente o contrário. Acho que o presidente entendeu que aquelas outras previsões poderiam ser mais apropriadas para aquele momento. E foi nesse dia que eu entreguei essa carta explicando essas situações”.

7. Relação com Bolsonaro
“Todas as vezes em que a gente explicava, conversava – eu não era uma voz solitária no governo, eu tinha a concordância de um número enorme de pessoas –, o presidente, no mais das vezes, compreendia. (…) Mas, passados dois ou três dias, ele voltava para aquela situação de quem não havia, talvez, compreendido, acreditado ou apostado… Uma situação dúvida. Mas eu nunca tive uma discussão áspera com o presidente. Eu sempre explicava, ele entendia, mas, infelizmente, na prática, e aí é uma coisa pública e vocês todos viam…”

“Eu me lembro do presidente sempre questionar a questão ligada à cloroquina como a válvula de tratamento precoce, embora sem evidência científica. Eu me lembro do presidente algumas vezes falar que adotaria o chamado confinamento vertical, que era também algo que a gente não recomendava. Ele provavelmente tinha outra fonte que dava para ele o porquê… Do Ministério da Saúde nunca houve a recomendação de coisas que não fossem da cartilha da Organização Mundial de Saúde, dessas estruturas todas. Era o que a gente tinha. Não por sermos donos da verdade. Pelo contrário, éramos donos da dúvida. Eu torcia muito para aquelas teorias ‘o vírus não vai chegar no Brasil’, mas se eu adotasse aquela teoria e chegasse, teria sido uma carnificina”.

“Cada vez que se conversava com o presidente, ele compreendia. A gente falava ‘não pode aglomerar’, ‘não vamos aglomerar’, ‘vamos usar máscara’, ‘use o álcool gel’… Então, a gente saía de lá animado, porque era um corpo total que falava ‘ok’. E ele compreendia, falava que ia ajudar, só que passavam dois ou três dias e ele voltava para aquela situação de aglomerar e fazer as coisas. Isso foi indo até que chegou uma hora que ficou realmente muito difícil para ele me manter no cargo já que eu deixei claro que não abandonaria o cargo jamais – e que se ele quisesse, que me demitia. Ele me demitiu e continuou fazendo a mesma prática. Então, agora, como cidadão, posso, sim, criticar, porque não vi, mesmo após ter saído, mesmo após ter visto negar o uso de máscara, negar o uso de higiene das mãos, negar a compra de vacina, negar a questão da testagem… É uma série de negações e negações. Hoje, 410 mil vidas me separam do presidente”.

8. Críticos dentro do governo
“Frontalmente, eu não consigo me lembrar de ninguém. Agora, chegou-se uma hora em que era um dilema: ‘vou optar pela economia, e não pela saúde’. Seria natural que o ministro da Economia tivesse um contato maior com o ministro da Saúde, o que não ocorreu”.

“Mesmo na hora em que foi para o Palácio do Planalto, que era o ministro Braga Netto, o que havia era sempre uma tentativa… Pediram um dia para eu não falar na coletiva. Eu simplesmente estar e sair. Eu estive e saí. Depois que saí, ficaram outros ministros. Mas, como a imprensa fazia perguntas técnicas sobre a pandemia, os outros ministros não sabiam responder, e mandaram eu voltar”.

“Teve o episódio lastimável do ministro Onyx gravado com o ex-ministro Osmar na televisão falando que tinham que me tirar do cargo, mas nada que tenha sido frontal, sentado em uma mesa”.

“Havia um ministério de Relações Exteriores que eu precisava muito, porque eu era dependente de insumos que estavam na China, insumos que eu tinha que trazer para o Brasil. Então, era mais do que necessário que tivéssemos um bom diálogo com a China. Eu tinha dificuldades com o ministério de Relações Exteriores. O outro filho do presidente, o deputado Eduardo, tinha rotas de colisão com a China no Twitter. Eu fui certo dia ao Palácio do Planalto e os três filhos do presidente estavam lá e mais assessores de comunicação. Disse a eles que precisava conversar com o embaixador da China, pedi uma reunião com ele e perguntei se poderia trazer [ao Palácio]. Não. Acabei fazendo por telefone Existia uma dificuldade de superar essas questões”.

9. Influenciadores de Bolsonaro
“Testemunhei várias vezes reuniões de ministros em que o filho do presidente, que é vereador no Rio de Janeiro, estava sentado lá atrás tomando as notas da reunião. Eles tinham constantemente reuniões com esses grupos dentro da presidência”.

“Ele tinha um assessoramento paralelo. Nesse dia, havia sobre a mesa, por exemplo, um papel sobre a mesa, não timbrado, de um decreto presidencial para que fosse sugerido naquela reunião que se mudasse a bula da cloroquina na Anvisa, colocando a indicação para coronavírus. Foi, inclusive, o próprio presidente da Anvisa, [Antônio] Barra Torres, que falou ‘isso não’”.

“Por essas questões indiretas, de estar tendo reunião com outros médicos, outras pessoas, outros auxiliares, imagino que, fora do Ministério da Saúde, ele construiu alguns aconselhamentos que o levaram para essas tomadas de decisões que ele teve, mas eu não saberia nominar”.

“Alertei sistematicamente [o presidente], inclusive fazendo as projeções. A projeção de 180 mil óbitos até 31 de dezembro [de 2020], na verdade tivemos 191 mil – erramos por 11 mil. Eu dei por estado e cidade”.

“Sim [é possível que o presidente tenha aderido às teses da imunidade de rebanho], porque essa era uma fala muito comum das personagens que citei. Lembro que eles se apropriaram de um estudo, feito sem muita técnica científica, dizendo que os doadores de sangue de Manaus, logo depois da primeira onda, mais de 50% teriam anticorpos da doença, e que, portanto, já estaria muito próximo do fim, ainda em junho ou julho do ano passado”.

“A impressão que tenho é que era alguma coisa nesse sentido. Não posso afirmar, você tem que perguntar a quem de direito. Mas que era um entendimento de que as pessoas vão contrair isso porque moram em favela, estão aglomeradas, não têm esgoto, porque o brasileiro vai se contaminar e vai morrer só quem tem que morrer, só está morrendo idoso… Embarcaram nessa teoria. A impressão que tenho é que isso pode ser”.

10. Paulo Guedes
“A primeira vez que o ministro Paulo Guedes escutou o ministro da Saúde explicar o que era a doença foi no dia da reunião na CCJ da Câmara, com a presença do ministro Ramos, do presidente do Banco Central. Essa reunião foi feita por conta da votação, por parte da Câmara, do reajuste do BPC. E lá pude explicar… Provavelmente já estávamos em março”.

“[Paulo Guedes é um] Desonesto intelectualmente, um homem pequeno para estar onde está. (…) Ele falou ‘saiu com R$ 5 bi e não comprou vacina’. (…) Esse ministro não soube nem olhar o calendário para falar ‘puxa, enquanto ele estava lá, nem vacina sendo comercializada no mundo havia’. Só posso lamentar. Diferente do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Esse, sim, ligava, perguntava, mandava informações que captava no mercado, extremamente atencioso com coisas de economia e impacto nas coisas públicas. Ajudou muito. Esse da Economia não ajudou nada, pelo contrário: falava ‘já mandei o dinheiro, agora se virem lá e vamos tocar a economia’. ‘Vamos tocar a economia’ talvez tenha sido uma das vozes que tenha influenciado o presidente”.

11. Comunicação pública no ministério
“O normal, quando se tem uma doença infecciosa é ter uma campanha institucional. Não havia como fazer uma campanha. Não queriam fazer uma campanha oficial. Então, havia necessidade de manter a questão das informações”.

“Havia uma situação dúbia. (…) Começou-se uma narrativa em relação aos governos do estado em relação às medidas que visavam diminuir a concentração de pessoas e segurar o sistema enquanto ele se preparava”.

“O Ministério da Saúde foi publicamente confrontado. Isso dava uma informação dúbia à sociedade. O objetivo do Ministério da Saúde era dar uma informação, o presidente dava outra”.

“Se a postura [do presidente contra o isolamento social] trouxe um impacto [no agravamento da pandemia e aumento no número de mortes no Brasil], sim. Em tempos de epidemia, você tem que ter fala única. O raciocínio não é individual, esse vírus ataca a sociedade como um todo. Ele ataca Educação, Cultura, Esporte, Lazer. Ele ataca tudo: Economia, emprego, microempresas. Ele ataca o sistema de saúde a ponto de derrubá-lo e, aí sim, o sistema de saúde não pode atender quem tem apendicite…”

12. Políticas descontinuadas
“A questão do acesso, da telemedicina como porta de entrada. Eu vejo a questão da testagem, que foi iniciado o processo de compra e, ao chegar, não foi executado da maneira como a gente pensava no plano. Era um plano pensado em aconselhamento, acolhimento, entrada, testagem, separação de positivo e contactantes, diminuição de risco e medidas por índice de transmissão e acompanhamento dessas ações. Acho que a questão da pesquisa… Orientamos a realização de uma pesquisa sobre cloroquina, nós aguardávamos o resultado, o próximo ministro fez uma portaria sem aguardar a conclusão da pesquisa”.

“O inquérito epidemiológico da Universidade de Pelotas parou de ser feito. Ele era a nossa bússola. Eu contratei para fazer todos os estados. Você sabe quantas pessoas têm anticorpos”.

“O Brasil podia mais. O SUS podia mais, a gente poderia mais. Poderíamos estar vacinando desde novembro do ano passado”.

“O mais importante que perdemos foi continuidade de equipe. Nós perdemos uma coisa que é muito difícil, que é construir uma comunicação direta com a sociedade, como eu construí, onde ela tinha credibilidade e falava ‘eu quero saber o que esse ministro fala’. Isso foi uma pena, isso foi horrível. Nós perdemos completamente o vínculo com as pessoas”.

13. Saída do cargo
“Eu não pediria jamais demissão do cargo. Eu fui nomeado para ser ministro da Saúde do Brasil pelo presidente. O cargo de ministro da Saúde é, em situação de pandemia… Eu tinha um paciente doente e eu tinha que ficar com o meu paciente à revelia de tudo e de todos, baseado no que eu tivesse de melhor. Acho que o presidente não gostou, não quis, achou por bem ter um outro ministro, também colega, Teich, que ficou lá por 20/30 dias, e depois encontrou o ministro que parece que ele teve melhor afinidade nas suas ações. O meu compromisso era com o meu paciente chamado Brasil e eu não o deixaria em hipótese alguma, mas também não negociaria os valores, não negociaria a formação que tenho”.

14. China e OMS
“Nós tivemos uma informação da China que até hoje é questionada. Vimos uma epidemia em uma cidade chamada Wuhan, de 12 milhões de habitantes – foi a primeira vez que a maioria de nós escutou que existia uma cidade aqui chamada Wuhan. Onde estão as cidades de 4, 3, 7, 1 de 2 milhões [de habitantes], como Belo Horizonte, como Brasília, na China? Eles fizeram um hospital de campanha, televisionaram, permaneceram 5 semanas, desfizeram o hospital de campanha… Onde está a epidemia de Pequim, que tem 26 milhões de pessoas? A informação da China é objeto hoje de investigação internacional pela própria Organização Mundial da Saúde, tentando entender por vias indiretas. A China, quando proibiu exportação, se 94% dos itens estão lá e ela fecha a exportação por mais de 30 dias, é porque ela mandou abastecer só seu mercado interno, e o mundo ficou em compasso de espera. Então, era muito difícil se entender o que estava acontecendo lá. Somente quando entrou no mundo ocidental, somente quando a Itália caiu aí que fomos ver”.

“A falta de clareza da China e da Organização Mundial da Saúde, durante 45 dias, foi determinante não só para o Brasil, mas para o mundo. Depois, a falta de condições internacionais de falta de liderança. O mundo claramente não tem governança para um problema como esse, eles vão ter que se entender. Foi EUA passando por cima, Alemanha passando por cima, houve a guerra das máscaras, houve medidas completamente desumanas naquele período que nos imobilizou. Nossa desindustrialização é um crime, é uma burrice, eu gostaria muito de ter podido contar com muita coisa”.

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Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.