Há uma politização inédita na atuação do Ministério Público, diz professor

Para o constitucionalista Francisco Sérgio Silva Rocha, atuação do MP no combate à corrupção representa avanço importante, mas é preciso evitar presunção ancorada em declarações de colaboradores

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A exacerbação das disputas políticas internas na Procuradoria-Geral da República, observada nas últimas semanas com a transferência do comando da instituição de Rodrigo Janot a Raquel Dodge, tem efeitos sobre a própria dinâmica das investigações e apresentação de denúncias à Justiça. Há um nível de politização inédito na atuação do Ministério Público, em que apurações são divulgadas sem maiores cuidados com a coleta de evidências materiais e a imprensa é procurada para expor acusados como se já fossem culpados. Essa é a leitura que faz o constitucionalista Francisco Sérgio Silva Rocha, professor da Universidade Federal do Pará e desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região.

Para ele, a atuação do Ministério Público na operação Lava Jato e em outros processos que investigam casos de corrupção representa um avanço importante no exercício do Direito no Brasil, uma vez que representa uma ruptura com a cultura de seletividade da lei. Contudo, Rocha pondera: “em qualquer caso deve ser coibida uma concepção que fragilize regras básicas como a presunção da inocência e a observância da estrita legalidade na apuração dos fatos e coleta da prova”. O especialista defende que o escopo da atuação dos investigadores deveria mudar para a coleta de provas materiais, evitando-se a presunção ancorada no conteúdo obtido por meio de delações premiadas.

Em entrevista à distância ao InfoMoney, Rocha fala sobre o papel que a PGR atualmente exerce na democracia brasileira, as disputas pelo poder entre grupos da burocracia da instituição, o legado de Rodrigo Janot e o que espera da gestão de Raquel Dodge, a primeira mulher a ocupar o cargo.

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Confira a íntegra abaixo:

InfoMoney – Nos últimos tempos, observamos uma intensa disputa entre Janot e Dodge. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o procurador Ângelo Goulart Villela falou de episódios que marcam esforços do ex-procurador-geral para evitar a vitória da atual ocupante do cargo. Também se viu um “esvaziamento” na gaveta de Janot, o que foi taxado por críticos como indício da politização nos processos. Quais são os limites para a disputa política na PGR?

Francisco Sérgio Silva Rocha – A Constituição Federal não possui regra que obrigue a escolha do Procurador Geral da República por meio de eleição da lista tríplice. A realização de eleição é uma tradição relativamente recente que corresponde ao Presidente da República indicar um dos nomes desta lista. O procedimento de eleição envolve disputas e promessas no mister de angariar votos para composição da lista e, ainda, envolve a organização dos disputantes em grupos de poder dentro do Ministério Público. Desta feita, parece evidente uma contaminação da pauta corporativa no processo de escolha e na atuação do PGR. O que surge como novidade é uma politização na atuação finalística do Ministério Público. Não se trata de uma atuação político-partidária, pois isso é proibido pela Constituição, mas emerge como a busca pela realização de um modelo de estado que acredita ser melhor para a sociedade. Para realizar esta visão se movimenta a máquina, são divulgadas investigações sem maiores cuidados com a coleta de evidências materiais e é buscada uma relação com a mídia que expõe acusados como se culpados fossem antes mesmo do término da fase da investigação.

IM – Levando-se em consideração o histórico, os discursos e as primeiras movimentações de Raquel Dodge, o que esperar de sua gestão à frente da PGR? O fato de não ter sido a primeira colocada da lista tríplice pode trazer alguma dificuldade? O senhor vislumbra apoio suficiente da burocracia? As investigações em curso correm algum risco? O que pode mudar em relação ao que se viu no mantado de Janot?

FSR – As primeiras declarações da nova PGR parecem indicar um modelo mais discreto de atuação, porém é impossível “segurar” por completo as investigações e a forma como o MP tem atuado. Isto está além da vontade do PGR, que possui uma limitada capacidade de intervenção na forma como tem agido os membros do MP. Não vejo como decisivo o fato de ter sido escolhida a segunda colocada na lista, pois a diferença de votos entre o primeiro e segundo foi de menos de 4% dos aptos para votar. Todavia, há a necessidade de um processo de legitimação interna da direção da instituição, legitimação imprescindível para a sustentação de uma gestão.

IM – Quais são as grandes marcas da gestão de Rodrigo Janot? Críticos alegam excessos cometidos, o senhor concorda? Se sim, exemplifique um caso. O acordo firmado com executivos da J&F macula conquistas de seu mandato? Quanto esse episódio ainda pode prejudicar os trabalhos da PGR em outras investigações e processos?

FSR – A atuação do MP na Lava Jato e em outros processos que investigam casos de corrupção representa uma saudável mudança em relação a uma cultura onde se dizia que a lei penal era apenas para os pobres, os pretos e as prostitutas. Porém, em qualquer caso deve ser coibida uma concepção que fragilize regras básicas como a presunção da inocência e a observância da estrita legalidade na apuração dos fatos e coleta da prova. Não é possível o uso de gravação irregular para justificar uma ação penal, como aparentemente aconteceu com a denúncia contra o Lula por obstrução da Justiça e nem deveria ser possível a celebração rápida de delação premiada sem investigação das provas trazidas pelos colaboradores. O que dizer de um inquérito amplamente divulgado onde o ministro do STJ é acusado de ajustar sua nomeação para obstruir a Justiça? Meses após a divulgação pública, a própria PGR solicita o arquivamento do inquérito. O escopo da atuação deveria mudar para a coleta de provas materiais, afastando-se da presunção ancorada em declaração de colaboradores.

IM – Como fica a relação com o Congresso, tendo em vista as CPIs abertas, que visam um contra-ataque à PGR? Podemos esperar mais uma gestão de grandes atritos com os procuradores?

FSR – Acredito que o Congresso vai esperar para ver o modo de atuação da nova administração e se comportar de acordo. Tensionar a relação não parece ser bom para nenhum dos dois, de modo que é possível a redução da temperatura, o que colide com a orientação de quem usa este confronto para manter uma mobilização popular em volta do slogan do combate a corrupção.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.