Incertezas sobre PEC dos Precatórios esfria negociação de dívidas judiciais por investidores; entenda

Para especialistas, precatório federal – vendido com desconto de 30% – pode passar a ser negociado com abatimento de 70% diante da chance de parcelamento

Luciana Del Caro

(Shutterstock)

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SÃO PAULO – Desde o início de agosto, quando o governo enviou a chamada PEC dos Precatórios ao Congresso Nacional, diminuiu o ritmo das negociações no mercado secundário de precatórios – que representam dívidas do governo com pessoas físicas ou jurídicas em ações judiciais em que já não cabe recurso.

Na incerteza sobre o que vai acontecer e com dificuldades para estimar quanto pagar pelos papéis, muitos investidores se retraíram. A expectativa dos participantes desse mercado é de que ele se adeque a um possível parcelamento dos débitos do governo. Caso aprovada, a postergação dos pagamentos deve prejudicar principalmente os pequenos credores do governo, afirmam.

A PEC, encaminhada em agosto pelo governo federal ao parlamento, passou por exame de admissibilidade na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados na última quinta-feira (16), onde contou com 32 votos favoráveis e 26 contrários. Mas o caminho ainda é longo.

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Agora, a expectativa é de que o texto siga para comissão especial e só depois, para votação em plenário, onde é necessário apoio de pelo 308 dos 513 deputados. Depois disso, ainda é necessária apreciação pelo Senado Federal, onde é submetido a outros dois turnos de votação em plenário, com exigência de 49 dos 81 senadores.

Desde que veio à tona, o “meteoro” dos precatórios – como o ministro Paulo Guedes apelidou os R$ 89 bilhões que o governo terá de desembolsar com esses pagamentos em 2022 – vem tirando o sono do Planalto. Com o orçamento apertado no próximo ano e tentando forçar espaço para o Auxílio Brasil, como passará a ser chamado o antigo Bolsa Família, o governo propõe parcelar em dez vezes (com uma entrada de 15%) o pagamento dos precatórios federais que superarem R$ 66 milhões. Também seriam parcelados os valores que superarem 2,6% da receita corrente líquida.

A intenção do governo com a PEC dos Precatórios é economizar R$ 33,5 bilhões no ano que vem. Ainda pela proposta, seriam pagas em dia as chamadas requisições de pequeno valor, hoje com valor até de até R$ 66 mil. Pelos cálculos do governo, também escapariam do parcelamento – pelo menos em 2022 – os precatórios de até R$ 455 mil. Segundo estimativa da fintech Ori Assets, 95% dos precatórios expedidos são de até esse valor.

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“O efeito prático das mudanças é que o deságio [desconto] vai aumentar, porque a incerteza aumentou”, diz Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins Advogados. “O mercado de precatórios vai se ajustar, mas o credor original, que deveria ser o verdadeiro compensado, vai ser o último a ser protegido”. Ela ressalta que, embora o governo anuncie que mexerá apenas nos grandes precatórios, há risco também para os pequenos. “Como a medida prevê a criação de um limite de pagamentos por ano, todos vão ser impactados, porque a fila de pagamentos vai andar mais devagar”.

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Tatiana se refere ao fato de que dívidas não pagas em um ano ficarão para os próximos. Com isso, a tendência é de aumento do estoque – e novos parcelamentos podem acontecer, de acordo com os especialistas. O volume de dívidas decorrentes de decisões judiciais aumentou na última década. Em 2010, o governo federal desembolsou R$ 26,4 bilhões com elas, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI). Em 2018, o valor foi de R$ 42,5 bilhões e neste ano, chegou a R$ 56,4 bilhões.

Pela proposta do governo, a cada ano haverá saldos a pagar dos anos anteriores, que se somarão aos valores dos precatórios dos anos correntes. Mas o percentual destinado ao pagamento dos precatórios continuaria em 2,6% da receita corrente líquida. A não ser que o país volte a crescer e a receita aumente significativamente, abrindo para espaço para os pagamentos, a tendência é que a fila ande mais devagar – o que deve reduzir os descontos negociados no mercado secundário. “O mercado vai ajustar os preços, mas quem vai se dar mal é o titular dos precatórios”, diz Arthur Farache, CEO da Hurst Capital, que atua com precatórios e ativos reais.

E há outras nuances na questão. Segundo Juliana Vieira dos Santos, sócia do escritório Rubens Naves Santos Jr Advogados, o argumento do governo de que os pequenos credores não serão prejudicados é “falacioso”. “Muitos precatórios têm valores milionários, mas são ações coletivas, com milhares de pequenos credores”, afirma. É o caso, por exemplo, de ações coletivas trabalhistas de servidores públicos.

Caio Fasanella, sócio da plataforma Morsi, de antecipação de créditos judiciais, pontua que, em certos casos, mesmo que a causa de origem do precatório seja pequena, a demora do pagamento é tanta que ela se torna grande por conta dos juros e da correção monetária que incidem sobre a dívida.

A alternativa dos credores do governo para receber esses recursos mais rapidamente, escapando do parcelamento, é recorrer ao mercado secundário de precatórios. Ao “cedê-lo” a um investidor, o titular conseguiria adiantaria o dinheiro. Mas também há prejuízo nessa situação. Fasanella considera que um precatório federal, que é adquirido com desconto de 20% a 30%, poderá passar a ser comprado com desconto de 60% a 70%, uma vez que o fluxo de pagamentos esperado seria alterado no caso de aprovação da PEC dos Precatórios.

Na incerteza, os agentes do mercado esperam para ver o que acontece. Muitos investidores pararam de adquirir precatórios ou começaram a aumentar os descontos exigidos dos titulares. “A PEC criou insegurança entre os investidores. Alguns dos que compram precatórios acima de R$ 455 mil estão retraídos, embora muitos outros que trabalham com precatórios de menor valor continuem atuando”, afirma Allan Edward, CEO da Ori Assets.

Como funciona o mercado de precatórios?

Precatórios se originam de ações judiciais movidas contra o Estado, que podem durar anos. Nos casos mais simples, em até dois anos uma ação pode ser “transitada em julgado”, quando não cabe mais recurso. No entanto, grande parte dos processos pode demorar dez anos ou mais. E, mesmo após ganhar a causa, quem moveu a ação pode levar vários outros anos para receber os recursos a que tem direito.

Diante desse cenário, investidores enxergaram uma oportunidade. Eles adiantam recursos para o credor do Estado (quem moveu a ação e tem direito a receber a indenização) mediante um desconto. No lugar do credor, os investidores recebem o valor integral da causa quando for paga e lucram com a diferença. Para quem cede – ou vende – o precatório, a vantagem é receber antes os recursos que poderiam demorar muito tempo até a dívida ser realmente quitada. “O mercado de precatórios surgiu como alternativa à ineficiência do governo, que gera os processos e demora para pagar”, afirma Fasanella, da Morsi.

Não há centralização das informações sobre os volumes negociados no mercado de precatórios, mas estimativas de participantes dão conta de que ele movimenta cerca de 5% a 10% dos precatórios anualmente expedidos pela Justiça – algo que estaria na casa dos R$ 5 bilhões a R$ 10 bilhões, apenas considerando os precatórios federais. Já as negociações com precatórios estaduais e municipais somam cerca de metade desse volume.

Atuam nessa área bancos, pessoas físicas, family offices e advogados, além de grandes fundos de investimento – constituídos como Fundos de Investimento em Direito Creditório – Não Padronizados (FIDCs-NP). Dentre as instituições mais atuantes, estão BTG Pactual, Safra, Bank of America, XP e Jive Asset Management. Há também empresas que compram os precatórios para pagar dívidas tributárias – o que é aceito em alguns estados.

Para aplicar em FIDC-NP, é necessário ser um investidor profissional (com mais de R$ 10 milhões em aplicações financeiras). São, de fato, grandes investidores. No entanto, na maioria das vezes, os credores iniciais do Estado são pessoas comuns.

Mais recentemente, esse mercado começou a se popularizar com as plataformas que fazem varreduras dos precatórios federais, estaduais e municipais, realizam análises jurídicas das ações e atuam como corretoras – vendendo os papéis de forma pulverizada, para pessoas físicas, e para fundos de investimento. Alguns dos nomes que atuam na área são a Morsi, a Ori Asset e a Hurst Capital.

Como o governo federal até agora não atrasa os pagamentos, o deságio dos precatórios federais é menor que o dos estaduais e municipais. Nestes casos, que envolvem um grau de incerteza maior, os descontos giram em torno de 70% a 80% da dívida. Significa que quem tem direito a receber R$ 100 mil e quiser vender o precatório, receberá apenas R$ 20 mil ou R$ 30 mil do investidor que o comprar.

Qual é o tamanho da fila?

O pagamento dos precatórios obedece a uma ordem cronológica. No caso dos federais, os desembolsos ocorrem em até dois anos e meio, a depender da data que o precatório foi protocolado. Os tribunais de Justiça são responsáveis por administrar a lista de pagamentos.

A sistemática é a seguinte: sempre que há uma ação transitada em julgado, em que a União, um estado ou um município é obrigado a pagar uma reparação para alguém, o juiz expede um precatório e o encaminha ao tribunal competente. O tribunal, então, envia o valor para as secretarias de fazenda, que incluem os montantes nos orçamentos federal, estadual ou municipal – ou seja, os valores são previsíveis, e não exatamente “meteoros”.

Precatórios protocolados no tribunal até 1º de julho de determinado ano devem ser pagos no ano seguinte. Após 1º de julho, no ano subsequente. Portanto, um precatório federal protocolado até julho deste ano será pago ao longo do ano que vem – e o orçamento de 2022 já terá de prever esse desembolso por parte do governo. Se for protocolado após julho deste ano, será pago em 2023.

O governo federal vem pagando em dia até aqui – e por isso a indignação com a PEC. “A proposta é maluca porque atrasará a fila, como estados e municípios já fazem”, afirma Juliana. “A proposta do governo é inconstitucional, imoral e viola a Lei de Responsabilidade Fiscal. Por muito menos, se tirou uma presidente do cargo. É difícil ir adiante. Do ponto de vista jurídico, ela não para em pé”. Acontece que, pela Constituição, os precatórios devem ser incluídos no orçamento, são despesas obrigatórias e submetidas ao teto de gastos.

Governos estaduais e municipais pagam em datas incertas – eles estão num regime especial para reduzir o estoque de precatórios e parcelaram as dívidas, como o governo federal agora propõe fazer. O Estado de São Paulo, por exemplo, atualmente está pagando os precatórios expedidos em 2003.

Solução no horizonte?

Na tentativa de encontrar uma solução para o abrir espaço no orçamento e acomodar o volume de precatórios do ano que vem, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, tentou costurar uma saída via Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ideia era limitar os gastos anuais com precatórios por meio de uma resolução do CNJ, em vez de uma PEC. Seria criado um teto de pagamentos, correspondente ao valor dos precatórios em 2016, que seria corrigido pela inflação até 2022. Os valores que excedessem o teto não seriam pagos em 2022, mas sim em 2023, dentro do teto de gastos.

O ministro Paulo Guedes (Economia) e o ministro Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) em reunião (Foto: EDU ANDRADE/Ascom/ME)

Até aqui, a proposta não chegou a ser formalizada. Para os advogados, implementar a solução por meio de uma resolução do CNJ enfraquece essa opção – não seria o modo adequado e poderia trazer questionamentos dos credores do Estado. “A solução correta é via PEC, pois a Constituição disciplina as regras para pagamento das dívidas públicas”, diz o advogado Joaquim Porto Moraes, sócio do PMGC Advogados. Se a resolução do CNJ for dentro do que prevê a Constituição, fica mais robusta e menos sujeita a contestações, afirma. Mesmo assim, a questão poderá voltar à Justiça: “Não é possível controlar a judicialização, mas ela fica menos frágil”.

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De qualquer forma, após os protestos de 7 de setembro e o ataque do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a ministros do STF, considera-se que a disposição para achar uma solução alternativa para o problema diminuiu consideravelmente. “Ainda não é possível vislumbrar um caminho. Acho que a PEC não será aprovada. E mesmo se a proposta do CNJ for em frente, ela gera um pequeno alívio, mas não resolve a situação”, diz Edward, da Ori Assets. Para ele, a proposta do CNJ traria um alívio momentâneo, mas também geraria problemas no futuro.

Mais recentemente, ganhou força a proposta do vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, parecida com a do CNJ (limitar os pagamentos com os precatórios ao teto de 2016 corrigido), mas com a diferença de que o valor que excedesse o limite seria pago em 2022 mesmo (e não em 2023, como a proposta do CNJ), fora do teto de gastos (e não dentro).

Farache considera que é necessário analisar com parcimônia a discussão envolvendo os precatórios, porque esse tipo de proposta costuma voltar à tona quando os problemas fiscais do governo aumentam – mas o retorno dos precatórios nunca vai ser negativo, porque eles são corrigidos pelo IPCA ou pela Selic. “Não deve ser a última vez que isso vai acontecer”, afirma. Significa que o investimento nesse mercado é sujeito a muitos riscos e, por isso, geralmente é uma opção apenas para o investidor que tem capacidade para esperar vários anos até o retorno se materializar. “Devo, não nego, pagarei assim que puder”, disse o ministro Guedes ao se referir à proposta do governo. O “quando”, no caso, faz bastante diferença.

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Luciana Del Caro

Jornalista colaboradora do InfoMoney