Governo planeja golpe institucional no TCU para salvar empresas da Lava Jato, diz procurador

Para Júlio Marcelo Oliveira, é possível que operações como a Lava Jato sejam prejudicadas pelas novas regras e que práticas de corrupção sejam incentivadas em vez de inibidas

Marcos Mortari

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SÃO PAULO – A guerra está declarada entre governo e Tribunal de Contas da União. O desgaste da relação, que cresceu com a recomendação unânime pela reprovação das contas da gestão da presidente Dilma Rousseff referentes a 2014, ganhou novos ingredientes com o avançar de um projeto de lei que causa grande mal estar entre os membros do órgão de controle. Criado para regulamentar acordos de leniência entre empresas e governo, o PL 3636 sofreu algumas alterações desde que começou a tramitar no Legislativo. Hoje, o texto, que já foi aprovado no Senado, está sendo analisado por comissão especial na Câmara dos Deputados.

A nova edição tem preocupado os membros do TCU, que temem a perda de importância no processo investigativo, uma vez que pode a lei poderia escanteá-los da tomada de decisões sobre acordos de anistia em troca da oferta de informações por parte de companhias envolvidas nos processos. Um dos grandes críticos à nova versão do texto, inicialmente proposto pelo senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES), mas “desfigurado” em sua visão, é o procurador de contas, membro do Ministério Público de Contas Júlio Marcelo de Oliveira. Em entrevista exclusiva ao InfoMoney, ele questiona os interesses do governo na celeridade da aprovação da medida e no escanteamento do órgão de controle vinculado ao Legislativo. Para Oliveira, é possível que operações como a Lava Jato sejam prejudicadas pelas novas regras e que práticas de corrupção sejam incentivadas em vez de inibidas.

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InfoMoney – Qual é a avaliação dos membros do Tribunal de Contas da União acerca do texto do PL 3636, que trata dos acordos de leniência?
Júlio Marcelo de Oliveira – Esse texto que foi aprovado no Senado tem problemas seríssimos. Ele prevê que, com acordo celebrado pelo controle interno de forma isolada, todas as ações e procedimentos dos tribunais de contas serão arquivados. Imagine um órgão do Poder Executivo dispondo sobre o funcionamento de um órgão de controle externo, que justamente existe para fiscalizá-lo. É um absurdo. Totalmente inconstitucional. Se essa lei for aprovada assim, certamente haverá ação no Supremo. Mas pode demorar. Enquanto isso, as empresas vão assinar acordos achando que estão com suas vidas resolvidas no TCU e depois encontrar problemas, porque o TCU vai cobrar.

O Poder Executivo, controle interno, órgãos que não têm autonomia ou independência não têm legitimidade para fazer acordos de leniência. Imagine algo como a Lava Jato. É um caso que praticamente capturou o governo inteiro. O ministro da CGU é subordinado à presidente da República, pode ser demitido a qualquer momento. Então, é preciso ter um órgão como o Ministério Público, como o Tribunal de Contas, independentes, que não estão submetidos a um poder de demissão da presidente da República, e que têm competência técnica para calcular os débitos também. A CGU não tem capacidade técnica para fazer uma auditoria na Petrobras (PETR3; PETR4) por falta de auditores com essa, ao passo que o TCU tem um conjunto de auditores engenheiros acostumados. É um verdadeiro golpe institucional que o governo pretende dar no Tribunal de Contas ao tentar aprovar um projeto de lei em que possa esvaziar e afastar os processos em curso no TCU.

IM – O senhor falou da questão de as empresas poderem sair prejudicadas sem saber por conta da continuidade das investigações pelo TCU, mas, ao mesmo tempo, elas podem fechar novos acordos para recuperar caixa. Não seria benéfico a elas no final das contas?
JMO – No aspecto imediato da Lava Jato, seria extremamente benéfico para as empresas, porque, enquanto permanecer no Supremo qualquer discussão sobre constitucionalidade, elas pegam um dinheiro no BNDES e resolvem o problema de caixa. As empresas querem muito qualquer refresco que possam obter de financiamentos e firmar novos contratos públicos. Portanto, é uma lei que tem problemas de atribuição de competência, de conflito de competência, de insegurança jurídica. E, no caso da Lava Jato, é um verdadeiro golpe contra o TCU.

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IM – Qual é o contexto em que o projeto de lei se insere?
JMO – No aspecto dos acordos de leniência, a Lei Anticorrupção foi aprovada de maneira atabalhoada. Colocou simplesmente que a CGU poderá fazer os acordos e não fala mais nada. Então, o senador Ricardo Ferraço havia feito uma proposta de correção e os acordos de leniência teriam que ter participação obrigatória do Ministério Público e uma homologação judicial. Nós defendíamos até que nem fosse homologação do MP, mas que ele participasse da negociação, como faz em delações premiadas, e que a homologação fosse feita por um juiz, para dar mais segurança e legitimidade a todos os envolvidos. Mas, assim que o projeto começou a tramitar no Senado, o governo encheu de emendas e acabou negociando um caminho totalmente diferente. A ideia de Ricardo Ferraço foi desfigurada. Virou esse Frankenstein que está tramitando na Câmara.

IM – E qual foi o resultado? Como funcionaria o acordo se o projeto entrasse em vigor?
JMO – O projeto que foi aprovado no Senado permite que a CGU continue fazendo isoladamente se quiser. Poderá ou não ter o Ministério Público. Apareceu também a AGU que agora poderá fazer acordos de leniência. Bastam esses dois órgãos para afastar os processos do Tribunal de Contas da União. O que é gravíssimo, porque hoje quem está conseguindo fazer o cálculo dos prejuízos das irregularidades nas empresas é o TCU. Não se pode deixar para o Executivo, que está envolvido na corrupção praticada, o cálculo do prejuízo da corrupção e fazer um acordo com as empresas. Em vez de combater a corrupção, isso vai institucionalizá-la. Vai ser um incentivo. Tirar os órgãos que têm independência é um tiro no pé do Estado brasileiro.

IM – E o TCU perde muita influência com esse novo projeto, não?
JMO – Se isso prevalecer, seria um desastre para a atuação dos tribunais de contas. Seria algo como: o tribunal de contas existe, mas, quando o Poder Executivo quiser afastar, basta fazer um acordo com a empresa. Imagine: a empresa X tem um contrato com o Poder Executivo. O TCU faz uma auditoria e descobre superfaturamento de R$ 100 milhões. Aí, a CGU, do governo, e a AGU fazem um acordo de leniência com a empresa, que confessa R$ 5 milhões ou R$ 10 milhões e paga. Isso afasta, portanto, o processo do TCU que estava calculando R$ 100 milhões? É um absurdo completo. Na prática, as empresas vão aumentar um pouquinho mais o preço dos contratos, porque, se forem descobertas, colocam o custo de possível acordo de leniência com o controle interno.

A Constituição brasileira, pelo artigo 74, parágrafo 4º, diz que o papel do controle interno é apoiar o controle externo. Então, não é querer resolver o problema por lá, fazer um acordo e virar a página, como se não existisse controle externo no país. Essa é uma forma de o Poder Executivo tentar se livrar de um órgão que incomoda muito. O tribunal de contas incomoda muito o governo.

IM – A disputa recente entre Executivo e TCU ficou latente neste ano. Como tem se dado essa relação? O senhor tem percebido alguma hostilidade por parte do governo?
JMO – Desde o governo Lula, já havia declarações dele e do ministro Paulo Bernardo dizendo que o TCU tem mais fiscais do que gente para fazer as coisas no Poder Executivo. A culpa não é nossa, é do Executivo que tem um monte de cargo em comissão, gente incapacitada de fazer projetos.

Desde Lula há uma intolerância, uma insatisfação crônica do governo com uma atuação cada vez mais capacitada do tribunal de contas. O TCU tem uma característica de baixíssima rotação de mão de obra, ao contrário do Poder Executivo. Os auditores acumulam experiência. Tem auditor aqui com 20 anos de trabalho, que sabe chegar a uma obra, examinar um projeto e um edital de licitação. Enquanto no governo toda hora entra e sai gente. O pessoal faz coisas mal feitas e acha ruim o tribunal atrapalhar.

IM – Parte dessa nova configuração do projeto se deve a essa relação mais conturbada entre governo e TCU?
JMO – O projeto de lei tentando concentrar essa competência na CGU, de agosto de 2013, mostra uma tentativa de o controle interno assumir funções que não são compatíveis com o desenho constitucional brasileiro. O que percebo é que a CGU quer assumir funções que são do TCU, contrapondo espaços institucionais que a Constituição conferiu ao controle externo e que são incompatíveis com um órgão que não tem autonomia e não tem independência.

IM – Portanto, o projeto do CGU já previa enfraquecimento do tribunal de contas em 2013?
JMO – Ele já previa porque pretendia que a CGU pudesse, em um acordo de leniência, resolver os problemas das empresas. Isso não ficou dito explicitamente, mas estava implícito. O projeto do senador Ricardo Ferraço era para corrigir isso. Em vez de corrigir, eles tentaram deixar mais explícito que não precisam do Tribunal de Contas, que podem resolver tudo por lá.

IM – Na sua perspectiva, é possível enxergar lobby das empresas envolvidas na Lava Jato na tramitação desse projeto?
JMO – Não posso afirmar em concreto que houve, mas que há grande interesse delas em uma aprovação muito rápida do projeto dado que algumas estão em dificuldades financeiras, sem dúvidas há.

IM – Quais são os pontos que os senhores enxergam validade no projeto?
JMO – O acordo de leniência é válido. Mas, a meu ver, tem que ser uma competência do Ministério Público, que é o órgão que tem independência, isenção e condições de avaliar se a empresa está trazendo alguma vantagem à investigação. O acordo de leniência não é uma forma de salvar empresas, mas de beneficiar uma empresa que colabore efetivamente para as investigações, para que se possa combater a corrupção do todo.

No entanto, o governo está vendo o acordo de leniência não como instrumento de investigação, mas como uma forma de as empresas não desempregaram ou irem à falência, e obter algum ressarcimento para o erário. A alegação deles é que seria muito melhor receber R$ 50 milhões de uma empresa agora em um acordo do que tentar recuperar R$ 300 milhões em um processo lá no TCU, que pode não conseguir e vai demorar alguns anos. Mas eles não têm a menor condição de calcular o valor exato e isso não combate a corrupção. Se as empresas não forem punidas e se pensarmos que é melhor receber uma coisinha do que o valor certo, essa coisinha vai virar preço embutido nos contratos públicos. Usar o acordo de leniência de forma ampla é uma anistia que as empresas vão pagar um valorzinho para tê-la.

IM – Como tem sido a tramitação do projeto?
JMO – Atropelada. Eles têm disposição de aprovar e votar rapidamente a matéria, usando o discurso de que é muito importante a celeridade e que o projeto já está maduro. Na verdade, achamos que o projeto é um grande equívoco. A correção que era para ser feita está justamente sendo piorada. É preciso construir um acordo de leniência que funcione para o bem da sociedade, que não seja apenas para beneficiar empresas envolvidas em escândalos de corrupção e que seja feito por órgãos que tenham competência técnica e legitimidade, independência e autonomia para fazer isso em nome do Estado brasileiro, sem que paire uma suspeita de que é o governo que está querendo resolver a vida da empresa A ou B.

IM – O que o senhor espera do projeto?
JMO – Estamos conversando, apresentando sugestões. espero que os parlamentares se sensibilizem para apresentar um projeto de lei que atenda ao objetivo desta lei, que é combater a corrupção. Que o instrumento não derive em uma forma de salvamento de empresas ou captura do governo por empresas interessadas em sobreviver ao escândalo da corrupção.

IM – A reprovação das contas de Dilma poderiam ter sido alguma retaliação sobre todo esse processo, visto que há argumentações de que pedaladas fiscais já aconteceram em outros casos?
JMO – Absolutamente. Se você ler as irregularidades do relatório das contas, verá que são coisas que aconteceram de forma inédita. Esse argumento que o governo usa é político para tentar se defender, mas não tem nenhuma consistência com os fatos do processo.

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Marcos Mortari

Responsável pela cobertura de política do InfoMoney, coordena o levantamento Barômetro do Poder, apresenta o programa Conexão Brasília e o podcast Frequência Política.