Lira sobe o tom contra CPI da Pandemia, critica pedidos de indiciamento contra deputados e fala em “instrumento inquisitorial de exceção”

Direto do plenário, Lira falou em "tratamento desigual" destinado a deputados; 6 integrantes da casa aparecem na lista de indiciamentos do relatório final

Marcos Mortari

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), conduz sessão no plenário (Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados)

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SÃO PAULO – Um dia após a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia do Senado Federal aprovar parecer que recomendou o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e de outros 79, entre pessoas físicas e jurídicas, sendo seis deputados federais, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), subiu o tom contra os senadores.

Direto do plenário da casa legislativa, Lira falou em “tratamento desigual” dado pela CPI a deputados federais e classificou a proposta de indiciamento de seus pares como “inaceitável”. Na avaliação do congressista, a ação coloca em questão “profundos postulados da ordem constitucional brasileira e do Estado Democrático de Direito”.

“Quero falar sobre o tratamento dado a senadores e deputados, que têm a liberdade de expressar sua opinião e por elas não podem ser indiciados e pela apresentação de projeto de lei. Para mim, é motivo de indignação tomar conhecimento dos indiciamentos do relator da CPI. É inaceitável. Digo indignação, pois não encontro outro termo, pois o que está em questão não é um ou outro parlamentar, se não o que prevê a ordem brasileira e o Estado democrático de direito. Estou tratando da separação e harmonia dos Poderes, estou tratando da liberdade dos parlamentares”, disse.

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“Uma Comissão Parlamentar de Inquérito pode muito, senhores e senhoras, e, quando conduzida com seriedade, pode prestar relevantes serviços à sociedade. Entretanto, uma CPI não pode tudo. Uma CPI não possui, por exemplo, todos os poderes instrutórios dos juízes e não pode realizar atos exclusivamente jurisdicionais gravados pela Constituição com a cláusula de reserva jurisdicional, cuja prática é atribuída com exclusividade ao Poder Judiciário”, afirmou.

“Mais do que isso, senhoras e senhores, ainda que graves sejam os fatos investigados, uma CPI não pode se converter em um instrumento inquisitorial de exceção, infenso ao controle e dotado de poderes exorbitantes ou ilimitados. Em um Estado Democrático e de Direito como é o Estado brasileiro, nenhuma autoridade pode atuar assim. A hipótese suscitada pelo Relator da CPI da Pandemia de indiciar Parlamentares desta Casa por suas manifestações públicas ou privadas fere de morte direitos e garantias fundamentais. Ademais, tal atitude de membros de nossa Casa irmã do Congresso Nacional, o Senado Federal, abre um precedente de enorme gravidade”, continuou.

Pelo relatório aprovado ontem (26), a CPI da Pandemia recomendou o indiciamento de seis deputados federais:

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Ricardo Barros (PP-PR): Art. 286 (incitação ao crime) e art. 321 (advocacia administrativa), ambos do Código Penal; art. 2º, caput (formação de organização criminosa) da Lei nº 12.850, de 2013; e art. 10, XII (improbidade administrativa) da Lei 8.429, de 2 de junho de 1992;

Eduardo Bolsonaro (PSL-SP): Art. 286 (incitação ao crime) do Código Penal;

Bia Kicis (PSL-DF): Art. 286 (incitação ao crime) do Código Penal;

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Carla Zambelli (PSL-SP): Art. 286 (incitação ao crime) do Código Penal;

Osmar Terra (MDB-RS): Art. 267, § 1º (epidemia com resultado morte), e art. 286 (incitação ao crime), ambos do Código Penal;

Carlos Jordy (PSL-RJ): Art. 286 (incitação ao crime) do Código Penal.

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O texto, no entanto, sugeriu o indiciamento de apenas um senador: Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro. O nome do senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) chegou a ser incluído na lista a pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por alegações de incitação ao crime em razão de repetitivos discursos em defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da Covid-19. Por acordo entre os integrantes da comissão, o nome do parlamentar foi retirado do texto final.

O parecer final da CPI da Pandemia foi entregue, nesta quarta-feira (27), a Augusto Aras, procurador-geral da República, que falou em “avançar” na apuração de supostos ilícitos cometidos por autoridades com foro privilegiado, e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

No discurso lido nesta tarde em plenário, Arthur Lira chamou atenção para a imunidade parlamentar garantida pela Constituição Federal e que, na sua avaliação, teria sido desrespeitada pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) – seu adversário político em Alagoas.

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“A longa evolução de dois institutos, imunidade parlamentar e Comissão Parlamentar de Inquérito, seja no campo da história, seja na doutrina e na legislação, leva-nos ao entendimento de que o Parlamentar, seja ele qual for, de que partido for, de que ideologia for, deve gozar da mais ampla liberdade de expressão”, afirmou.

As declarações marcam mais um episódio de fricção entre as casas legislativas – movimento que se tornou mais frequente desde que Lira se aproximou do presidente Jair Bolsonaro e o Senado Federal adotou postura de maior distanciamento em relação ao governo federal, sobretudo ao longo dos trabalhos da própria CPI.

Nos últimos dias, as casas legislativas entraram em rota de colisão, com Lira, Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes (Economia) criticando o Senado Federal por não ter dado continuidade à discussão sobre a reforma do Imposto de Renda. A narrativa de governistas é que o projeto era fundamental para garantir o pagamento do Auxílio Brasil – novo programa social que o governo tenta tirar do papel para substituir o Bolsa Família – de forma permanente e sem desrespeitar o teto de gastos.

Leia a íntegra do texto lido pelo presidente da Câmara dos Deputados:

“Senhoras e senhores, eu pretendo fazer uma fala a respeito do relatório lido pela CPI do Senado Federal, Casa parlamentar irmã nossa, que entregou ontem a votação do relatório. Eu não faço juízo de valor acerca do que eles discutiram, investigaram e votaram, a não ser quanto a um assunto para o qual eu preferi fazer um discurso lido, calmo, ponderado, mas muito firme, a respeito do tratamento desigual que foi dado, injusto ou justo, a Senadores e Deputados que têm a liberdade de expressar as suas opiniões e por elas não podem ser absolutamente indiciados por expressar a sua opinião pela apresentação de um projeto de lei ou qual quer coisa que equivalha na sua atividade funcional.

Portanto, senhoras e senhores, para mim, é motivo de grande indignação — grande indignação —, como Presidente da Câmara dos Deputados e como cidadão brasileiro, tomar conhecimento das conclusões encaminhadas pelo Relator da CPI da COVID no Senado Federal.

É inaceitável, repito, inaceitável, a proposta de indiciamento de Deputados desta Casa no relatório daquela Comissão Parlamentar de Inquérito instituída com a finalidade — prestem atenção! — de apurar as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da COVID-19 no Brasil.

Digo indignação e não encontro outro termo, pois o que está em questão não é um ou outro Parlamentar individualmente, senão profundos postulados da ordem constitucional brasileira e do Estado Democrático de Direito por ela instituído — e nós votamos aqui a Lei do Estado Democrático de Direito —, postulados que consagram, a propósito, a separação e a harmonia dos Poderes, que estabelecem limites ao exercício do poder de autoridade, que asseguram a liberdade de pensamento e a expressão com direito geral e a imunidade dos Parlamentares — eu estou tratando da imunidade dos Parlamentares —, por suas opiniões e por seus votos, como dimensão ampliada desta mesma liberdade.

Não desconheço que vivemos uma pandemia de extrema gravidade, a qual já ceifou a vida de mais de 600 mil brasileiros e de milhões de pessoas no mundo. Também não desconheço que erros graves possam ter sido cometidos no combate à pandemia e que algumas atitudes, inclusive de autoridades constituídas, possam ter contribuído em algum momento para o agravamento da situação. Enfrentamos uma crise sanitária nunca vista, onde não havia manual para isto. E o Brasil, como todas as nações do mundo, aprendeu a duras penas a lidar com essa situação.

Ações ou omissões com a deliberada intenção de violar a lei e com o conhecimento pleno do delito que se comete devem ser investigadas e, sendo o caso, devem conduzir à responsabilização de seus autores.

Neste sentido, a Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pelo Senado Federal contribui para o esclarecimento de fatos delitivos no entorno da pandemia, para o controle e fiscalização de agentes, órgãos públicos e para o aperfeiçoamento da própria ação administrativa.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito pode muito, senhores e senhoras, e, quando conduzida com seriedade, pode prestar relevantes serviços à sociedade. Entretanto, uma CPI não pode tudo. Uma CPI não possui, por exemplo, todos os poderes instrutórios dos juízes e não pode realizar atos exclusivamente jurisdicionais gravados pela Constituição com a cláusula de reserva jurisdicional, cuja prática é atribuída com exclusividade ao Poder Judiciário.

Mais do que isso, senhoras e senhores, ainda que graves sejam os fatos investigados, uma CPI não pode se converter em um instrumento inquisitorial de exceção, infenso ao controle e dotado de poderes exorbitantes ou ilimitados. Em um Estado Democrático e de Direito como é o Estado brasileiro, nenhuma autoridade pode atuar assim.

A hipótese suscitada pelo Relator da CPI da Pandemia de indiciar Parlamentares desta Casa por suas manifestações públicas ou privadas fere de morte direitos e garantias fundamentais. Ademais, tal atitude de membros de nossa Casa irmã do Congresso Nacional, o Senado Federal, abre um precedente de enorme gravidade.

Analisando em particular a liberdade de expressão, relembro que ela é garantida pela Constituição de 1988, de modo especial no inciso IV do art. 5º. Tratando-se de uma importante garantia dos regimes democráticos, pode-se afirmar que a restrição à livre circulação de opiniões e ideias é própria dos regimes totalitários, o que não é o caso do Brasil. De mais a mais, a troca de ideias, as discussões públicas e o diálogo encorajam a sociedade a se manifestar sobre os seus problemas, sem contar que tal liberdade limita o próprio abuso de poder.

Esse direito pode ser invocado por todo e qualquer cidadão brasileiro ou por qualquer pessoa que aqui resida mas, em relação aos Parlamentares brasileiros, esse direito evolui para uma condição especial de proteção do próprio mandato e de seu exercício.

Assim, a Constituição assegura expressamente que os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, estendendo a mesma garantia a Deputados Estaduais, Distritais e aos Vereadores.

Afirma o Relator da CPI que um dos motivos que levou ao indiciamento de pessoas no relatório final teria sido a disseminação de notícias supostamente falsas relacionadas ao coronavírus, e que a mesma argumentação pode ser invocada para sustentar o indiciamento de integrantes desta Casa.

Sendo assim, para o ilustre Relator, Parlamentares se equiparam a pessoas comuns, e não devem ser consideradas como autoridades legitimamente constituídas pelo voto popular e com garantias próprias de atuação.

Ora, a longa evolução de dois institutos, imunidade parlamentar e Comissão Parlamentar de Inquérito, seja no campo da história, seja na doutrina e na legislação, leva-nos ao entendimento de que o Parlamentar, seja ele qual for, de que partido for, de que ideologia for, deve gozar da mais ampla liberdade de expressão.

Ainda que parcela da doutrina restrinja o instituto da imunidade parlamentar, limitando-o aos prédios do Parlamento, reconhece que essa restrição não abarca a liberdade de expressão, a liberdade de fala, principalmente quando o Parlamentar estiver expressando opiniões.

Se para o instituto da imunidade não importa o conteúdo da manifestação oral do Parlamentar, sendo ele, em relação às suas manifestações orais, irresponsável no sentido técnico de que não é passível de responder penalmente por elas, é absolutamente descabido constranger Parlamentar a depor em uma CPI em virtude de haver manifestado determinada opinião, pois isso significaria cercear as suas imunidades.

Maior gravidade ainda se teria com o eventual indiciamento em virtude das manifestações e opiniões manifestadas pelo Parlamentar quanto aos fatos objeto da apuração.

Fazendo uma breve aproximação com o Relatório da CPI, destaco: da extensa lista de delitos mencionados a acusações de incitação ao crime em relação aos Deputados, trata-se de algo que é abrangido pela imunidade parlamentar material. E, neste ponto, reitero ser do interesse do regime democrático que Parlamentares possam expressar opiniões dissidentes mesmo que em matéria técnica e notadamente quando não há unanimidade científica.

Quanto a crimes comissivos, deve-se considerar que os Congressistas não têm ingerência nas ações da Administração Pública. Repito, os Congressistas não têm ingerência nas ações da Administração Pública, nem detêm poder sobre o mérito administrativo que os habilite a interferir diretamente na condução de políticas públicas, ou seja, eles não participam da cadeia causal daqueles crimes sendo impossível atribuir-lhes qualquer grau de autoria.

Em conclusão, e já pedindo desculpas, senhoras e senhores, venho, sim, fazer publicamente a defesa de integrantes desta Casa e do exercício pleno das prerrogativas que a ordem constitucional lhes assegura. Mas venho, acima de tudo, defender o Estado Democrático de Direito com a convicção de que nenhuma autoridade pode utilizar instrumentos de exceção contrários ao direito e infensos ao controle, pois, aí, não se tem democracia nem direito, senão puro arbítrio.

A democracia é um projeto em permanente estado de construção e, por isso, deve ser protegida contra qualquer ataque que a diminua.
Feitas essas considerações, informo que esta Presidência analisará o teor e a aptidão processual do Relatório da CPI de forma minuciosa à luz da Constituição Federal, em particular do Estado, da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar por opiniões, palavras e votos, seguindo os ritos do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados e do Ato da Mesa nº 37, de 2009, de forma a garantir, senhoras e senhores, a liberdade e a dignidade do exercício do mandato parlamentar”.

Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.